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“Títulos e prêmios não impedem ninguém de falar besteira”

Yamashita conversou sobre o fenômeno da autoajuda quântica e explicou por que tantos picaretas se apropriam dessa área para disseminar ciência de mentira.

Por Ingrid Luisa, Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 17 Maio 2023, 17h17 - Publicado em 1 jul 2019, 20h17

Marcelo Takeshi Yamashita, especialista em condensados de Bose-Einstein, é diretor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp, fundado em 1952 e atualmente sediado no bairro da Barra Funda, em São Paulo. Ele é um dos diretores do Instituto Questão de Ciência, inaugurado no final de 2018 para pressionar as autoridades a levar evidências científicas em consideração ao formular políticas públicas.

Em maio, ele conversou com a SUPER sobre um fenômeno do mercado editorial: os coaches e autores de autoajuda que misturam doutrinas esotéricas e uma versão picareta da física quântica – que distorce algumas das descobertas mais importantes das ciências naturais no século 20. Essa entrevista faz parte da matéria “O Novo Obscurantismo”, capa da edição de julho. Leia aqui.

A mecânica quântica é o ramo da Física que se dá melhor em descrever os fenômenos que acontecem em escala microscópica. É nela que se baseia nossa compreensão atual de partículas subatômicas, átomos e moléculas (conjuntos de átomos). 

Interpretações ingênuas e equivocadas das conclusões dessa área movimentam um enorme mercado de livros, palestras motivacionais e até cursos de saúde quântica em universidades particulares. Tornou-se lugar comum afirmar que a consciência é capaz de influenciar de alguma forma o desfecho de acontecimentos – bastaria ter pensamento positivo para alcançar o que se deseja, e estados de espírito poderiam ser identificados como ondas de uma certa frequência. 

Marcelo explica o quê é a física quântica de verdade, desmente alguns mitos sobre sua aplicação e esclarece por que ela diz respeito apenas ao mundo microscópico.

Quais são os conceitos da física quântica que os esoteristas costumam incorporar às suas hipóteses?

Posso destacar quatro: a dualidade onda-partícula, o Princípio da Incerteza, o termo energia e o experimento imaginário do gato de Schrödinger. Vou explicá-los.

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A dualidade onda-partícula é o seguinte: partículas fundamentais – como um elétron ou fóton, por exemplo – apresentam um comportamento que chamamos de dual. Em algumas situações, agem como onda; em outras, como partícula. Essa dualidade (que não se aplica ao nosso mundo macroscópico cotidiano) é utilizada pelo esotéricos para dizer que “tudo é onda”, “tudo é vibração”.

Agora o Princípio da Incerteza. Ele diz, grosso modo, o seguinte: se soubermos a velocidade de uma partícula com uma precisão infinita, simplesmente não saberemos sua posição. Já se soubermos sua posição, não saberemos a sua velocidade. Essa é uma limitação imposta pela natureza à medição dessas duas grandezas.

O Princípio decorre de uma série de procedimentos matemáticos desenvolvidos em 1925 por Werner Heisenberg que descrevem muito bem algumas propriedades do mundo quântico. Mas ele é comumente utilizado por esoteristas para relativizar a realidade. O argumento é simples: já que nada está determinado, tudo pode ser modificado pelo pensamento.

Então, há a apropriação do termo energia. Há energias muito bem definidas na física – como a energia cinética ou energia potencial gravitacional, por exemplo. Os esotéricos gostam, porém, de criar uma categoria de energias que só eles conseguem sentir: eles a classificam como boa ou ruim e dizem que estaria relacionada aos sentimentos das pessoas ou à disposição dos objetos em um ambiente (o conhecido Feng Shui).

Por fim, há o gato de Schrödinger. Nesse experimento mental, há um gato dentro de uma caixa. Junto com ele, há um vidro de veneno. O veneno será liberado dependendo da desintegração de um núcleo atômico radioativo. Isso pode ou não acontecer [para entender melhor o que são átomos radioativos e por que eles se desintegram, leia esta reportagem].

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Antes da abertura da caixa e verificação do estado do gato, portanto, ele pode ser descrito como estando morto e vivo ao mesmo tempo. Isso é invocado pelos esotéricos como um exemplo de que a consciência influencia a realidade. Essa influência, porém, não existe. Ou o núcleo atômico se desintegra, ou não. Ou gato estaria morto OU vivo – e não morto E vivo – se qualquer equipamento, independente da participação de uma pessoa, realizasse a observação.

