O útero artificial
Ele já foi usado para gestar carneiros – e pode, um dia, salvar bebês prematuros. O aparelho também abre portas para a criação de embriões “do zero”, a partir de células-tronco. Conheça essas tecnologias – e entenda seu lado controverso.
Texto Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro
Ilustração Felipe Del Rio
Design Juliana Krauss e Luana Pillmann
CCentenas de milhões de ratos são gerados, a cada ano, para virarem cobaias de laboratório.
Eles geralmente custam de US$ 40 a 120 cada um, dependendo das características, e são fornecidos por companhias como a Jackson Laboratory, fundada em 1929 e que hoje emprega 2.900 funcionários, dedicados a reproduzir, criar e vender camundongos (e outros animais) para cientistas do mundo inteiro.
Mas os embriões criados em 2021 no Instituto de Ciências Weizmann, em Rehovot, Israel, eram diferentes. Aos cinco dias de vida, quando eles tinham apenas 250 células, foram extraídos de suas mães – e inseridos em um útero artificial (1), uma máquina onde se desenvolveram por tempo suficiente para formar os principais órgãos, como cérebro e coração.
O teste foi encerrado ali. Mas, em 2022, os cientistas foram (muito) além. “Nós pensamos: agora que sabemos o que é necessário para manter um embrião natural fora do útero, podemos finalmente testar se é possível gerar um embrião [sintético] usando células–tronco”, conta o biólogo Jacob Hanna. Sim, era possível.
Eles conseguiram eliminar a primeira etapa do processo – e criaram embriões de rato “do zero”, fora do corpo, simplesmente juntando e manipulando células (2). Os embriões sintéticos – que os cientistas chamam de “embrioides” – foram inseridos no útero artificial.
O aparelho, resultado de sete anos de desenvolvimento, usa ampolas cheias de uma mistura de aminoácidos, hormônios e nutrientes, mantidas girando constantemente – isso evita que o embrião grude nas bordas [veja infográfico abaixo].
–As ampolas, uma para cada embrião, são monitoradas por um sistema que controla pressão, temperatura e concentração de gases (3). “Inventamos uma nova forma de sustentar o crescimento dos embriões. Antes, não se pesquisava a criação deles, porque ninguém sabia como garantir seu crescimento”, diz Hanna.
Ele fundou uma empresa, a Renewal Bio, para explorar essa tecnologia – e já está trabalhando na criação de embriões humanos sintéticos, com estágio de desenvolvimento equivalente ao de 40 a 50 dias de gestação.
Segundo Hanna, eles ajudarão a testar novos tratamentos para problemas reprodutivos, como infertilidade, endometriose, perda do bebê e pré-eclâmpsia (um tipo perigoso de hipertensão sanguínea durante a gravidez).
Os embriões de rato viveram 11 dias no útero artificial (metade dos 19 dias de uma gestação normal dessa espécie). Esse é o limite porque, a partir daí, seria preciso fornecer sangue para que eles continuassem a se desenvolver – coisa que a máquina israelense não faz.
Mas essa tecnologia já existe. Faz parte de um segundo tipo de útero artificial, que foi criado em 2017 por cientistas americanos – e testado na gestação de oito carneiros (4).
Eles foram retirados das barrigas das mães quando tinham 105 a 120 dias de vida (ainda longe de completar a gestação, que é de 142 a 152 dias), e colocados no aparelho, que reproduz o fluxo sanguíneo e as trocas gasosas de um útero normal.
Cinco animais se desenvolveram totalmente, e de forma saudável [veja infográfico abaixo]. O dispositivo, que foi inventado por médicos do Philadelphia Children’s Hospital, pode um dia ser utilizado em bebês humanos muito prematuros, que não sobreviveriam nas incubadoras atuais.
Ninguém em sã consciência seria contra. O propósito da medicina é justamente esse, afinal: tratar doenças e salvar vidas. Mas, ao ler sobre o útero artificial e os embriões sintéticos, talvez você tenha sentido um certo desconforto.
Coisas assim lembram Admirável Mundo Novo, um clássico da ficção científica que retrata a chamada gestação extracorpórea, ou ectogestação: os fetos são criados e se desenvolvem fora do corpo, em laboratórios supervisionados pelo Estado – e já nascem geneticamente programados para desempenhar certas funções na sociedade.
