Hidrogênio: A força oculta
O hidrogênio não existe em estado puro, mas está presente em quase tudo. Por isso, deverá ser no futuro o que o petróleo foi neste século. Isso acontecerá quando o homem dominar os segredos da fusão nuclear um árduo desafio à ciência.
Martha San Juan França
O automóvel pára no posto. O frentista se aproxima, pede a chave, abre o tanque, retira do veículo um cilindro metálico gasto e substitui por outro, carregado. O cilindro está cheio de gás, que penetra nas moléculas do metal como água numa esponja. Aquecido, o gás se desprende e impulsiona o motor do automóvel, sem liberar sujeira pelo escapamento, ao contrário dos combustíveis tradicionais, derivados do petróleo ou do álcool.
Por enquanto, isso é apenas ficção. Só existe numa experiência em Berlim Ocidental, onde, desde 1984, dez veículos do serviço público rodam graças a cilindros carregados de hidrogênio. Este é considerado o combustível do futuro, por existir em toda parte e não causar estragos ao meio ambiente. Os especialistas apostam que o hidrogênio vai ser a grande fonte de energia do mundo civilizado já na primeira metade do século XXI, quando se imagina que as reservas conhecidas de petróleo, carvão e gás estarão em baixa e o acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera, resultado da queima de óleo, atingirá níveis insuportáveis.
Os motores dessa mudança estão nos laboratórios de universidades, centros de pesquisa e indústrias. A Daimler-Benz, empresa alemã, por exemplo, deu ciência pela primeira vez dos testes com carros movidos a hidrogênio no ano passado, durante a 6 ª Conferência Mundial sobre Hidrogênio, realizada em Viena, na Áustria. A BMW também está investindo num projeto para produzir carros a hidrogênio.
No Brasil, o Laboratório de Hidrogênio da Universidade Estadual de Campinas já em 1978 fazia experiências com um jipe Toyota alimentado por uma mistura de hidrogênio e óleo diesel. Mas, se conseguiu uma boa dianteira nessa corrida, a Unicamp teve de parar no meio da pista por falta de combustível. O projeto do motor a hidrogênio dorme nas gavetas do laboratório à espera de verbas do governo. Enquanto isso, Estados Unidos, França, Alemanha e Japão aceleraram pesquisas nesse campo. De qualquer forma, a tecnologia necessária para mover carros, ônibus e caminhões a hidrogênio ainda caminha lentamente, se comparada com a das naves espaciais, que atingem velocidades de 60 mil quilômetros por hora graças a uma mistura de hidrogênio e oxigênio líquidos.
No rastro dos foguetes vêm os aviões. O engenheiro José Roberto Moreira, do Instituto de Eletrotécnica da USP e um dos maiores especialistas brasileiros em fontes de energia alternativas, acredita que os aviões serão os primeiros a aderir ao hidrogênio líquido, um tipo de combustível que, embora mais inflamável, pesa um terço do querosene usado pelos jatos. Isso quer dizer: com a mesma quantidade de combustível, um Jumbo poderia ficar o triplo de tempo no ar ou levar 60 por cento mais carga, compensando desta forma o custo ainda muito alto do hidrogênio.
Além do desafio de obter hidrogênio em grande quantidade a baixo custo, é preciso saber armazená-lo para evitar explosões — como a que destruiu no ar em 1937 o dirigível alemão Hindenburg, acabando com as esperanças daqueles que viam no balão de hidrogênio uma forma eficiente de transporte. Hoje, os balões são usados praticamente apenas em meteorologia, sempre que possível movidos a hélio — um gás raro, mas infinitamente menos inflamável. Para se ter uma idéia da velocidade com que o hidrogênio pega fogo, basta recordar as imagens da explosão do ônibus espacial Challenger em janeiro de 1986.
O Challenger carregava 1,8 milhão de litros de oxigênio – hidrogênio líquidos e bastou o escapamento desse combustível, provocado por uma junta solta do propulsor, para causar o desastre 75 segundos depois do lançamento. Mesmo assim, os responsáveis pelos programas espaciais continuam armazenando o hidrogênio das naves no estado líquido, pois dessa forma ele tem muito mais energia por unidade de volume do que como gás comprimido, apesar de exigir uma temperatura de 250 graus negativos. Já no caso dos automóveis, os testes indicam a vantagem dos cilindros metálicos, onde o hidrogênio gasoso penetra de forma tão concentrada que o volume por unidade é quase igual ao do hidrogênio líquido.
Como explica o físico Ennio Peres da Silva, chefe do Laboratório de Hidrogênio da Unicamp, o combustível do futuro é caro “justamente porque não pode ser encontrado em poços ou minas, como o petróleo ou o carvão”. Na verdade, para fazer o hidrogênio — que não existe em estado puro na natureza — é necessário gastar mais energia do que será obtida. Por isso, ele só será usado em grande escala quando suas qualidades sobrepujarem essa limitação.
