Infografia: Artes de computador
Da ciência ao cinema, da indústria à publicidade, uma nova técnica cria mundos sob medida. Produto da informática e das artes gráficas, estimula ousadias até os limites da imaginação
Norton Godoy
Entediado com a monotonia do Paraíso e saudoso dos tempos em que representava o galã aventureiro, Humphrey Bogart renasce na tela e convida Marilyn Monroe para acompanhá-lo de volta Terra. Eles decidem, então, se encontrar no interior de um prédio na praça Jacques Cartier, em Montreal, no Canadá. Quando Marilyn se materializa, não é feita propriamente de carne e osso, mas de linhas e escalas. Em seguida, como num sonho, ela se transforma em pedra, depois em ouro. Bogart, impaciente para vê-la nas formas e curvas que a tornara inesquecível, desperta-a para a vida com um beijo, como um príncipe encantado. Assim, o romance tem início—e o filme acaba.Os fanáticos por cinema podem ficar tranqüilos. O filme que contém essas cenas e pode ser visto numa tela colorida de TV não estava perdido e alguma prateleira empoeirada de Hollywood. Tudo não passou de uma completa ilusão, criada por uma nova e fascinante técnica: a infografia.
Produto de uma feliz associação entre a informática e as artes gráficas daí o nome, essa técnica já vem revolucionando o cinema e a TV e promete criar espaços de extraordinária inovação nas ciências aplicadas e nas indústrias de ponta. Com ela, prevê-se por exemplo um salto na Medicina nos próximos dez anos, tornando real a fantástica viagem pelo corpo humano, até agora só conseguida pela ficção. Utilizando computador de quarta geração e programas de inteligência artificial, a infografia começa a realizar o que ainda ontem parecia impossível.
Até bem pouco tempo, de fato, não havia como ver imagens de um motor em movimento por dentro, pois não há câmara capaz de entrar num deles e filmar seus pistões. Hoje, não apenas se pode ver isso acontecendo, como algo muito melhor: pode-se observar o interior de um motor que nem sequer existe fisicamente, em funcionamento numa câmara de testes que, como ele próprio, só se materializa nas cores de um monitor de computador. “O computador gráfico está abrindo a porta de um imenso laboratório que antes só existia na imaginação dos cientistas”, resume o engenheiro Márcio Lobo Netto, professor de computação digital da Universidade de São Paulo.
Desenvolvida para ajudar a indústria a aperfeiçoar ao máximo os projetos de novos produtos e a favorecer a ciência na simulação de experiências impossíveis na vida real, a computação gráfica logo foi absorvida por artistas e publicitários. No cinema, permite transportar o espectador literalmente para os limites da imaginação, utilizando o amplo leque de recursos conhecidos como efeitos especiais. Já em 1969, o diretor Stanley Kubrick, no filme 2001, uma odisséia no espaço buscou no computador não apenas seu personagem principal— o HAL 9000— como também uma ferramenta indispensável ao trabalho de manipular as câmaras em tomadas que requeriam precisão matemática. Mais recentemente, em 1977, certas cenas do filme Guerra nas estrelas, de Georges Lucas, foram resultado de mais de uma dezena de seqüências rodadas separadamente e superpostas com o auxílio de um computador gráfico.
“Podemos representar qualquer personagem, vivo ou morto, e dar-lhe expressões tiradas da vida real ou simplesmente de nossa imaginação”, afirma Nadia Magnenat-Thalmann, professora de Comunicação e Ciência da Computação da Universidade de Montreal. Foi ela, junto com o marido Daniel, quem produziu o filme de sete minutos Rendez-vous à Montreal (Encontro marcado em Montreal), que trouxe Marilyn e Bogart de volta à vida. O filme foi todo concebido em computador, utilizando um programa chamado “Human Factory”, um exemplo do estado da arte na infografia, e premiado no Computer Graphics 87, festival internacional do setor, realizado no ano passado em Karuizawa, Japão.