Quase um século após a publicação do livro, de 1931, não chegamos a isso. Ainda bem. Mas as pesquisas deram um salto nos últimos anos. Conforme a ciência avança sobre mais aspectos da reprodução humana, começa a ser possível vislumbrar novos cenários e possibilidades – incluindo algumas bem perturbadoras.
A
A busca por um útero artificial não é nova. Em 1958, pesquisadores do Instituto Karolinska, na Suécia, criaram um aparelho capaz de manter vivos, por 12 horas, fetos de 375 gramas, o equivalente a 21 semanas de gestação.
Esse é um patamar crítico: até hoje, bebês nascidos com menos de 22 semanas são considerados de difícil sobrevivência (o ideal é que os fetos fiquem na barriga da mãe por no mínimo 28 semanas).
A partir dos anos 1960, foram surgindo uma série de incubadoras artificiais, e a taxa de sobrevivência dos bebês prematuros cresceu bastante: de 1990 para cá, ela vem aumentando em média 2% por ano (5).
Mas, mesmo com todos os avanços, a precocidade continua sendo um problema. Segundo dados da OMS, 15 milhões de bebês, ou 10% de todos os nascidos no mundo a cada ano, são prematuros – e 1 milhão deles não sobrevive. O nascimento precoce é a maior causa de morte entre crianças até 5 anos.
Há várias equipes de cientistas tentando criar aparelhos para salvá-las. Além das iniciativas nos EUA e em Israel, também existe uma na Europa: ela se chama Perinatal Life Support System (“sistema de suporte vital perinatal”), e é liderada pela Universidade de Tecnologia de Eindhoven, na Holanda, em parceria com instituições da Alemanha e da Itália.
O projeto (6) começou em 2019, e prevê iniciar os testes em 2024. Ele usa balões cheios de uma versão artificial do fluido amniótico (que preenche o útero natural, e é formado principalmente por água, nutrientes e sais minerais).
O cordão umbilical do feto seria conectado a uma máquina, que manteria o fluxo de nutrientes até ele conseguir desenvolver seus pulmões, o que ocorre por volta da 26a semana.
É nesse momento que esses órgãos começam a produzir surfactante, uma mistura de lipídeos e proteínas que aumenta a absorção de oxigênio e também funciona como lubrificante – sem ela, os alvéolos tendem a “grudar” uns nos outros durante a expiração, quando os pulmões esvaziam.
Os pesquisadores europeus pretendem testar seu sistema usando bonecos ultrarrealistas. Se ele funcionar como esperado, poderá ser utilizado em bebês humanos a partir de 2029. Ou seja, está atrás do projeto do Philadelphia Children’s Hospital, que já testou com animais vivos.
Esse também é o caso do EVE, ou Ex-Vivo Uterine Environment (“ambiente uterino fora do corpo”), que vem sendo desenvolvido desde 2013 por cientistas do Japão e da Austrália. Em 2020, ele foi testado em fetos de carneiro (essa espécie costuma ser escolhida porque sua gravidez já foi muito estudada), que foram mantidos no aparelho por cinco dias (7).
É bem menos que o projeto americano, que alcançou 28 dias – e poderia ter ido além. Os médicos da Filadélfia podiam ter concluído a gestação dos animais, que já estava no fim – mas optaram por não prosseguir, porque queriam fazer uma autópsia para ver se o organismo dos filhotes havia se desenvolvido normalmente.
Você deve estar pensando: o que isso tem a ver com engenharia genética, estilo Admirável Mundo Novo? São só tecnologias para salvar fetos prematuros, certo? Certo. Mas o desenvolvimento de úteros artificiais também é uma peça-chave para a criação ou manipulação de embriões – porque permite que eles sejam cultivados em laboratório por mais tempo.
–As pesquisas com úteros e embriões se complementam; são dois lados da mesma moeda. “Como você vai cultivar um embrião sintético se não sabe cultivar um embrião natural?”, diz Jacob Hanna, do Instituto Weizmann.
Ele faz questão de ressaltar que os embrioides criados no seu laboratório não são viáveis (não poderiam dar origem a animais, porque são primitivos demais), e que seu objetivo é apenas fazer pesquisas científicas de forma ética e respeitando todas as leis.
