Streaming e pandemia: a tempestade perfeita que coloca os cinemas em xeque
Netflix e companhia já eram uma ameaça real ao futuro das salas de exibição, mesmo com blockbusters bem-sucedidos. Então veio a covid-19. E agora? O hábito de ir ao cinema pode estar com os dias contados?
Mil lugares. Era monumental, a minha sala de cinema preferida: o Astor, no Conjunto Nacional, esquina da Av. Paulista com a Rua Augusta. Foi lá que vi E.T., ainda criança. Assistir àquele voo de bicicleta com a Lua ao fundo numa tela da extensão de uma casa, ao lado de centenas de desconhecidos emocionados… foi algo singular. O fechamento desse cinema, em 2001, foi, para mim, como a demolição de um lar onde passei da infância à vida adulta. Desde 2006, o mesmo espaço abriga uma megastore da Livraria Cultura. Menos mau.
Outros cinemas tradicionais viraram estabelecimentos sem vínculo com arte e cultura. O Cine Ritz, de Curitiba, inaugurado em 1948, deu lugar a uma loja do Magazine Luiza. O Copan, que abriu as portas em 1970, virou um templo evangélico – bem no edifício do ateu Niemeyer.
Não é de hoje que os cinemas de rua têm enfrentado desafios para permanecer de pé. Nas últimas décadas, o público migrou para os multiplex de shopping, atraídos pelo estacionamento coberto, a babel gastronômica nas praças de alimentação e a onipresença dos blockbusters.
Aliás, os filmes arrasa-quarteirão – megaproduções engendradas para um lucro astronômico, com a prevalência de enredos com heróis de HQ e franquias – se tornaram o esteio a desmentir os obituários dos cinemas. Efeitos especiais de som e imagem, caros a esse tipo de filme, proporcionam uma vivência muito mais intensa dentro de salas descomunais.
Só que a pandemia veio sabotar essa lógica.
Os investimentos multimilionários de um blockbuster são viáveis pela (quase) certeza de que o filme vai encher cinemas mundo afora. Mas, claro, isso não vem acontecendo. Uma sala fechada, com ar-condicionado no talo e centenas de pessoas, dá a impressão de ser uma pequena Chernobyl agora, mesmo com o arrefecimento da pandemia em alguns países desenvolvidos. Por isso, os exibidores precisam seguir protocolos sanitários que não ornam com rentabilidade. No Espaço Itaú de Cinema, um dos templos da cinefilia paulistana, há um sistema automatizado: quando você compra um ingresso, os lugares à sua volta são instantaneamente bloqueados. E nem isso tem convencido os habitués. A ocupação tem sido inferior a 10% da capacidade.
Blockbusters, claro, são inviáveis nesse cenário de salas quase vazias. Então os estúdios estão adiando seus lançamentos mais robustos. 007: Sem Tempo para Morrer, que tinha estreia agendada para abril, ficou para setembro. Ghostbusters: Mais Além, a sequência da franquia Os Caça-Fantasmas, foi para novembro.
Há uma janela de três meses antes de os filmes irem para o streaming. Mas isso está acabando.
E o resultado é que, nos EUA, as bilheterias caíram 80% em 2020. É um número particularmente trágico num país que, diferente do Brasil, tem no cinema uma indústria de fato. A maior rede de salas exibidoras do mundo, a AMC, registrou um prejuízo de US$ 900 milhões no terceiro trimestre do ano passado e, em novembro, transmitiu uma mensagem dura a seus investidores: “há dúvidas substanciais sobre nossa capacidade de continuar operando”.
Como se não bastasse, há outro vírus que apavora os exibidores tanto quanto o Sars-Cov-2: o streaming. Grande parte da realização cinematográfica encontrou um novo abrigo na internet, já que gigantes como Netflix e Amazon têm cacife para investir em suas próprias produções – vide O Irlandês, do veterano Martin Scorsese, bancado pela Netflix.
Mas o que levou muita gente a vislumbrar o juízo final das salas foi o anúncio, em dezembro, de que a Warner vai lançar todos os seus filmes em seu serviço sob demanda – o HBO Max – na mesma data em que eles chegarem à tela grande. E isso inclui potenciais hits como Matrix 4 e Esquadrão Suicida. Até agora, os cinemas tinham o trunfo da novidade: uma janela de três meses antes que os filmes fossem para o streaming. Essa dianteira tende a desaparecer.
A última sessão de cinema?
Embora essa combinação de pandemia e menu de filmes em casa sugira um novo estado de coisas, é bom ser prudente antes de atestar o óbito das salas de cinema. Em 1951, quando a TV se consolidava como um entretenimento completo, o produtor David O. Selznick (de E o Vento Levou) disse: “Hollywood é como o Egito: cheio de pirâmides em ruínas. Vai continuar desmoronando até que finalmente o vento sopre o último adereço de estúdio nas areias”. Só que, assim como as pirâmides, tanto os estúdios quanto as salas estão aí até hoje. Sobreviveram à TV e, depois, às locadoras e à pirataria. Os cinemas têm insistido em respirar mesmo após anos e anos de Netflix. E dá para melhorar essa situação.
O fortalecimento dos exibidores pode passar pelo incentivo estatal. França, Itália e Espanha, países de Godard, Fellini e Almodóvar, lançaram subsídios milionários para arcar com os prejuízos das salas durante a quarentena. No Brasil, o Olympia, de Belém, considerado o cinema de rua mais antigo do país (108 anos), tem sua permanência garantida com verba da prefeitura. Já o Cinema São Luiz, no Recife, é mantido pelo governo pernambucano.
E o streaming pode fazer parte da solução também. Em 2019, a Netflix anunciou um acordo de concessão com o Paris Theater, um dos cinemas mais tradicionais dos EUA, para promover seus filmes (lançou por lá História de um Casamento, com Scarlett Johansson). Na prática, a ação da empresa salvou a sala, que estava aos trancos e barrancos. Acordos desse tipo permitiriam que Amazon, Disney e Netflix – com dinheiro de pinga para eles – chamassem atenção para seu acervo.
Tudo isso, claro, depende de uma resposta que virá com a vacinação em massa: como se comportará o consumidor de filmes nesse novo mundo? Vai encher as salas, recuperando uma experiência que o vírus lhe negou? Ou a mudança de hábito persistirá? Uma pista pode estar vindo do outro lado do mundo: 3,4 milhões de japoneses (quase 3% da população) entraram de máscara em salas de cinema, em outubro, para assistir ao lançamento de Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba the Movie: Infinite Train, uma animação baseada numa HQ popular por lá.
Mesmo se fenômenos como esse se tornem mais raros, o fato é que os cinemas tendem a sobreviver. Talvez subsidiados ou patrocinados, certamente em menor número, mas vivos. Porque a experiência coletiva que eles proporcionam, mesmo na mais humilde das salas, sempre irá superar qualquer home theater.