Para se ter uma idéia de sua complexidade, leis da Física são aplicadas a certos parâmetros das figuras humanas, como o movimento das juntas dos membros e o impacto do toque dos dedos da mão numa taça de vinho. Nadia e Daniel deram início a sua obra-prima definindo o esqueleto de Marilyn e Bogart. Aplicaram em seguida as leis físicas mais simples para proporcionar movimento às figuras. Cobrindo os esqueletos com formas facetadas, obtiveram desenhos tridimensionais. A superfície de cada faceta foi preenchida depois com cores que esconderam as linhas das juntas e dos segmentos dos esqueletos. Outras leis físicas, mais complicadas, deram flexibilidade aos movimentos. Enfim, as vozes e a trilha sonora foram sintetizadas no computador a partir de gravações originais de filmes antigos. Na televisão, o show proporcionado pela infografia tem sido sem dúvida impressionante. Quem não se lembra do videoclip Sledgehammer, de Peter Gabriel? Ou o Raspberry beret, de Prince? No início do ano passado, o público de uma emissora de TV por cabo em Nova York ficou fascinado com o programa do repórter Max Headroom, personificação da imagem digitalizada de uma cabeça, criada a partir do rosto filmado em vídeo do ator canadense Matt Frewer. Desde então, toda semana Max protagoniza um entrevistador que leva a seu programa personalidades da vida americana, brincando com as possibilidades sem fim dos efeitos especiais de vídeo manipulados por computador.
No Brasil, o público começou a se familiarizar com a infografia assistindo aos trabalhos feitos por Hans Donner diretor de arte da Rede Globo, com a abertura do Fantástico, que superpõe a imagem de um balé a um fundo de paisagem inteiramente concebida em computador. Nos intervalos, o telespectador brasileiro acompanhou o aparecimento de comerciais cujo apelo está nas figuras geométricas tridimensionais que passeiam na tela e se transformam em símbolos das marcas dos produtos. “Criamos todo tipo de imagens para as agências de publicidade”, orgulhava-se Ewa Wawelberg, a desenhista industrial que se especializou em imagens computadorizadas depois de um curso nos Estados Unidos e agora cuida desse setor na Diana Cinematográfica, produtora paulista de comerciais para a televisão.Uma esfera girando em direção do espectador transporta uma miniatura de carro de Fórmula 1 que traz no chassi o nome do anunciante. Para fazer essa seqüência, o computador usado pela Diana passa cerca de trinta horas trabalhando sem parar. Pode parecer um tempo demasiado longo, mas, levando em consideração os milhões de cálculos realizados pela máquina, chega a ser um assombro de rapidez. Profissionais como Ewa definem inicialmente um esboço da imagem que querem criar, traçam o movimento desejado e assinalam na tela onde se localizam os focos de luz e as tonalidades de cor que serão usadas. Feito isso, o computador sozinho se encarrega do resto. Outro campo onde a computação gráfica vem sendo usada de forma crescente é o do desenvolvimento dos chamados CAD-CAM, sigla em inglês para projetos de desenho industrial assistidos por computador. Os CAD-CAM nasceram nos centros de pesquisa de material bélico dos Estados Unidos e da Europa e depois migraram para as indústrias aeronáutica e automobilística. Essas indústrias foram muito além da criação de imagens computadorizadas: tornaram-nas inteligentes. Um exemplo: apoiados por supercomputadores, capazes de processar em segundos milhões de operações matemáticas, projeta-se um novo modelo de avião e se fazem os testes de túnel de vento—tudo numa tela de computador.
O Boeing 737-300, em operação no Brasil, é um caso típico de projeto bem-sucedido em computador—e é muito mais do que uma simples animação. A Boeing precisava desenvolver em tempo recorde uma versão maior, mais versátil e econômica do modelo 737. Isso porque o inicio de sua produção deveria coincidir com a de outro modelo, o 757, para que as cabines de controle fossem similares, o que facilitaria o treinamento conjunto de equipes de pilotos para os dois modelos. Introduzindo as especificações do antigo 737 no computador, os engenheiros precisaram apenas digitar as modificações necessárias para dar vida ao novo 737-300.
Um simulador de vôo exemplifica muito bem a habilidade dessa moderna tecnologia em imitar a realidade. O computador faz uma espécie de orquestração de som, forças e movimentos que se aproximam do comportamento aerodinâmico real de um avião. Como o efeito visual tem de ser muito convincente, pode-se considerar esse tipo de máquina um verdadeiro mestre de ilusões. Mas por que confinar essa capacidade a uma cabine de pilotagem? Por que não levá-la para um laboratório e construir ali uma realidade artificial que possa ser manipulada por um cientista? Muitos problemas científicos, particularmente aqueles que podem ser representados em três dimensões, requerem um elevado grau de interação entre o homem e a máquina. “Essa relação entre o usuário e o computador já está sendo considerada a última fronteira na ciência da computação”, afirma James Foley, professor da Universidade George Washington, na capital dos Estados Unidos. Por isso mesmo, o maior objetivo da pesquisa nessa área é desenvolver um ambiente de simulação que pareça tão real quanto a própria realidade, onde seja possível manipular problemas numa escala que poderá ir desde os átomos às galáxias.