Em 1978, após o nascimento do primeiro bebê de proveta (criado por fertilização in vitro, hoje um procedimento corriqueiro), a inglesa Louise Brown, o US Department of Health publicou uma recomendação que se tornaria norma entre os cientistas: só é permitido cultivar um embrião humano em laboratório por 14 dias.
É que no 15o dia começa a acontecer a “gastrulação”, o processo de diferenciação celular que dá origem aos órgãos. Por questões morais e de segurança, o embrião deve ser destruído antes de iniciar esse processo. Muitos países, como Coreia do Sul, Canadá e Reino Unido, chegaram a transformar essa norma em lei. Mas, em junho de 2021, ela caiu.
A International Society for Stem Cell Research (ISSCR), que reúne pesquisadores de células-tronco de todo o mundo, decidiu que não haverá mais um limite de tempo.
Agora os estudos com embriões humanos poderão ultrapassar 14 dias – devendo ser avaliados, caso a caso, para determinar o ponto em que cada experimento deverá ser encerrado. Essa mudança é crucial, porque as regras ditadas pela ISSCR determinam não só o que é considerado eticamente aceitável pelos cientistas, como os limites práticos nas experiências.
O fim da norma reflete, de certa maneira, um avanço científico que já havia ocorrido. Em 2016, dois grupos de pesquisadores (8), dos EUA e do Reino Unido, conseguiram manter embriões humanos vivos por 13 dias e então encerraram suas experiências, por iniciativa própria, para cumprir a antiga norma.
Era evidente que os cientistas tinham condições de ir além. E a ISSCR meio que se curvou a essa nova realidade. Mas, em outro aspecto, ela não mudou: seu regulamento oficial (9) continua enquadrando a “edição genética herdável, para propósitos reprodutivos” na categoria 3A, de procedimentos proibidos.
Ela também inclui a gestação de embriões modificados e a transformação de células-tronco em gametas (óvulos ou espermatozoides) humanos. Tudo isso é “atualmente proibido”. Ou seja, o regulamento prevê que essas coisas podem ser liberadas no futuro, caso os procedimentos se tornem seguros.
Além desse grupo existe uma última categoria, a 3B, de proibição incondicional. Ela reúne atividades “desprovidas de motivação científica e/ou eticamente preocupantes”, como a clonagem humana, a criação de quimeras (seres híbridos) entre pessoas e animais, ou a gestação de um embrião humano no útero de outra espécie.
São experimentos assustadores, que um cientista minimamente responsável jamais faria. Mas e um cientista irresponsável?
EEm novembro de 2018, o chinês He Jiankui ganhou as manchetes ao anunciar que tinha editado o DNA de dois embriões humanos – e eles haviam sido implantados e gestados, dando origem a duas meninas gêmeas, Lulu e Nana.
Jiankui não era um zé-mané. Fez doutorado na Universidade Rice, no Texas, atuou como pesquisador de pós-doutorado na Universidade Stanford, e estava trabalhando na Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China, em Shenzhen.
Ele recrutou casais em que o marido era portador do vírus HIV, mas a esposa não. Juntou os gametas dos dois, criou embriões e fez uma alteração no gene CCR5, reproduzindo uma mutação natural rara que confere resistência ao HIV. Em tese, Lulu e Nana nasceram imunes ao vírus.
O jornal estatal chinês People’s Daily saudou o feito como um “avanço histórico na aplicação da engenharia genética para a prevenção de doenças”. Só que aquilo causou horror na comunidade científica, e o governo chinês rapidamente virou as costas a Jiankui – que acabou condenado a três anos de prisão (o motivo foi “edição ilegal de embriões humanos com objetivo de reprodução”).
Em abril de 2022, ele foi solto e anunciou a criação de um novo laboratório, agora em Pequim. Declarou que seu objetivo é pesquisar tratamentos genéticos para doenças raras, e se recusou a falar sobre Lulu e Nana. Provavelmente será vigiado de perto pelas autoridades, e não irá fazer nada parecido.
Mas e se algum outro pesquisador fizer? Ou se, daqui a alguns anos, procedimentos como esse acabarem se tornando aceitáveis? Afinal, teoricamente não há nada de errado em deixar as pessoas imunes a doenças. O risco é que alterações genéticas como essa tenham efeitos colaterais sérios, só descobertos anos ou décadas mais tarde.
