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Fernanda Almerón usa DNA para saber se há peixes em extinção à venda no mercado

Cação é um termo guarda-chuva, que se refere a qualquer tipo de tubarão ou raia. A #MulherCientista de hoje lê o genoma dos filés para saber se o consumidor está comprando gato por lebre – ou comendo uma espécie ameçada.

Por Maria Clara Rossini
Atualizado em 3 ago 2022, 11h11 - Publicado em 28 fev 2021, 15h48

Você já deve ter comprado ou visto uma posta de cação no supermercado. O principal atrativo dele é ser uma carne sem espinhos. Mas não adianta procurar pelo animal “cação” em um livro de biologia: ele não vai estar lá, porque cação não é uma espécie. O que você realmente está comendo?

Cação é uma nomenclatura ampla, que geralmente abrange peixes cartilaginosos como tubarões e raias. Nas embalagens congeladas de supermercado, o cação-azul equivale ao tubarão-azul e o cação-martelo é o tubarão martelo. O cação fresco da peixaria, por sua vez, pode vir de dezenas de espécies diferentes pescadas no litoral brasileiro. 

A gaúcha Fernanda Almerón se interessou pelo cação ainda na graduação, quando fazia um intercâmbio na Austrália e participou de um projeto de análise genética de filés. Ela visitou peixarias da região em que estudava para recolher amostras de animais vendidos sob o nome flake (análogo australiano à nomenclatura “cação” no Brasil) e posteriormente identificá-los em laboratório. Quando voltou, fez o mesmo no comércio do Sul brasileiro.

A ideia deu tão certo que se estendeu para o programa de pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela e seus colegas analisaram 63 amostras de cação. Eles esperavam encontrar apenas tubarões e raias – o que se enquadraria nas normas da legislação brasileira. No entanto, as análises de fragmentos de DNA mostraram que as carnes correspondiam a mais de 20 espécies diferentes, incluindo peixes que não são cartilaginosos, como bagre e peixe-espadarte. Esses dois são peixes ósseos, com espinhos, e teoricamente não poderiam ser vendidos como cação.

É impossível diferenciar os peixes visualmente porque o cação é quase sempre vendido em postas já fatiadas. O jeito mais confiável de determinar a origem da carne é com uma mãozinha do genoma. A pesquisadora não precisa ler o DNA inteiro: analisa apenas um único gene, localizado em uma estrutura da célula chamada mitocôndria. (A maior parte do DNA fica no núcleo das nossas células, mas alguns genes ficam nas mitocôndrias.)

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Se você vai escolher um gene só, é bom escolher um que esteja presente em várias espécies, e que mude bastante de espécie para espécie. Assim, será possível diferenciar as espécies com clareza. No caso, Fernanda usa o gene que contém a receita para fabricar uma proteína chamada COI, que atende esses pré-requisitos. 

O DNA é uma molécula comprida formada pelas bases nitrogenadas guanina (G), citosina (C), adenina (A) e timina (T). Um gene corresponde a uma sequência de centenas ou milhares desas bases. Elas ficam enfileiradas como em um colar de miçangas – e em cada espécie a sequência de miçangas é diferente, porque o gene é diferente. Como se fosse uma senha, ou um código de barras.

De fato, a técnica usada por Fernanda transforma essas informações em um código de barras, em que cada base nitrogenada corresponde a uma cor. Daí, o computador compara a sequência extraída do peixe do mercado com as sequências presentes em um banco de dados para descobrir qual é a espécie. 

Esses códigos de barra moleculares revelaram não só peixes ósseos sendo vendidos como cação, mas também que 40% das espécies encontradas estão ameaçadas de extinção. É o caso, por exemplo, do tubarão-anjo. Depois de muitos trâmites legais que ocorreram entre 2014 e 2018, a justiça não proibiu a venda e pesca desse animal – mesmo que o consumo contribua para o desaparecimento da espécie.

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O mínimo que o consumidor deveria saber é qual peixe está comendo. Ele poderia, por exemplo, optar por não contribuir com a extinção de uma espécie. Infelizmente, ninguém consegue ler DNA em casa. Fernanda propõe uma legislação que obrigue que as carnes sejam documentadas desde a pesca até o momento em que chegam na peixaria ou restaurante – assim como ocorre com a madeira de lei.

Agora, a pesquisadora está fazendo um trabalho semelhante com o peixe branco vendido em forma de sashimi. É o mesmo caso: qualquer espécie de peixe de carne branca pode ser vendida como peixe branco. Ela recolheu amostras de restaurantes de comida japonesa e verificou que, em alguns casos, a espécie de peixe informada pelo cozinheiro não correspondia ao observado em laboratório. O estudo completo deve ser publicado ainda este ano.

No futuro, ela pretende se especializar em química para fazer a análise de metais pesados presentes nos peixes e outros alimentos. Os tubarões, por exemplo, possuem uma alta concentração de metais por estarem no topo da cadeia alimentar marinha. Eles comem peixes, que comem algas, que estão contaminadas pela poluição despejada no mar. Por isso, inclusive, a carne de cação não é recomendada para mulheres grávidas.

“Você faz uma escolha para a sua vida ao decidir o que quer comer. Seja pela saúde, pela religião ou pela preservação ambiental. Acho que muita gente gostaria de saber o que está comendo, e talvez optasse por não comer se soubesse”, diz a pesquisadora.

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