O Centro de Pesquisas Ames, da NASA, levou essa idéia ao pé da letra. Construiu-se uma pequena tela de cristal líquido, com dimensões um pouco maiores do que os óculos de um motociclista. Ao mesmo tempo, foi desenvolvida uma espécie de luva recheada de terminais de fios. Óculos e luvas foram então ligados a um computador. Resultado: um novo aparelho que poderá fazer com que os astronautas do futuro dirijam um robô como se fossem seu cérebro. Tal robô será enviado em missões perigosas, tanto no espaço quanto em planetas de clima hostil ao homem e fará todos os trabalhos requeridos como uma marionete sem fios. Dirigirá as lentes de seus olhos artificiais para onde o astronauta quiser olhar, virará a cabeça quando o astronauta também o fizer e assim por diante.
Quando essa nova tecnologia for aplicada nos experimentos científicos, o resultado poderá ser realmente a abertura de novas portas de um grande laboratório, até agora só vislumbrada na imaginação dos cientistas. De posse das luvas sensoras e de uma tela de alta definição, um pesquisador poderá, por exemplo, tocar com as mãos a imagem tridimensional de uma molécula ou de um vírus, devidamente ampliados, simulando uma situação impossível na prática. “Brevemente, os astrônomos poderão visualizar um encontro de galáxias e obter milhares de respostas sem sair do laboratório, bastando apenas sentar à frente de um monitor de computador”, prevê Piet Hut, professor de Astrofísica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos.
Uma das mais recentes novidades da infografia, que promete tornar-se muito popular, são os programas para projetos de arquitetura. Os profissionais da área em breve irão aposentar as velhas pranchetas de desenho para deixar entrar em seus escritórios os monitores de microcomputadores. Já é fácil imaginar as possibilidades: munido do elenco de desejos do cliente e de todas as informações sobre o lugar da futura obra, o arquiteto projeta na tela a planta da casa em seus mínimos detalhes, incluindo fachada, tipo de piso, forma de telhado etc. Mas a grande sacada virá em seguida. Os efeitos de animação permitirão que clientes e arquiteto façam uma visita simulada à nova casa. Assim, como se ela já estivesse pronta, percorrerão seu interior apreciando a disposição dos cômodos corrigindo imperfeições e até mesmo ensaiando uma idéia de decoração com figuras de móveis e utensílios Tudo pela tela do computador. Depois, é só mandar imprimir as plantas e pôr mãos à obra. A partir de então sem dúvida, se poderá afirmar que a realidade construída pelo imaginário não é apenas uma ilusão.