A princípio, sugere Peres da Silva, a eletricidade inevitavelmente desperdiçada pelas usinas poderá ser usada para produzir e armazenar hidrogênio. Isso permitirá, por exemplo, aproveitar o vasto potencial hidrelétrico de regiões como a Amazônia, ao se transportar através de gasodutos a energia de seus rios para os grandes centros de consumo. Só depois — quando o custo dos outros combustíveis a caminho do esgotamento se tornar proibitivo — o hidrogênio poderá ser empregado das mais diversas maneiras, em ferrovias, aeroportos, hospitais, indústrias e casas, além, é claro, de fazer rodar automóveis.
Mas, se para o homem o hidrogênio ainda é uma promessa, no Universo ele é uma antiqüíssima realidade. Há bilhões de anos as estrelas se formam mediante reações nucleares que ocorrem no interior de nuvens superdensas de matérias a temperaturas de até 10 milhões de graus. Essas reações transformam o hidrogênio das nuvens em hélio, liberando quantidades extravagantes de energia, como em escala incomparavelmente menor acontece nas, chamadas bombas H, ou de hidrogênio, que integram os arsenais nucleares das grandes potências.
O hidrogênio é o elemento mais comum do Universo, embora só exista associado a outras substâncias. É também o mais simples e leve — seu átomo tem apenas um próton e um elétron. Isso significa que é catorze vezes mais leve que o ar. Está presente de maneira discreta na água e na maioria dos compostos orgânicos, entre os quais o petróleo e o carvão, e também nos animais e vegetais.
O hidrogênio é considerado um combustível “quente”; de fato, contém três a quatro vezes mais energia do que os outros, em cujas fórmulas, aliás, está presente. O petróleo, por exemplo, é formado principalmente por hidrocarbonetos — compostos químicos de carbono e hidrogênio. O gasogênio, usado nos automóveis durante a Segunda Guerra Mundial, é uma mistura de hidrogênio e monóxido de carbono, cuja fonte é o carvão, aliás também formado de hidrocarbonetos.
Mas o hidrogênio pode ser obtido de uma fonte limpa, ou seja, da água. Para isso, usa-se um processo denominado eletrólise por seu inventor, o físico inglês Michael Faraday (1791-1867). Consiste em separar os elementos de uma substância fazendo circular eletricidade por ela. Por mais que se use água para fazer hidrogênio, a fonte não vai secar: no processo de combustão, o hidrogênio volta a se combinar com o oxigênio, fazendo água de novo. É por isso que, em vez de fumaça malcheirosa, o escapamento dos automóveis a hidrogênio só vai liberar o inofensivo vapor de água. Para os ecologistas, é o sonho dos sonhos: no mundo movido a hidrogênio, não haverá poluição do ar provocada pelo monóxido de carbono.
Infelizmente, o hidrogênio produzido por eletrólise representa apenas uma gota de água perto das necessidades energéticas mundiais. Só para substituir 40 por cento do petróleo consumido no Brasil seria preciso o equivalente a três hidrelétricas de Itaipu ou mais de 1 bilhão de quilowatts-hora de energia por dia para produzir hidrogênio. Como o país não dispõe de tamanha fartura de eletricidade, 80 por cento da produção nacional de 300 mil toneladas anuais de hidrogênio vêm de derivados do petróleo, principalmente propano — o gás de cozinha — e nafta. O resto é hidrogênio eletrolítico, fornecido para indústrias de alimentação, farmacêuticas ou químicas, que requerem um produto mais puro.
A eletricidade — obtida seja de que maneira for — é a maneira mais inteligente de conseguir hidrogênio. Uma possibilidade vem sendo experimentada com sucesso em Corumbataí, no interior de São Paulo. Ali a Cesp produz 1 mil metros cúbicos de hidrogênio por hora pela gaseificação da madeira, uma fonte de energia renovada pela ação do homem. O professor José Roberto Moreira, da USP, um entusiasta da biomassa — energia obtida a partir de vegetais, como o álcool etanol hidratado da cana —, tem grandes esperanças de que o projeto de Corumbataí seja aprovado para a produção em grande escala.
Próximo a Stuttgart, Alemanha Ocidental, está sendo construído o Centro Experimental de Aeronáutica e Astronáutica, onde células solares transformam a luz do Sol em até 100 quilowatts de potência para alimentar as unidades de eletrólise.
O processo não é nem um pouco econômico, mas tem a vantagem de depender da maior fonte de energia que existe — o Sol. A quantidade de energia solar que atinge a superfície da Terra em dez dias é equivalente a tudo o que o planeta tem em matéria de reservas conhecidas de combustível. Qualquer que seja a forma de produzir hidrogênio, o mundo tem pressa de torná-lo econômico. E o tempo conta: calcula-se que um combustível precisa de pelo menos setenta anos para participar da metade do mercado energético mundial.