Além de causar sofrimento às pessoas que tiveram o DNA modificado, isso poderia afetar a humanidade como um todo: conforme aqueles indivíduos e seus descendentes fossem tendo filhos, as alterações iriam se propagando pela sociedade – e seus efeitos nocivos também.
–As pessoas que passaram por edição genética e seus descendentes sofreriam forte preconceito, ou coisa pior (inclusive por isso, os nomes completos e o paradeiro de Lulu e Nana nunca foram divulgados).
Sem falar em cenários mais manjados, e igualmente questionáveis, como pais querendo trocar a cor dos olhos, aumentar a estatura ou mudar outras características dos filhos (leia texto abaixo), a divisão entre classes sociais geneticamente editadas e não editadas etc.
Outra hipótese perigosa, porque promete um grande benefício mas esconde um risco igualmente alto, seja o uso de embriões para transplantes. Se você um dia precisasse de um órgão, seria possível “ectogestar” um – que viria novinho e 100% compatível, sem desgaste nem risco de rejeição.
“Há tantas pessoas, em todo o mundo, que esperam anos por um transplante de órgão”, justificou a bióloga polonesa Magdalena Zernicka-Goetz ao jornal da Universidade de Cambridge, onde ela trabalha.
Zernicka e sua equipe, em parceria com cientistas do Instituto de Tecnologia da Califórnia, conseguiram criar embriões de rato, com coração e cérebro, a partir de células-tronco (10). Como o Instituto Weizmann. A diferença é que eles enxergam nisso o caminho para, um dia, produzir órgãos para transplantes.
“O conhecimento obtido pelo nosso trabalho poderia ser usado para cultivar órgãos humanos sintéticos, e salvar vidas”, disse Zernicka. Verdade. Ao mesmo tempo, não é difícil enxergar o problema ético envolvido. Os órgãos seriam colhidos, transferidos para máquinas de suporte nas quais cresceriam até a data do transplante, e os embriões iriam para o lixo.
Só que eles, junto com os órgãos que você quer retirar, também teriam cérebro. A partir de um certo nível de desenvolvimento, ele adquire consciência, se torna capaz de processar sinais de dor – e sofrer. Uma possível solução, do ponto de vista puramente técnico, seria criar embriões sem cérebro. Em sapos, isso já é possível (11).
Mas nada garante que funcionaria com embriões humanos – e provavelmente a técnica daria errado antes de dar certo, trilhando um caminho cheio de desfechos horríveis. Dificilmente a sociedade aceitaria.
Ela talvez se mostre mais aberta a outra possibilidade: as técnicas de ectogestação poderiam ser usadas para que as mulheres tivessem filhos sem ter de encarar as dificuldades da gravidez. Essa ideia era recorrente na primeira metade do século 20.
Em Daedalus, romance escrito em 1924 por J.B.S. Haldane, biólogo e professor da Universidade Oxford, a humanidade domina a ectogestação na década de 1950 – e, em 2073, mais de 70% dos bebês são gestados fora do corpo humano. Haldane era amigo de Julian Huxley, irmão de Aldous Huxley (que escreveu Admirável Mundo Novo poucos anos depois).
Em Daedalus, ele argumenta que, com o avanço das mulheres no mercado de trabalho, a tarefa de gestar filhos se mostraria um fardo pouco atrativo, o que levaria à procura por úteros artificiais. As mulheres também poderiam recorrer a eles por não conseguir engravidar naturalmente – como já é feito hoje na cessão temporária de útero, nome técnico da “barriga de aluguel”.
No futuro, talvez a ciência domine 100% do ciclo reprodutivo humano – e consiga alcançar a gametogênese, ou seja, a capacidade de gerar espermatozoides e óvulos em laboratório.
Em 2022, cientistas dos EUA e da Coreia do Sul usaram uma técnica bem conhecida (a mesma empregada para produzir a ovelha Dolly, primeiro animal do mundo a ser clonado, em 1996) para alcançar um objetivo inédito: produzir óvulos em laboratório.
Eles removeram o material genético dos óvulos de uma rata e o substituíram por DNA das células da pele de outra. O resultado foi um óvulo sintético, que continha o material genético da rata doadora [veja no infográfico].
