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“Contágio”: a ciência por trás do filme

O longa de 2011 voltou a ficar popular pelas suas semelhanças com a epidemia de coronavírus. Veja os acertos (e equívocos) científicos da história.

Por Rafael Battaglia
Atualizado em 26 out 2020, 14h12 - Publicado em 24 mar 2020, 20h25

Um novo vírus se origina na China, provavelmente de um animal silvestre. Entra em contato com os humanos e, em poucos dias, já infecta centenas de pessoas em diversos países.

Os sintomas são similares a uma gripe, porém mais severos. Enquanto milhares de pessoas morrem, governo e órgãos de saúde correm contra o tempo para testar medicamentos e uma vacina capaz de imunizar a população. Em meio a isso, fronteiras fecham, a circulação é restrita e aos supermercados se esvaziam.

A descrição acima se encaixa facilmente na recente pandemia causada pelo novo coronavírus. Mas ela também é um resumo da história do filme Contágio, um suspense de 2011 e que voltou à tona em 2020 graças ao novo surto.

Dirigido por Steven Soderbergh (TrafficOnze Homens e um Segredo), Contágio se tornou um dos filmes mais comentados no Letterboxd, rede social focada em cinema, e está na segunda posição na lista de filmes mais procurados do catálogo da Warner Bros. – atrás apenas da saga Harry Potter. Em dezembro, vale dizer, a produção estava em 270º lugar nessa mesma lista.

Contágio é um ótimo thriller de suspense, mas seu chamariz, agora, é outro: o tom profético de como a pandemia de coronavírus poderia se desenrolar. De fato, muitos elementos são similares (por vezes, quase idênticos). Mas não tem mistério. A semelhança entre os casos de MEV-1 (o vírus fictício do filme) com o Sars-Cov-2 (o vírus da Covid-19) não tem origem mística ou do acaso, mas sim da ciência.

A consultoria do filme

Scott Burns, roteirista de Contágio, disse à rádio NPR, dos EUA, que o objetivo era criar um surto “plausível, sem os exageros de Hollywood”. A equipe do longa, então, contou com uma série de consultores. Em 2011, o jornal Washington Post entrevistou dois deles: W. Ian Lipkin, professor de epidemiologia da Universidade de Columbia, e Laurie Garrett, jornalista que escreve há 40 anos sobre o tema.

Eles contaram que o roteiro de Contágio teve mais de 30 versões. “Fomos consultados em todas as fases de escrita, até sobre as maneiras que um cientista deveria dizer determinadas coisas”, explica Garrett. “Nós desenvolvemos um vírus plausível, e mostramos como seria uma resposta realista dos laboratórios e sistemas de saúde diante desse problema”, disse Lipkin.

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Separamos a seguir alguns elementos do filme para analisar. Contágio está disponível no Brasil no serviço de streaming HBO GO, e é possível alugá-lo também pelo iTunes, Looke, Now e YouTube. Se você ainda não o assistiu, fica o aviso de spoilers a partir de agora.

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Gwyneth Paltrow: “paciente zero” do filme (Warner Bros/Reprodução)

O surgimento da epidemia

O filme mostra a corrida de cientistas e autoridades para encontrar uma cura para a doença – testes de medicamentos, métodos de prevenção, desenvolvimentos de vacina, etc.. Ao mesmo tempo, há também a investigação sobre os últimos passos da paciente zero (Gwyneth Paltrow) para rastrear a origem da infecção.

A resposta vem apenas nos minutos finais: uma floresta é desmatada, e os morcegos que moravam ali são obrigados a sair. Eles entram em contato com porcos, que por sua vez são mortos e levados para um restaurante. O vírus, que estava no animal, é passado para o cozinheiro.

“Eu costumo mostrar essa cena aos meus alunos, para mostrar a interconexão entre seres humanos, animais e meio ambiente”, disse também à NPR Rebecca Katz, diretora do Centro de Ciência e Segurança em Saúde Global da Universidade de Georgetown, nos EUA. “O final do filme é um importante lembrete da origem zoonótica (animais para humanos) de diversas doenças infecciosas”, contou Lipkin.

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Versões iniciais do roteiro mostravam o vírus como uma variação do Influenza que causou a Gripe Espanhola, em 1918, que vitimou cerca de 50 milhões de pessoas. Em 2009, entretanto, houve um surto do vírus do mesmo subtipo (H1N1) – a famosa gripe suína.

Isso mudou os planos da produção. Afinal, se a humanidade havia se livrado dele, como retratá-lo como algo incurável? Foi dessa forma que o vírus fictício MEV-1 foi criado. Garrett, em entrevista ao jornal New York Post, explica por que Hong Kong foi escolhido para ser o epicentro da doença: “Muitas doenças acabam surgindo na Ásia por causa da tremenda perturbação naquela parte do mundo.” Segundo ela, morcegos (que reúnem grandes quantidades de vírus) e pássaros estão estressados por causa do desmatamento e das mudanças climáticas.

