Manual secreto do RH
Quais são, e como funcionam, os testes psicológicos usados nas entrevistas de emprego
Você penteia o cabelo, coloca sua melhor roupa e vai até lá. O entrevistador elogia seu currículo, faz algumas perguntas, você sai achando que agradou. Alguns dias depois, é chamado para uma segunda etapa de testes.
E aí as coisas começam a ficar estranhas: a entrevista dá lugar a uma gincana, em que o objetivo é interpretar desenhos, completar frases, fazer esculturas com pecinhas de Lego… Coisas aparentemente sem nexo ou qualquer ligação com o emprego em si. E, quando lhe pedem que escreva um texto, é numa página sem linhas e com caneta Bic – sinal de que a sua caligrafia será vasculhada num exame grafotécnico.
Bem-vindo ao mundo das entrevistas de emprego e seus métodos estranhos. Hoje, 89 das 100 maiores empresas do mundo usam algum tipo de teste de personalidade para selecionar seus funcionários. Os métodos vão dos mais bobinhos, como a grafologia, aos mais sofisticados, como os testes projetivos. Não há qualquer comprovação científica de que eles realmente funcionem. Mas, como você provavelmente terá de enfrentá-los, vale a pena entender como funcionam – e desvendar segredos jamais revelados pelos departamentos de RH.
Mania de exame
As organizações humanas sempre tiveram seus métodos para escolher as pessoas. No século 11 a.C., o governo chinês já adotava um processo complexo, com testes de escrita, matemática, cavalgada, música e arco-e-flecha. Mas os métodos de seleção atuais, que tentam desvendar a personalidade do candidato, são uma invenção relativamente recente. Sua história começa com o psicólogo Hugo Munsterberg, da Universidade Harvard. Ele fez experiências com operários, marinheiros e telefonistas e, em 1913, publicou um livro, Psicologia e Eficiência Industrial, propondo vários métodos para medir as “funções mentais” dos trabalhadores. Para saber se um candidato é esperto e atento, por exemplo, Munsterberg sugeria um teste em que o objetivo é riscar a lápis todas as letras “a” que aparecem num texto. Por mais tosca que pareça, a ideia pegou – e os testes viraram mania. O Exército dos EUA começou a fazer avaliações em seus recrutas, e em 1921 o inventor e gênio Thomas Edison ficou famoso por revolucionar a seleção de pessoal: se alguém quisesse trabalhar na empresa dele, tinha de encarar uma prova com 150 questões de inteligência e conhecimentos gerais.
Era um teste extremamente difícil (90% dos candidatos não passavam), que causou certo alvoroço na sociedade da época – tanto que o New York Times decidiu investigar a prova e publicou todas as respostas. Depois da 2a Guerra Mundial, as entrevistas de emprego sofreriam outra grande mudança. E isso aconteceu por dois motivos. Nos EUA e em outros países desenvolvidos, o setor de serviços passou a empregar a maior parte dos trabalhadores. Ao contrário da agricultura e da indústria, em que a maior parte dos trabalhos é manual, o setor de serviços é todo baseado nos relacionamentos entre pessoas – e nele, portanto, a personalidade dos funcionários é tão importante quanto sua competência técnica. Ao mesmo tempo, começaram a surgir teorias mais elaboradas sobre gestão, que tentavam aplicar conceitos científicos à administração de empresas. Uma coisa se somou à outra. E o departamento pessoal, até então pouco mais do que um entreposto de pessoas, ganhou destaque e um nome modernoso: Recursos Humanos. “As empresas perceberam que era preciso usar um conjunto de ferramentas e fazer um processo seletivo”, conta Elaine Saad, presidente da Associação Brasileira de RH.
O teste mais comum é o Myers-Briggs, que foi inventado na década de 1960 e consiste em dezenas de perguntas de múltipla escolha, que tentam enquadrar a pessoa em 16 tipos de personalidade – cada tipo é descrito por uma sigla de 4 letras. Dependendo do tipo em que você se encaixa, terá maior ou menor afinidade com certa empresa ou profissão. Personalidades ENFP (“extroversão, intuição, sentimento, percepção”), por exemplo, sobressaem em empresas do setor alimentício. Absurdo? Provavelmente é absurdo, ou apenas incorreto – pois o Myers-Briggs tem margem de erro altíssima. Em 53% dos casos, o teste dá resultado diferente se for aplicado uma segunda vez. Até o período do dia em que é feito, de manhã ou de tarde, já é o suficiente para mudar o tipo de personalidade do candidato. (Atualização julho/2017: leia, ao final deste texto, nota enviada à SUPER pelo Conselho Federal de Psicologia).