“O trabalho é um grande passo na direção da gametogênese in vitro. Ele é resultado de duas décadas de pesquisas, iniciadas no final dos anos 1990”, diz o médico Gianpiero Palermo, pesquisador da Universidade Cornell e um dos autores do estudo (12).
Os óvulos foram fertilizados e implantados em ratas. Uma delas engravidou, e deu à luz três ratinhas. A equipe, que é liderada pelo pesquisador Shoukhrat Mitalipov, um biólogo conhecido por seus trabalhos pioneiros com clonagem, quer agora repetir a experiência – só que gerando óvulos humanos.
A técnica poderia servir para tratar infertilidade e prevenir doenças genéticas. O problema é que também seria possível aproveitar o processo para tentar “melhorar” o DNA do embrião, uma prática que se aproxima perigosamente da eugenia. A lei federal americana proíbe o financiamento público desse tipo de trabalho. A pesquisa vem sendo bancada por uma doação da organização Open Philanthropy, do cofundador do Facebook Dustin Moskovitz.
Os estudos de geração e edição de óvulos trazem consigo uma possibilidade nova: no futuro, talvez um casal homossexual formado por duas mulheres possa ter filhos contendo o código genético das duas. Em 2022, uma equipe de pesquisadores da China e dos EUA foi além, e criou ratas de laboratório com 100% de DNA feminino (13).
Algumas espécies, como abelhas, escorpiões, peixes e lagartos, conseguem se reproduzir sem precisar de macho: os gametas femininos já bastam para dar origem ao embrião. É a chamada partenogênese – e os cientistas conseguiram induzi-la, desabilitando sete trechos do genoma, nos óvulos de ratas.
Foi um grande feito científico. Mas o processo é extremamente ineficiente. Os pesquisadores criaram 389 embriões, dos quais 192 se desenvolveram, e foram implantados em 14 fêmeas. Nasceram apenas três ratinhas, sendo que duas não sobreviveram ao primeiro dia de vida.
A terceira teve problemas de crescimento (pois não possuía o gene Rasgrf1, que vem dos gametas masculinos). Dificilmente alguém terá a ousadia, e a irresponsabilidade, de tentar induzir a partenogênese em humanos. Continuaremos sendo gerados pela mistura de gametas masculinos e femininos.
Mas, no futuro, esses gametas poderão vir de um laboratório: além das pesquisas com óvulos, também há cientistas tentando – e conseguindo – criar espermatozoides humanos a partir de células-tronco.
–Esse objetivo foi alcançado em 2020, pelas mãos de um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego (14). Eles descobriram que se você inibir uma enzima chamada AKT, as células–tronco espermatogoniais (produzidas nos testículos) se transformam em espermatozoides.
A ideia é usar essa técnica para tratar a infertilidade masculina. Gianpiero Palermo, da Universidade Cornell, também está pesquisando isso – para criar meios de produzir espermatozoides fora do corpo.
“Nós investigamos a possibilidade de clonar gametas masculinos, nos casos em que eles são escassos, e eventualmente fazer um teste genético anterior à fertilização, para identificar os gametas mais saudáveis”, diz ele. Isso poderia permitir que os homens inférteis, 100 milhões em todo o mundo, tivessem filhos.
Mas, novamente, esbarra numa questão: até que ponto esse “teste genético” poderia ser aplicado de forma perigosamente próxima da eugenia? Atualmente há regras rígidas para os testes genéticos permitidos em embriões (leia texto abaixo).
Mas, conforme a ciência for avançando, certamente haverá pressão para que mais procedimentos sejam liberados. Coisas que hoje são inaceitáveis, inviáveis ou soam totalmente absurdas poderão se tornar rotina. Já aconteceu antes. Cem anos atrás, diversas práticas da medicina atual eram só coisa de ficção.
A tecnologia tem potencial para resolver questões válidas, como salvar bebês prematuros e erradicar doenças genéticas. E também construir um futuro apavorante, com a introdução acidental de mutações incontroláveis e a formação de um apartheid genético. Para evitar isso, a humanidade terá de refletir sobre certos pontos.