Transmissão e formas de proteção

Contágio apresenta diversos conceitos do mundo das epidemias. Um deles são os fômites, objetos e substâncias capazes de reter o vírus – ajudando em sua transmissão. O filme, em diversos momentos, exibe cenas em que isso acontece: maçanetas, pastas, cartões de crédito, telas, copos, as barras de apoio dos ônibus, e por aí vai.

Como já dissemos aqui na SUPER, vírus como o novo Sars-Cov-2 podem permanecer até 3 dias em determinadas superfícies. Mas o filme desliza em um aspecto: assim que Beth (Paltrow) entra em contato com o vírus, ela logo começa a espalhá-lo pelo bar. Levaria alguns dias, pelo menos, até que ela começasse a liberá-lo pela saliva ou pelo trato respiratório. Afinal, o vírus precisa se multiplicar a ponto de iniciar uma resposta do sistema imunológico.

Quanto aos equipamentos de proteção, o filme mostra ora profissionais com trajes completos, ora pessoas em contato com doentes apenas com luvas e máscaras. Nesse quesito, o roteiro acerta. “Em um grande surto, seria difícil para todos os profissionais de saúde manterem completamente as medidas apropriadas de prevenção de infecções”, sugere à NPR Glenn Wortmann, chefe do departamento de doenças infecciosas de um hospital em Washington, D.C. “Acho que o filme reconhece essas lacunas.”

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Mas a produção erra na hora de mostrar o desenvolvimento de uma vacina contra a MEV-1. A cientista responsável pelo projeto acaba usando a si próprio como cobaia para testar a eficácia do composto – o que não seria eficaz nem seguro.

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Dra. Mears (Kate Winslet) explica sobre a taxa de transmissão de um vírus. (Warner Bros/Reprodução)

Pequenos excessos

Toda a cadeia de eventos de Contágio é cientificamente precisa: a transmissão, a resposta dos governos, o surto coletivo… Mas não podemos deixar de olhar alguns dos números mostrados no filme, já que, embora alguns estejam corretos, outros não estão.

Um dos dados mostrados pela Dra. Mears (Kate Winslet), por exemplo, refere-se ao número de vezes em que colocamos a mão no rosto. Todos no escritório se assustam quando ela diz ser algo entre 2,5 e 3 mil vezes por dia.

A médica estava correta quanto à dificuldade em ficar sem tocar o rosto, mas o número está errado: uma pesquisa recente mostrou que levamos nossa mão ao rosto 23 vezes por hora, em média: 552 vezes por dia.

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Outro número impressionante de Contágio é a rapidez com que o vírus se espalhou: no 26º dia da pandemia, 2,5 milhões de pessoas já haviam morrido nos Estados Unidos. Seis meses após o primeiro caso, o número chega a 26 milhões de óbitos.

Não que um vírus não tenha essa capacidade (vide o exemplo da Gripe Espanhola). Mas acontece que, no filme, o MEV-1 tem uma alta taxa de letalidade: começa com 20% e chega a 30% em determinado ponto da história (à título de comparação, estima-se que a letalidade da Covid-19 seja de 1%.

O que isso implica? Historicamente, vírus com taxas elevadas de letalidade não se espalham dessa maneira. É uma lógica simples: quanto mais ele mata, menos pessoas infectadas estarão circulando, diminuindo as chances de milhões de pessoas serem infectadas. Para entender melhor, vale dar uma olhada nos gráficos desta reportagem da SUPER.

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Jude Law: o escritor que propaga desinformação. (Warner Bros/Reprodução)

O perigo da desinformação

Talvez um dos elementos mais interessantes de Contágio não seja a epidemia viral em si, mas como ela reverbera na sociedade. “Com o pânico, o vírus será o menor de nossos problemas”, diz o Dr. Ellis Cheever (Lawrence Fishburne), do Centro de Controle de Doenças dos EUA, em certo momento.

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Toda essa histeria está representada no personagem de Jude Law. O ator vive um jornalista freelancer que, em seu blog, acusa a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os líderes mundiais de esconder a cura da doença. Além disso, ele afirma ter se curado com um medicamento vendido nas farmácias, e não demora muito até que esse remédio – cuja eficácia ainda não havia sido comprovada – se esgote nas lojas.

Algo semelhante vem acontecendo com a cloroquina, um remédio usado contra malária e que está sendo testado pela OMS para combater a Covid-19. Mesmo em fase de estudo, milhares de pessoas, influenciadas por discursos de presidentes como Trump e Bolsonaro, correram às farmácias e acabaram com os seus estoques.

Em Contágio, as investigações acabam descobrindo que o jornalista ganhou uma grana divulgando essa informação. “Lembro-me de estar mais preocupado sobre o fato de que a disseminação de informações erradas pode ser tão prolífica e perigosa quanto a do vírus”, disse o roteirista Scott Burns ao New York Times.

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