Borrões de tinta
Em busca de resultados mais precisos, os especialistas de RH começaram a apelar para instrumentos mais complexos – e pegar emprestadas algumas ferramentas da psicologia. Como o teste Rorschach, inventado na década de 1920 pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach. Ele é formado por 10 borrões de tinta cujo significado a pessoa deve interpretar. Os desenhos são propositalmente ambíguos para que a pessoa, sem saber, projete neles os elementos da sua personalidade. Por isso o Rorschach (e suas variações mais simples, como o teste Zulliger), é chamado de teste projetivo. E ele promete ir fundo. “Os instrumentos projetivos usam o inconsciente como referência”, explica a psicóloga Maria Cristina Pellini, especialista no Rorschach.
O psicólogo avalia as respostas dadas pelo candidato e atribui pontos a cada uma delas. Mais de 100 variáveis são combinadas para chegar ao resultado final. É uma análise extremamente complexa e subjetiva. E aí está o grande problema. Uma análise feita pela Universidade do Texas revelou que 50% dos índices usados no Rorschach não são constantes, ou seja, dão resultados diferentes com psicólogos diferentes – o que distorce totalmente o resultado final. Para evitar que os candidatos deem respostas premeditadas, tanto o Rorschach quanto o Zulliger são mantidos em segredo. Em tese, só psicólogos podem ter acesso a seus desenhos.
Perto de ferramentas tão estranhas, a entrevista pode parecer um poço de objetividade. Mas ela talvez seja inútil – pois você já foi julgado antes de começar a falar. Num estudo feito pela Universidade Harvard, dezenas de professores foram filmados dando aula. O áudio foi cortado, e a maior parte das cenas eliminada – sobrou apenas um clipe curtíssimo, de dois segundos, para cada professor. Não dava para saber o que ele estava fazendo ou dizendo; somente vê-lo gesticulando. Esses clipes foram mostrados a voluntários, que julgaram o grau de competência dos mestres. Resultado? Eles acertaram. Os professores mais bem avaliados eram realmente os melhores. Dois segundos de um clipe mudo, sem informação nenhuma, haviam sido suficientes para saber quem era bom. O experimento foi refeito, desta vez com câmeras escondidas num escritório. E descobriu-se que, em 90% dos casos, a entrevista é definida nos primeiros 15 segundos.
A primeira impressão realmente é a que fica. E isso, como todas as características humanas, tem raízes na evolução. Ao avistar outro indivíduo, o Homo sapiens precisava decidir, rapidamente, se ele era amigo ou inimigo. Muito antes de a humanidade inventar o RH, o cérebro já tinha seu próprio processo seletivo.
Numa tentativa de superar tudo isso, o Google criou um software para medir a personalidade dos candidatos. Eles respondem a um questionário com perguntas biográficas (“você já fez trabalho voluntário?”), as respostas são processadas por computadores e o resultado é uma pontuação, que vai de 0 a 100, indicando o grau de adaptação do candidato à cultura de trabalho do Google. Quem vai bem é chamado para uma bateria de testes de lógica, que também são muito usados na Microsoft e em outras empresas de tecnologia e incluem perguntas estranhas, para medir a criatividade e a capacidade analítica do candidato. Alguns são bem divertidos – mas também não há comprovação de que efetivamente façam o que prometem.
Ainda não existe um método que seja totalmente científico, e totalmente infalível, para julgar candidatos a um emprego. É uma pena. Mas, se na sua próxima entrevista o RH adotar critérios que pareçam estapafúrdios, pelo menos você já sabe o que fazer. Diga o que eles querem ouvir.
Para saber mais
Como Mover o Monte Fuji
William Poundstone, Ediouro, 2005.
The Cult of Personality Testing
Annie Murphy Paul, Free Press, 2005.
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Nota enviada à SUPER pelo Conselho Federal de Psicologia em julho de 2017:
Testes psicológicos são instrumentos técnico-científicos reconhecidos internacionalmente
A avaliação psicológica é prática exclusiva do psicólogo, cientificamente fundamentada e atrelada ao surgimento e à consolidação da Psicologia como ciência e profissão. No mundo, diferentes entidades – American Educational Research Association, American Psychological Association e National Council on Measurement in Education – a reconhecem como processo técnico-científico de coleta de dados, estudos e interpretação de informações a respeito dos fenômenos psicológicos resultantes da relação do indivíduo com a sociedade.
No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia reconhece a avaliação psicológica como tema caro à categoria que representa. Por isso, toma medidas criteriosas ao listar quais testes podem ser empregados na prática profissional.
Desde 2003, todos os instrumentos usados por psicólogas (os) precisam ser analisados pelo Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos. Essa análise é conduzida por equipe de especialistas indicados por entidades científicas nacionais da área, com grande experiência e produção científica, a partir de critérios técnicos.
Em processos de seleção profissional, a avaliação psicológica é utilizada frequentemente para identificar aspectos psicológicos do candidato compatíveis com o desempenho das atividades e funções do cargo.
Ao escolher técnica ou método de avaliação psicológica para seleção profissional, o psicólogo deve optar por procedimentos que permitam observar se o candidato tem características necessárias para responder às atribuições e responsabilidades do cargo, identificando também comportamentos restritivos que impeçam o desempenho adequado das funções.