“Efeito testemunha”: por que observamos atos violentos sem tentar ajudar?
Só 10% das pessoas ajuda um estranho em perigo quando há outros estranhos por perto – a expectativa é que outra pessoa se prontifique. Entenda esse fenômeno, que é um velho conhecido dos psicólogos.
No dia 30 de maio, a médica carioca Ticyana D’Azambujja, 35, não conseguia dormir por causa de uma festa na casa vizinha. A algazarra já durava mais de 24 horas, e ela ligou várias vezes para a polícia, que não apareceu. Irritada – Ticyana faz plantões de madrugada, na linha de frente contra o coronavírus –, ela desceu de seu apartamento no bairro do Grajaú, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e bateu com um martelo no vidro do carro de luxo de um dos convidados, que estava estacionado na porta. Vários homens saíram da casa e começaram a espancá-la.
A cena foi registrada por câmeras de segurança. Dezenas de transeuntes e convidados observaram sem reação enquanto um dos agressores enforca a mulher até ela desmaiar e outro quebra seu joelho. Ticyane se agarrou ao guidão de uma moto e tentou pedir ajuda ao piloto, que se nega e soca as mãos da médica até ela soltá-lo. O dono do carro danificado, que acompanhou o espancamento, é Luiz Eduardo Salgueiro, sargento do Batalhão de Choque da Polícia Militar do Rio. Ele foi afastado da corporação.
No Twitter, o que mais chamou a atenção dos usuários não foi a brutalidade do sargento e seus amigos, mas as testemunhas que acompanham o desenrolar dos fatos sem atender os pedidos de socorro – o ápice é o motoqueiro que agride a médica unicamente para não se envolver na briga e conseguir fugir.É evidente que, em situações de violência extrema, o medo de também se ferir pode ser maior do que a vontade de fazer alguma coisa (com razão: o único vizinho que tentou defender Ticyane também apanhou).
Mas não é só isso: o mesmo comportamento é verificado em situações em que não há risco algum para quem presta socorro. Por exemplo: em um experimento realizado pelo psicólogo americano Bibb Latané em 1969, ele e sua equipe convidaram um grupo de estudantes universitários para participar de uma pesquisa de mercado sobre jogos de tabuleiro. Era só um pretexto, é claro. Os alunos eram levados a uma sala de espera e uma mulher pedia que eles preenchessem um questionário preliminar enquanto ela terminava os preparativos na sala ao lado.
Quando a mulher atravessava uma cortina e sumia da vista dos voluntários, eles ouviam o barulho de um enorme móvel se espatifando no chão – e um grito de socorro. A mulher com que haviam acabado de conversar dizia que estava com o tornozelo preso debaixo do armário e não conseguia se mexer. Quando os estudantes estavam na sala de espera sozinhos, 70% deles se levantavam na hora para resgatá-la. Porém, se eles estivessem acompanhados de outra pessoa (um participante fake, instruído a não ajudar em hipótese alguma), apenas 10% tomavam uma providência.
Ou seja: 9 em cada 10 pessoas deixam um estranho agonizar atrás de uma cortina quando há outro estranho presente. Essa cifra deprimente foi replicada em muitos estudos desde então – este outro artigo analisou 16,2 milhões de ligações para ao número 190 nos EUA. Em apenas 11% dos casos os socorristas chegaram ao local e encontraram transeuntes acudindo a vítima.
O fenômeno, batizado em inglês de bystander effect (em português, algo como “efeito espectador” ou “efeito testemunha”), é objeto de estudo acadêmico desde 1964 – quando uma mulher chamada Kitty Genovese, de 28 anos, foi morta a facadas em plena luz do dia no Queens, em Nova York, e nenhuma das 38 testemunhas fez nada para ajudá-la. Os peritos descobriram depois que esse número, calculado por repórteres do New York Times, havia sido muito superestimado – havia bem menos gente por perto. Mas o nome ficou.
Bibb Latané afirma que há muitos fatores além da mera má-vontade em jogo no bystander effect. O primeiro é o medo de passar vergonha ou ser julgado: a presença de uma pessoa que não toma uma atitude faz quem toma uma atitude parecer desnecessariamente heróico ou exagerado. Isso é suficiente para coibir nossas ações, porque nos importamos um bocado com o que os outros pensam. Na maior parte das vezes, ironicamente, os outros estranhos estão pensando exatamente a mesma coisa, e todos os presentes na cena estão no mesmo impasse: sentindo vontade de agir, mas se sentindo observados por gente que opta por não agir.
Outro problema é a diluição de responsabilidade. Se há muitos voluntários em potencial, cada um considera que tem uma parcela de responsabilidade muito pequena sobre as consequências negativas de não fazer nada.
A psicóloga Francesca Gino, de Harvard, afirmou em uma entrevista à Harvard Gazette que o bystander effect pode explicar por que, em maio de 2020, três outros policiais observaram Derek Chauvin asfixiar George Floyd pelo pescoço em Minneapolis e não fizeram nada. A cultura de violência impregnada na corporação faz um policial questionar como será julgado se questionar as atitudes de outro policial.
Sempre há a possibilidade de que todos os policiais na cena estivessem tão mal-intencionados quanto Chauvin; mesmo assim, eles sabiam que os vídeos feitos por transeuntes poderiam ser utilizados para incriminá-los como cúmplices. Ou seja: em princípio, também havia um interesse egoísta em interromper a ação.
Em um artigo publicado em 2016, o psicólogo Steven Pinker, de Harvard, defendeu que a natureza do bystander effect muda conforme o grau de conhecimento que você tem sobre o grau de conhecimento das outras pessoas envolvidas. Explicando melhor com um exemplo do próprio Pinker: imagine que você é um universitário que divide um apartamento com quatro outros colegas. O proprietário liga e avisa que a companhia de água vai cortar o fornecimento no dia seguinte – e é uma boa ideia fazer estoque.
Sua primeira reação seria correr para a cozinhar e começar a encher algumas garrafas pet vazias. Porém, se você já tivesse ouvido o proprietário ligar para os outros estudantes, seu ímpeto de tomar uma atitude diminuiria drasticamente. Você ficaria esperando eles agirem – afinal a água importa para eles tanto quanto para você.
Pois é: entre Homo sapiens, jogar a responsabilidade no colo alheio não é a exceção, é regra. Então, da próxima vez que alguém precisar de você, ajude. Com um exemplo, quem está em volta provavelmente ajudará também.