“Qualquer discussão ética sobre a ectogestação precisa incluir considerações sobre a autonomia e os direitos da mãe. E isso adiciona um complicador relevante: a transição física do feto para o bebê”, afirmam as filósofas Elselijn Kingma e Suki Finn, da Universidade de Southampton, em um artigo sobre o tema (15).
O nascimento, argumentam elas, é uma mudança existencial: você deixa de fazer parte de outro organismo e se torna um ser individual. Mas e com a gravidez extracorpórea, como ficaria isso?
Se até hoje a sociedade debate as implicações da cesariana versus parto natural, o que dizer de um feto que cresceu sem ouvir o coração, sentir os movimentos e receber o afeto da própria mãe? Quais seriam, ainda que a criança nascesse fisicamente perfeita, as consequências psicológicas e sociais disso?
Na mitologia grega, Prometeu rouba o fogo dos deuses e dá de presente para a humanidade, representando o poder do conhecimento e da tecnologia. Zeus o castiga por isso, amarrando Prometeu a uma rocha onde ele é visitado, todos os dias, por uma águia que come seu fígado (o órgão sempre se regenera, recomeçando o tormento). Que a ciência reprodutiva, com seu poder de controlar a gênese, se torne um instrumento para a vida – e não uma expressão da prepotência humana.
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O que já é permitido – e feito
O Brasil e outros países já permitem uma modalidade de seleção genética. Mas com regras rígidas.
Talvez você conheça algum casal que fez tratamento para engravidar. A fertilização in vitro vem se tornando cada vez mais comum (em algumas cidades brasileiras, ela é oferecida pelo SUS, inclusive).
Espermatozoides do marido são combinados com óvulos da mulher, gerando alguns embriões. Nesse momento, é possível fazer o chamado “diagnóstico pré-implantacional”.
Os médicos colhem uma amostra muito pequena, de 5 células, de cada embrião, e procuram genes relacionados a doenças como hemofilia, fenilcetonúria, anemia falciforme e fibrose cística, ou condições genéticas como Síndrome de Patau, Síndrome de Edwards e Síndrome de Down.
Se o embrião contiver uma delas, é descartado; só embriões “perfeitos” são implantados na mulher (costumam ser 2 a 4; por isso a reprodução assistida tem maior probabilidade de resultar em gêmeos).
E fica só nisso. A resolução 2.320/2022, do Conselho Federal de Medicina, proíbe todo o resto: “as técnicas de reprodução assistida não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica da criança, exceto para evitar doenças”.
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Fontes
(1) Ex utero mouse embryogenesis from pre-gastrulation to late organogenesis. J Hanna e outros, 2021.
(2) Post-gastrulation synthetic embryos generated ex utero from mouse naive ESCs. J Hanna e outros, 2022.
(3) Veja um vídeo dele em youtu.be/pM-Jl7SIOqU. (4) An extra-uterine system to physiologically support the extreme premature lamb. E Partridge e outros, 2017. (5) A Trend Study of Preterm Infant Mortality Rate in Developed and Developing Countries over 1990 to 2017. R Sefidkar e outros, 2019.
(6) perinatallifesupport.eu (7) Successful use of an artificial placenta–based life support system to treat extremely preterm ovine fetuses compromised by intrauterine inflammation. H Usuda e outros, 2020.
(8) Self-organization of the human embryo in the absence of maternal tissues. M Zernicka-Goetz e outros, 2016. Self-organization of the in vitro attached human embryo. A Brivanlou e outros, 2016. (9) ISSCR Guidelines for Stem Cell Research and Clinical Translation: The 2021 update. R Lovell-Badge e outros, 2021.
(10) Embryo model completes gastrulation to neurulation and organogenesis. M Zernicka-Goetz e outros, 2022.
(11) An in vivo brain–bacteria interface: the developing brain as a key regulator of innate immunity. M Levin e outros, 2020.
(12) Haploidy in somatic cells is induced by mature oocytes in mice. E Kang e outros, 2022. (13) Viable offspring derived from single unfertilized mammalian oocytes. Y Wei e outros, 2022. (14) Transcriptome profiling reveals signaling conditions dictating human spermatogonia fate in vitro. K Tan e outros, 2020. (15) Neonatal incubator or artificial womb? Distinguishing ectogestation and ectogenesis using the metaphysics of pregnancy. E Kingma e S Finn, 2020.