De ponto em ponto
Uma ilusão tão realista como o encontro entre Bogart e Marilyn requer um trabalho muito complexo, mesmo com o auxílio imprescindível de um excelente computador. Para entender como isso acontece, é preciso ir aos primórdios da computação gráfica, há cerca de vinte anos. Naquela época, um cientista sentava-se à frente do monitor de um grande computador (os micros ainda não existiam) e assinalava dois pontos na tela. Alimentando a máquina com conceitos geométricos, pedia-lhe que unisse os dois pontos com uma reta. Em seguida, assinalava novo ponto e determinava ao computador que desenhasse mais duas retas, unindo os três pontos. Estava feito um triângulo.Nessa tarefa aparentemente simples, os técnicos tinham de ensinar ao computador que a tela era composta de milhares de pontos (pixels, em inglês) organizados em linhas — a rigor um quadro de pontos numerados em seqüência. Assim, ao marcar um ponto na tela, o de número 52, por exemplo, o técnico estava tornando-o luminoso. Dois pontos quaisquer, o 52 e o 63, poderiam ser unidos bastando que o computador acendesse a seqüência de pontos do 53 ao 62. Da mesma forma, para preencher um quadrado já definido a máquina iluminava todos os pontos contidos entre os limites das quatro retas.No fundo, o desenvolvimento da infografia foi uma questão de aperfeiçoar a capacidade de memória do computador — para armazenar uma quantidade maior de informações gráficas—, aumentar a velocidade de cálculo das operações matemáticas e melhorar a chamada resolução espacial ou definição da imagem, dada pelo número de linhas de pontos. Sem falar na cor. O desenho de pontos e traços foi a fase unidimensional da infografia. Cubos e pirâmides em perspectiva tornaram possível a bidimensionalidade. Com a cor e suas nuanças, atingiu-se a tridimensão. Para obter a cor foi suficiente superpor muitas imagens monocromáticas, como o vermelho, o verde e o azul.Um belo dia, algum especialista em computação gráfica há de se ter perguntado como o computador poderia dar vida àqueles objetos desenhados no monitor. Como, por exemplo, seria possível fazer uma pirâmide girar na tela? Buscando inspiração no cinema, onde a ilusão do movimento é obtida pela projeção acelerada dos sucessivos quadros do filme, os técnicos pediram ao computador que desenhasse uma pirâmide. Fixaram então um eixo, ou seja, uma linha reta, partindo do vértice superior em direção ao centro da base. O encontro do eixo com o vértice e com o plano da base resultou em dois pontos. Em seguida, todas as coordenadas que compunham a pirâmide foram enviadas à memória da máquina, ficando na tela apenas aqueles dois pontos. A partir deles, nova pirâmide foi desenhada, desta vez, porém, com os vértices inferiores levemente deslocados em relação ao primeiro desenho. A operação foi repetida exaustivamente, até que o desenho final coincidisse com as coordenadas do primeiro. Instruiu-se então computador para projetar na tela desenho por desenho, à velocidade de um décimo de segundo cada aparição. Resultado: a pirâmide começou a girar sem parar.
Assim, toda e qualquer forma de um virabrequim a um vírus adquire o movimento que tem ou poderia ter na vida real; o essencial é o computador estar de posse das dimensões e propriedades do objeto. Para que as imagens tridimensionais imitem a realidade, é importante ainda, além de colorir, determinar o foco de luz, como um abajur iluminando uma bola de bilhar em cima de uma mesa. As formas que compõem o logotipo da Rede Globo, por exemplo, brilham de acordo com um foco de luz que está fora do alcance visual da tela. Para produzir esse efeito, Hans Donner determinou ao computador que quando uma face lisa qualquer passar por um certo plano de imagem ela deve adquirir a coloração mais clara possível—o branco. Assim tem-se a impressão de que houve um reflexo.
O que já se faz por aqui
Mestre na produção de imagens computadorizadas para a TV, como demonstram as vinhetas que abrem o Jornal Nacional, o Fantástico e, mais recentemente, o Chico Anysio Show, o alemão Hans Donner, 39 anos, trabalha em estreita associação com a bem equipada Globo Computação Gráfica, do Rio de Janeiro, cujos quatro minicomputadores e programas (softwares) especializados criam imagens sintéticas também para comerciais de TV. A empresa tem menos de dois anos—o que indica que, embora recente no país, a infografia se desenvolve com notável rapidez. No final da década de 70, Donner era um pioneiro no Brasil. Hoje, com certeza, está menos solitário. Uma prova é a existência da cadeira de Computação Gráfica nos cursos de pós-graduação de Engenharia Elétrica e de Ciência da Computação da USP, bem como na UFRJ e na PUC, também do Rio. O Laboratório de Sistemas Digitais da USP é um bom exemplo do que se começa a fazer no país nesse campo. AIi se encontram oito professores e outros tantos alunos desenvolvendo tecnologia nacional para o processamento de imagens em computador. Um deles é o professor Márcio Loba Netto, 25 anos, que trabalha num programa capaz de conceber desenho e estrutura de chips na tela de um computador, de acordo com determinadas especificações. O esforço brasileiro de pesquisa em infografia derrapa, no entanto, na falta dos equipamentos necessários, porque a atual legislação impede a importação de micro e minicomputadores. Diante disso, os técnicos ou desistem da idéia ou vão buscar no mercado negro suas ferramentas de trabalho.
Para saber mais:
(SUPER número 1, ano 2)
(SUPER número 9, ano 3)
Inteligência na ponta dos dedos
(SUPER número 1, ano 8)
(SUPER número 1, ano 9)