Kamilla Souza e a maior coleção de cérebros de golfinhos da América Latina
Entenda o trabalho da bióloga da UFRJ, que foi também a primeira cientista a coletar um cérebro de baleia no Brasil
Estudar e mapear em detalhes o cérebro de quatro golfinhos brasileiros. Esse era o projeto de pesquisa de doutorado que a bióloga Kamilla Souza apresentou à sua banca de qualificação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2018.
Os examinadores, porém, encararam o projeto com ceticismo, e pediram à candidata que estruturasse um plano B para a situação que parecia a mais provável: a de não conseguir cérebro algum.
Até aquele momento, nem Kamilla nem a banca conheciam pesquisas feitas com cérebros de animais coletados aqui mesmo, no Brasil. Todos precisavam ser importados, e a banca achou que parecia utópico que a pesquisadora conseguisse, no tempo de um doutorado, quatro bons exemplares.
“Eu entendo a banca totalmente. Eles falaram ‘essa menina tá doida’. Mas aí eu passei, e dos quatro espécimes que eu precisava, no final dos quatro anos do meu doutorado eu tinha mais de 50”, conta a bióloga e pesquisadora da UFRJ apoiada pelo Instituto Serrapilheira. Hoje, Kamilla é responsável pela maior coleção de cérebros de golfinhos da América Latina.
Kamilla sempre priorizou que os materiais e as técnicas de pesquisa aproveitassem o que há de disponível no país. Essa história acaba com uma geladeira cheia de cérebros em potes de vidro em um laboratório da UFRJ e um mapeamento inédito do cérebro do boto-cinza, espécie de golfinho que é símbolo do Rio de Janeiro. Mas começou com Kamilla, já mestre em neuromorfologia, indo até o Japão para aprender as técnicas de coleta e armazenamento dos cérebros de animais.
De volta ao Brasil, foi atrás de parcerias com instituições que têm acesso aos animais encalhados. Depois, procurar uma resposta que nenhuma instituição ou instância sabia dar: quais as licenças necessárias para regularizar a coleta? “São várias coisas que dificultam, você tem que ter o conhecimento de campo, tem que ter o conhecimento de análise, tem que saber rodar burocracia. Foi muita coisa que teve que ser descoberta, porque não tinha ninguém pra me falar”, conta.
A partir daí, começaram as aventuras da verdadeira “ciência de guerrilha”. Teve a emoção de ser a primeira pessoa a coletar um cérebro de baleia no Brasil, que exigiu que ela e os seus colegas nadassem do barco até uma ilha remota carregando materiais de coleta.
Ou as muitas vezes que teve que se explicar no raio-x do aeroporto, levando cérebros na mala. Para evitar esse tipo de desgaste, teve a vez em que ela alugou uma picape, encheu a caçamba de cérebros e dirigiu por horas até a USP. Lá, uma parceria permite que os órgãos sejam analisados na única máquina de ressonância magnética de ultra alta-resolução que comporta animais grandes da América Latina.
Foi através dessa parceria que a pesquisadora pôde fazer o mapeamento de um cérebro de golfinho mais detalhado de que se tem notícia, e resolver uma velha controvérsia do campo: ela foi a primeira a provar que o boto-cinza tem, sim, a glândula pineal, responsável pela regulação do relógio biológico. A descoberta permite a compreensão mais detalhada de como funcionam os cérebros desses animais conhecidos pela inteligência, e pode abrir caminho para outras pesquisas relacionadas à neuropatologias, como o Alzheimer.
Em 2022, Kamilla foi selecionada para uma bolsa de estudos em neuroimagem promovida pela Universidade de Oxford. Inicialmente, o curso era focado apenas no estudo de humanos, mas os professores se impressionaram com os seus estudos sobre os cérebros de cetáceos. Atualmente, desenvolve um projeto em que trará de Oxford as tecnologias para imagem dos materiais coletados aqui, com a participação de pesquisadores brasileiros. “Foi então que eu vi que isso de fato é o interesse mundial, porque o material é bem raro.”
Em 2024, a rede de parcerias que ela criou foi oficializada na Rede Brasileira de Neurobiodiversidade, e recebe o apoio do Instituto Serrapilheira. Agora, Kamilla se concentra em fortalecer a linha de pesquisa que ela mesma criou. Algumas das prioridades são capacitar pesquisadores para a coleta e tornar o material disponível para outras pesquisas.
“Às vezes eu fico pensando se não era para eu estar fazendo as minhas coisas… o meio acadêmico parece que só conta se você publicar, né? Só que tem coisas que fazem a gente pulsar mais do que isso, sabe? Ver um aluno querendo trabalhar com isso me deixa mais feliz do que uma publicação”, ela conta. “Eu quero daqui um tempo olhar para trás e ver um monte de gente fazendo isso porque alguém começou.”