O que revelou a mais completa análise genética da população brasileira já feita
Pesquisa da USP descobre milhões de variedades genéticas inéditas – e mostra como a história do Brasil deixou marcas em nosso DNA.

Lá em 1996, o compositor Martinho da Vila já cantava como somos um povo café com leite, resultado de séculos de miscigenação. Isso você já sabe, claro – mas, agora, um novo estudo traz a análise genética mais completa da população brasileira já feita, revelando em detalhes como a mistura de povos europeus, ameríndios e africanos criou nosso país. A pesquisa também revela características da história que ficaram claramente marcadas no DNA nacional.
Como você aprendeu na escola, a miscigenação brasileira começou com a chegada dos portugueses e com a escravização de populações africanas, partindo de uma base indígena (de diversas etnias, muitas das quais foram dizimadas). Hoje, nosso DNA é uma soma de colonização, imperialismo e migrações forçadas, segundo os pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), em um estudo publicado na Science.
Concluir que somos um povo miscigenado não é novidade, claro: isso dá para concluir só pela história e pela simples observação da variedade de fenótipos (características físicas) no Brasil. Mesmo assim, do ponto de vista científico, há muitas lacunas nos estudos sobre a genética populacional do Brasil.
A maioria das pesquisas do tipo, diga-se de passagem, são feitas com genomas europeus, um problema que já abordamos aqui na Super: distinções genéticas entre populações implicam em diferentes impactos na saúde daquelas pessoas, e não dá para se basear em análises de outros povos para tomar decisões biomédicas e farmacêuticas dos brasileiros.
Pensando nisso, o novo estudo tenta preencher alguns buracos de informações genéticas da população. A pesquisa contou com uma análise genômica de mais de 2.700 pessoas, visando uma pluralidade de origens étnicas, geográficas e culturais.
De forma geral, a ancestralidade predominante dos genomas analisados foi a europeia (60%), seguida da africana (27%) e indígena (13%), além de uma contribuição asiática menor e mais localizada em alguns locais (como São Paulo).
O resultado também apresentou mais de 8,7 milhões de variantes genéticas (mudanças de uma única letrinha na sequência do DNA) até então não documentadas – incluindo algumas com potencial para afetar a saúde da população. O número milionário surpreendeu até mesmo os pesquisadores envolvidos.
“Os brasileiros funcionam como um reservatório de perfis genéticos encontrados em outros continentes, ou até mesmo de linhagens hoje extintas, o que os torna uma população de grande interesse médico e evolutivo”, diz a geneticista Lygia Pereira, professora da USP e uma das coordenadoras da pesquisa.
Junto e misturado
A seleção das amostras buscou o máximo de diversidade possível. Os pesquisadores usaram amostras de DNA de brasileiros que já participavam de estudos epidemiológicos.
“Buscamos escolher cortes de diferentes regiões do país para representar melhor nossa diversidade”, diz Pereira. “Nesse sentido, ter cerca de 400 participantes de comunidades ribeirinhas ao longo do Rio Amazonas nos permitiu capturar grandes frações de genomas com ancestralidade indígena”, disse a pesquisadora. Da mesma forma, incluir afro-brasileiros garantiu a representação da ancestralidade africana.
Além disso, os cientistas buscaram contemplar populações tanto rurais quanto urbanas, cobrindo diferentes contextos socioeconômicos e perfis de ancestralidade, conta Tábita Hünemeier, professora da USP e também autora da pesquisa.
O estudo identificou novos haplótipos vindos de indígenas americanos, africanos e europeus. Haplótipos são conjuntos de alelos (a variação de um gene) que são herdados juntos, passados de pais para filhos como uma unidade. “O genoma de um indivíduo miscigenado é como um grande mosaico, feito de blocos de diferentes origens ancestrais”, diz Kelly Nunes, geneticista que também participou do estudo.
Os resultados confirmaram padrões de ancestralidade que já eram conhecidos, porém em níveis muito mais detalhados. “Com o sequenciamento do genoma completo, foi possível ir além da identificação da ancestralidade continental – como ‘africana’, ‘europeia’ ou ‘indígena’ – e alcançar o nível subcontinental”, explica Pereira. “Ou seja, conseguimos observar de quais regiões específicas da África ou da Europa vieram as contribuições genéticas para diferentes partes do Brasil”.
O número de novas variantes genéticas encontradas, 8,7 milhões, representa mais de 11% de todas as variantes no conjunto de dados – muitas nem eram conhecidas pelos principais bancos de dados globais.
Apesar de tudo isso, não dá para afirmar que a população brasileira é, de fato, a mais miscigenada do mundo, como circulou por aí. Para concluir isso, precisaria ser feita uma comparação global entre vários povos – algo que não foi o objetivo do novo estudo.
Escrito nos genes
Para os autores, é importante destacar os dois momentos em que a miscigenação aconteceu no Brasil.
A primeira é caracterizada por um viés assimétrico, em que homens europeus predominantemente tiveram filhos com mulheres indígenas e africanas – afinal, o começo da colonização foi um processo essencialmente masculino. Isso deixou uma marca distinta em nosso material genético: o DNA mitocondrial do brasileiro, que é passado apenas de mãe para filhos (homens ou mulheres), é predominantemente indígena e africano. Já o DNA do cromossomo Y (que só é passado de pai para filho) tem, principalmente, origem europeia.
Isso retrata um cenário violento e cruel da colonização, em que homens indígenas e africanos muitas vezes eram mortos, enquanto as mulheres dessas etnias eram vítimas de violência sexual.
Já a segunda fase é mais recente. No último século, o casamento assortativo, com indivíduos de origens étnicas semelhantes, se popularizou, diminuindo um pouco a miscigenação.
Não só. Os pesquisadores também identificaram 36.637 variantes genéticas raras e potencialmente prejudiciais que eram mais comuns em indivíduos com ancestralidade africana ou indígena americana. Segundo o estudo, essas variantes estão em regiões que podem influenciar características como fertilidade, metabolismo e imunidade, mas ainda não são bem estudadas.
“A ideia é que, com uma base genética ainda mais diversa e abrangente, possamos contribuir para o desenvolvimento de uma medicina mais precisa, equitativa e voltada à realidade brasileira”, explica Kelly Nunes.
De acordo com a pesquisadora, esse é o caminho para tratamentos personalizados para doenças comuns no Brasil – como hipertensão, diabetes, doenças cardíacas e doenças genéticas prevalentes em populações indígenas e afro-brasileiras.
Agora, o projeto segue sequenciando mais genomas e abrangendo a diversidade das subpopulações e minorias ainda não estudadas. “O estudo contribui significativamente para repensar como a diversidade genética é medida e compreendida em escala global ao mostrar que grande parte da variação genética presente em populações miscigenadas, como a brasileira, ainda é invisível nas bases de dados internacionais”, conclui Nunes.