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Quando os humanos começaram a enterrar os mortos? Polêmica divide cientistas

Um controverso estudo indica que o Homo naledi, um primo extinto dos sapiens, já fazia enterros há 250 mil anos. Mas novas evidências contradizem essa ideia.

Por Bruno Carbinatto
Atualizado em 12 ago 2024, 16h40 - Publicado em 12 ago 2024, 14h00

O Homo sapiens é a única espécie que enterra seus mortos – nenhum outro animal faz isso. O comportamento é visto como um sinal de sofisticação e complexidade – afinal, atribui um significado ritualístico à morte, algo inerentemente humano. As evidências mais antigas de enterros têm 100 mil anos. 

Além de nós, só há indícios fortes de que os neandertais, primos extintos dos sapiens, também enterravam seus mortos. Mas, agora, um novo debate está aquecendo a comunidade científica.

Em 2023, um grupo de pesquisadores publicou uma série de artigos com uma conclusão ousada: os Homo naledi, uma espécie extinta de hominídeos encontrada na África, já faziam enterros – há 250 mil anos. Com isso, esses seriam os registros mais antigos da prática na história, antecedendo os enterros humanos e neandertais em 150 mil anos.

Liderando esse grupo está o famoso paleoantropólogo Lee Berger, pesquisador da National Geographic famoso também por ser uma figura pública na mídia e nas redes sociais. Em 2015, ele liderou expedições no complexo de cavernas Rising Star, na África do Sul, que encontraram mais de mil fragmentos fósseis de ossos que pertenciam a uma espécie de hominídeo até então desconhecida: o Homo naledi.

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Esses primos perdidos dos humanos tinham tamanho diminuto – cerca de 1,40 m –, um cérebro bem menor que o nosso e viveu num intervalo de, mais ou menos, 330 mil anos até 230 mil anos atrás.

Desde o primeiro artigo descrevendo a espécie, em 2015, a equipe por trás da descoberta já fazia sugestões consideradas ousadas por outros pesquisadores, como o fato de que o Homo naledi já tinha controle sobre o fogo e que fazia gravuras rupestres.

Foi só em 2023, porém, que eles publicaram três artigos afirmando que havia evidências de que o hominídeo foi o primeiro a enterrar propositalmente os mortos, precedendo os outros Homo por mais de cem mil anos – uma conclusão ousada. Além dos artigos, a equipe também divulgou essa informação num documentário da Netflix chamado “Explorando o Desconhecido: Caverna de Ossos” (“Unknown: Cave of Bones”, no original).

Nos estudos, os pesquisadores afirmam que os naledi levavam seus mortos para áreas ultraprofundas da caverna, de difícil acesso, propositalmente. Mais: em alguns casos, chegaram a enterrá-los em buracos rasos. E, para fechar com chave de ouro, faziam marcações de símbolos nas paredes do local, atribuindo algum significado simbólico às covas e ao processo, um comportamento considerado altamente complexo. Tudo isso revolucionaria nossa maneira de pensar a evolução dos humanos.

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Quais as evidências, porém? É difícil identificar enterros propositais tão ancestrais. Quem garante que o corpo simplesmente não foi para ali por ação da natureza ou de predadores animais, por exemplo? E, mesmo que os fósseis tenham sido encontrados num buraco que posteriormente foi soterrado, como provar que o buraco foi cavado por indivíduos conscientemente, e não simplesmente uma vala natural, que depois também foi preenchida por processos naturais?

Segundo os pesquisadores, o corpo de pelo menos um indivíduo foi encontrado numa posição fetal, segurando uma pedra, o que indicaria que foi colocado daquele jeito propositalmente. O buraco também teria “bordas” regulares demais, indicativo de ter sido cavado por um hominídeo e não pela natureza. Análises usando raio-X nos sedimentos ao redor também indicariam que a terra teria sido remexida, já que o tamanho das partículas de sedimento naquela região do suposto enterro eram irregulares, diferentemente do resto da caverna.