Seriam necessários 25 bilhões de metros cúbicos de hidrogênio só para fornecer a energia equivalente ao consumo de gás natural nos Estados Unidos, na década passada — enquanto toda a produção mundial de hidrogênio se limita a 2 bilhões de metros cúbicos anuais. Como se vê, há muito chão pela frente até o hidrogênio tornar-se um combustível competitivo. Mas não há remédio tão eficaz para salvar o mundo de uma crise de energia — ou da poluição.
Para saber mais:
(SUPER número 6, ano 7)
O homem imita as estrelas
O processo da fusão nuclear — do qual nascem as estrelas — ainda não foi controlado pelo homem. O que se domina é a fissão nuclear (desintegração de átomos de urânio), usada nas bombas atômicas e nos reatores para a produção de energia elétrica. Mas, em 1.º de novembro de 1952, uma ilhota perdida no meio do Pacífico serviu de cenário para a explosão da primeira bomba termonuclear, também chamada bomba de hidrogênio ou bomba H, porque partiu da fusão dos átomos desse elemento. A explosão fez parte do programa militar de controle da energia do átomo, iniciado nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.
Os norte-americanos não ficaram sós por muito tempo: a União Soviética explodiu sua primeira bomba em 1961, a China em 1967 e a França em 1968. Desde então, a proliferação nuclear tornou-se a maior ameaça já conhecida à vida na Terra. A energia de fusão é liberada quando os núcleos de dois isótopos do hidrogênio — deutério e trítio — se aquecem, colidem entre si a uma velocidade altíssima e acabam se combinando para formar um átomo de hélio mais pesado. O processo, como se percebe na explosão da bomba H, libera uma quantidade fantástica de energia. A primeira bomba soviética, por exemplo, alcançou uma potência de 60 megatons, o equivalente a duas mil bombas de Hiroxima.
Com toda essa força, o hidrogênio teria mesmo de servir como combustível para reatores nucleares. O problema é conseguir a temperatura necessária à fusão dos núcleos de deutério — 300 milhões de graus centígrados durante 10 segundos. A bomba H, para explodir, depende do calor gerado pela explosão de uma bomba de fissão. O recorde de temperatura até agora foram os 200 milhões de graus centígrados obtidos no ano passado no Laboratório de Física do Plasma da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Os norte-americanos usaram um equipamento de grandes dimensões — o reator de teste de fusão Tokamak, destinado ao confinamento do plasma. Esse é o quarto estado da matéria — uma mistura de elétrons livres e núcleos dos átomos, que constitui um pré-requisito essencial à fusão nuclear.
Prevê-se que a temperatura necessária à fusão só será alcançada no século XXI. Quando isso ocorrer, os reatores se tornarão uma fonte segura de energia. Pois, ao contrário dos reatores de fissão que consomem urânio 235, os de fusão gastarão hidrogênio, que não tem radiatividade. A fusão também produz muito mais energia que a fissão. O físico Ivan da Cunha Nascimento, coordenador do grupo que instalou um pequeno Tokamak na Universidade de São Paulo, dá um exemplo: “Com 1 grama de deutério, um reator de fusão libera 100 mil quilowatts-hora de energia. Para produzir a mesma energia, uma usina como Angra 2 precisaria queimar uma quantidade de urânio cinco vezes maior”.
Passando hidrogênio no pão
A dona de casa pode não saber, mas ao comprar margarina, xampu, sabão ou detergente está contribuindo para a produção de hidrogênio. É que esse gás tem a propriedade peculiar de se combinar com quase todos os elementos — da água ao amoníaco, passando pelo carbono, com o qual forma açúcares, hidratos de carbono e hidrocarbonetos, como o petróleo. Ele serve para separar ou purificar materiais na indústria química, na de alimentos, remédios, aços, resinas, explosivos etc.
O hidrogênio puro, obtido por processos eletrolíticos, ou seja, pela circulação de eletricidade na água, entra na produção de gorduras e álcoois, que são a matéria-prima de sabões, detergentes, cosméticos, além dos solventes usados na indústria têxtil. Outra aplicação industrial do hidrogênio é a transformação de óleos vegetais em gorduras. O óleo de coco, por exemplo, na presença do hidrogênio transforma-se em gordura e glicerina. Essa gordura será utilizada depois na fabricação de margarina.
Em reações que requerem grandes quantidades de hidrogênio com um nível de pureza menor, a indústria recorre ao petróleo. O hidrogênio é obtido do petróleo por meio do craqueamento, um processo de quebra de moléculas de hidrocarbonetos com o auxílio de catalisadores — em geral óxidos de ferro. As refinarias usam o hidrogênio para tirar enxofre do petróleo bruto. Quando combinado com o enxofre, o hidrogênio se transforma em gás sulfídrico, responsável pelo mau cheiro das refinarias.
Mas sua aplicação mais importante do ponto de vista econômico e em que se esgotam 80 por cento do produto retirado do petróleo é na indústria de fertilizantes. Sem hidrogênio não haveria agricultura com amplo suporte de tecnologia avançada como se conhece hoje: ele é o responsável pela produção de amônia, da qual é retirado o nitrogênio dos fertilizantes.