A síndrome em que humanos acreditam estarem grávidos de cachorros
Essa ilusão, comum em periferias indianas, gera sintomas bem reais: muitos adultos sãos juram ter ouvido latidos ou até assistido aos partos.
Geralmente, se uma pessoa é mordida por um cachorro, ela é orientada a lavar o local e procurar serviços médicos para receber vacinas contra tétano e raiva. Mas em alguns lugares da Índia, a preocupação é outra: que a saliva do cachorro possa te engravidar com cachorrinhos.
O fenômeno não tem nome em português, mas é conhecido em inglês como puppy pregnancy syndrome ou “síndrome da gravidez de filhotes”. Parece piada, mas é real e tem várias descrições na literatura científica. Segundo uma pesquisa de 2003, em uma comunidade rural a 48 km de Calcutá, 73% de 42 adultos selecionados aleatoriamente acreditavam na síndrome da gravidez de filhotes com certeza absoluta.
A antropóloga norte-americana Deborah Nadal identificou esse papo em conversas de crianças da periferia de Nova Delhi, e resolveu entrevistar pessoas de todas as idades para uma pesquisa sobre o assunto.
No início, ela achava que talvez as crianças estivessem se confundindo com informações sobre o contágio da raiva – ou, simplesmente, inventando histórias. Mas, com o tempo, ficou claro que muitos acreditavam verdadeiramente que quem leva mordida de cachorros, corre o risco de ficar grávido de cachorrinhos.
“Em várias ocasiões, durante minhas conversas com adultos, perguntei se eles já haviam conhecido alguém que não considerasse sua convicção confiável e, portanto, a questionasse. Com a maior seriedade, todos responderam negativamente, afirmando claramente que na sua favela em Nova Délhi, bem como em seu vilarejo natal, todos sabem o que acontece com as vítimas de cães raivosos.”, ela escreveu no artigo publicado em 2018.
Outro estudo, de 2003, narra os casos de sete pessoas de vilas rurais próximas a Calcutá que acreditavam terem passado por uma gravidez do tipo. Os relatos de como o fenômeno acontecem variam nos detalhes, mas em geral, concordam que acontece mais ou menos assim:
A saliva do cachorro contém algo venenoso que circula pelo sangue até o abdômem. Então, dentro de um período curto de tempo (entre três dias e três meses), a pessoa começa a sentir o movimento e ouvir os latidos dos filhotes dentro da própria barriga. Os bichinhos podem causar dores, problemas gastrointestinais e mudanças de humor.
A única forma de tratar é através de medicamentos e rituais tradicionais. Sem o tratamento, a vítima quase sempre “enlouquece” – ou seja, exibe os sintomas da raiva, como alucinações, agitação e hidrofobia – e morre.
Mas antes disso, ela pode, é claro, parir.
Nadal registrou diversos relatos de partos vaginais de filhotes de cachorros – uma mulher até a levou ao local específico em que assistiu uma mulher dar a luz a 14 filhotinhos. No caso das mulheres, acredita-se que o quadro é menos grave, já que elas, naturalmente, têm por onde parir.
Acontece que os homens também podem, supostamente, sofrer da gravidez de filhotes, e aí sim a situação fica crítica. De acordo com as tradições locais, eles podem liberar os animais por diversos meios, todos extremamente dolorosos.
A crença mais comum é de que eles expelem pedacinhos de filhotes pelo pênis, quando urinam. Dois pacientes homens chegaram a levar para os pesquisadores de 2003 garrafas de urina com supostos fragmentos do parto.
Mas o corpo masculino pode encontrar outras saídas para os bebês, como narinas e boca. Em uma das entrevistas realizadas por Nadal, um homem relata ter visto um parto desse tipo, em que outro homem pariu filhotes tão longos e grossos quanto o seu dedo indicador.
A antropóloga também conta que ele “também se lembrou vividamente deles fazendo o som ‘au, au, au, au’. Enquanto repetia esse som, ele imitava filhotes recém-nascidos que choram pela mãe, fechando os olhos, franzindo o rosto e simulando uma expressão vulnerável e triste.”
A pesquisadora defende que o fenômeno provavelmente surgiu em reação ao medo popular tanto da raiva quanto das vacinas antirrábicas. O seu artigo sobre síndrome de gravidez de filhotes foi apenas um achado lateral, e sua principal investigação de pós-doutorado é sobre as concepções dos indianos sobre a raiva (a doença).
Os autores do artigo de 2003, que são indianos, acreditam que se trate de uma “síndrome ligada à cultura”, como são chamados quadros sem causas biológicas conhecidas mas que se espalham por um grupo cultural.
O conceito é controverso, e em 2013, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, feito pela Associação Americana de Psiquiatria, abandonou o termo, preferindo o novo nome “Conceitos Culturais de Sofrimento” ou de “Desajustamento Psicológico/de Mal Estar”.
O fenômeno, embora inusitado, não é inofensivo. Além do intenso sofrimento mental das vítimas, muitas vezes as pessoas deixam de procurar a vacinação antirrábica depois de um acidente, preferindo a medicina tradicional. A desconfiança em relação aos médicos e governos só piora a situação, porque é raro que as tentativas de conscientização exerçam efeitos positivos.
Nadal aponta que as visões das culturas sul-asiáticas sobre os cães podem contribuir para o fortalecimento desses medos. Tanto o hinduísmo como o islamismo, as religiões mais comuns na Índia, veem o cachorro como um animal impuro e vulgar.
“No hinduísmo, os cães geralmente ocupam o último lugar na hierarquia animal e, portanto, são considerados a espécie mais impura”, Nadal escreve. “Dirigir-se a alguém com a expressão “filho de um cão” está entre as piores ofensas para um muçulmano”