Por fim, no mesmo sistema de cavernas foram encontrados “riscos” nas paredes que podem ter sido gravados pelos naledi, afirmam os pesquisadores, uma forma muito primitiva de arte rupestre.

Será mesmo?

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Tem um detalhe importantíssimo. Os três artigos feitos pelos pesquisadores foram disponibilizados ao público na forma de “pré-print”. Isso significa que eles não foram oficialmente publicados numa revista científica. Para isso acontecer, os estudos precisam passar por uma rigorosa avaliação e edição de outros cientistas, que vão concluir se eles estão bons o suficiente para a publicação. É a chamada revisão por pares.

Desde que foram submetidos à plataforma eLife, porém, os artigos sobre os enterros dos naledi não foram publicados – porque não foram aprovados no processo de revisão. Segundo os editores, as evidências apresentadas pelos pesquisadores simplesmente eram insuficientes para sustentar a conclusão tão bombástica deles. Mais: eles simplesmente não conseguiram rejeitar a ideia mais simples, de que os corpos encontrados foram parar lá naturalmente – como no caso de uma enchente na caverna.

“Os quatro revisores chegaram a um forte consenso de que os métodos, dados e análises não sustentam as conclusões primárias”, escreve uma nota da eLife que acompanha o pré-print do artigo. “A hipótese nula deve ser que esses esqueletos se acumularam naturalmente, e a pesquisa deve então rejeitar a hipótese nula para poder chegar justificadamente às conclusões notáveis ​​feitas na versão atual do artigo.”

O baque não veio só do processo de revisão. Poucos meses depois da divulgação dos pré-prints, um outro estudo feito por especialistas distintos foi publicado na revista científica Journal of Human Evolution afirmando a mesma coisa. Os pesquisadores analisaram os dados originais da equipe e concluíram que o “enterro” na verdade provavelmente é fruto de um processo natural, e que não há evidências para apontar algo proposital.

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Agora, mais um novo estudo refuta a tese original da equipe descobridora dos Homo naledi. Publicado na revista PaleoAnthropology, o artigo traz os dados de pesquisadores que tentaram reproduzir os mesmos métodos de raio-X e análise de sedimentos usado pelos cientistas no estudo original, e chegaram a conclusão de que não havia diferença significativa entre o solo no local do suposto enterro e o restante da caverna. Nada aponta para uma cova cavada propositalmente.

O artigo também aponta lacunas importantes no pré-print, como descrições mais detalhadas de como a análise de sedimentos foi feita, para que os achados possam ser reproduzidos. A replicabilidade das conclusões, ou seja, a possibilidade de que uma mesma descoberta possa ser confirmada por outros cientistas, é um dos pilares da ciência – e anda em crise

“Acreditamos que os pré-prints representam um exemplo em que a análise de dados foi fortemente influenciada por uma narrativa pré-estabelecida”, diz o novo artigo.

Sobre as marcas nas paredes, supostamente gravadas pelos naledi, os pesquisadores críticos afirmam que a equipe original não considerou duas possibilidades: a primeira é de que elas tenham sido fruto de algum processo natural. A segunda, de que de fato são marcas feitas por humanoides.. mas, como não há datação, nada garante que foram os naledi mesmo. Por que não humanos que se aventuraram na caverna muito depois, talvez milhares de anos depois? É difícil saber.

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A equipe dos estudos originais, que defendem a ideia dos enterros dos naledi, concordam que suas análises estão incompletas e alguns sentidos – mas dizem que o trabalho está em construção, ainda em fase de pré-print, e que a versão final dos estudos trará atualizações e mais provas.

Críticos, por sua vez, continuam céticos. Eles não negam, de supetão, a possibilidade de que os Homo naledi enterravam os mortos – mas afirmam que, com as evidências disponíveis atualmente, isso ainda é uma conclusão precipitada e muito ousada. Como diria Carl Sagan: “afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”.

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