Por que a física quântica é tão suscetível a interpretações picaretas?

A física quântica tem muitas peculiaridades que nem os físicos compreendem direito. Imagine, então, o que pensa uma pessoa que não está acostumada com o ferramental matemático e as ideias contraintuitivas dessa área. Posso apostar que a maioria das pessoas que menciona a física quântica no cotidiano não sabe o quê o termo realmente significa. As lacunas no conhecimento são, então, preenchidas pelo esoterismo.

Outro ponto é que é tentador, para uma pessoa comum, transpor essas ideias para o dia a dia. A ideia de que a consciência influencia o mundo físico é reconfortante para quem busca alcançar um objetivo (“pense positivo porque você atrairá o que você quer”) ou para quem falhou e quer se consolar (“você não conseguiu porque tem muita inveja em cima de você e isso atrai uma energia ruim”). Não ter controle sobre a vida é incômodo.

Infelizmente, os conceitos que se aplicam ao mundo dos átomos não podem simplesmente ser estendidos para a vida como a conhecemos. O mundo macroscópico em que vivemos, embora dependa de diversas tecnologias baseadas na física quântica (GPS, ressonância magnética, radioterapias), se comporta de acordo com a física clássica. Não existe “salto quântico” na vida.

Em que época os esoteristas descobriram a física quântica? 

A física quântica surgiu no início do século 20 e é difícil saber quando, exatamente, os esotéricos se deram conta da sua existência. Apesar de não mencionar explicitamente a palavra “quântica”, o livro Kybalion, ou Caibalion, publicado em 1908 e assinado por um misterioso pseudônimo, diz no capítulo 9:

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“O Terceiro Grande Princípio hermético – o Princípio de Vibração – compreende a verdade que o Movimento é manifestado em tudo no Universo, que nada está parado, que tudo se move, vibra e circula (…) as descobertas científicas do século 20 acrescentaram as provas de exatidão e verdade à secular doutrina hermética.”

Muitas das ideias esotéricas de hoje, como a disseminada lei da atração – a ideia pseudocientífica de que a força do pensamento é capaz de atrair saúde, prosperidade etc. –, apresentam similaridades com o Kybalion.

Mas a apropriação da física pela autoajuda demorou um pouco para se disseminar nas livrarias. Eu diria que o primeiro livro que se tornou um best seller propagando a ideia de uma relação entre a física quântica e algo esotérico foi o Tao da Física, escrito nos anos 1970 por Fritjot Capra.

Amit Goswami, que cunhou o termo “misticismo quântico”, é doutor em física. 

Títulos e prêmios não impedem ninguém de falar besteira. Linus Pauling, químico, não ganhou um Prêmio Nobel, mas dois: um de química e um da paz. Mesmo assim, ele defendia a utilização de doses absurdas de vitamina C como uma maneira de prevenir o aparecimento de câncer – algo que nunca teve nenhum respaldo científico.

Por que o senhor acha que pessoas desse gabarito relativizam conceitos físicos?

É impossível saber ao certo por que “gurus quânticos” como Goswami, Capra ou Chopra disseminam essas ideias. Mas com certeza é mais lucrativo palestrar sobre “misticismo quântico” que fazer pesquisa séria.

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O uso da física quântica em filmes como Vingadores: Ultimato é positivo ou negativo para a ciência séria?

Nos estudos literários há uma expressão cunhada para definir a atitude voluntária de aceitar coisas fantásticas ou absurdas em troca de diversão: “suspensão da descrença”. Momentaneamente, nós deixamos de lado a racionalidade e nos entretemos com monstros, fantasmas e super-heróis que voam.

A maneira como um fato fantástico aparece para o espectador pode mudar e se adaptar com o tempo. Por exemplo: os poderes do Homem Aranha nos anos 1960 foram adquiridos quando ele foi picado por uma aranha radioativa – bem ao estilo Guerra Fria –, já no filme de 2002 o herói protagonista é picado por uma aranha geneticamente modificada.

Eu ainda não assisti Vingadores: Ultimato – tomei um spoiler. Acho que quem vai assistir um filme assim sabe que o que está na tela é ficção. A questão é outra: às vezes, por exemplo, alguém resolve assistir o filme porque o horóscopo do jornal recomendava ir ao cinema nesse dia. É muito estranho para mim essa coexistência de razão e crença.

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