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Por que Leonardo da Vinci e Michelangelo não se bicavam?

Eles foram gênios imortais - e protagonistas de uma rivalidade intensa, que explodiu quando os dois foram chamados para fazer o mesmo trabalho

Por Maria Fernanda Vomero
Atualizado em 26 abr 2023, 16h56 - Publicado em 31 dez 2000, 22h00

O ano era 1504. E a cidade de Florença, localizada na Itália, berço da Renascença, estava em polvorosa com o que se chamou de “a batalha das batalhas”. A notícia que corria de boca em boca era que o jovem artista Michelangelo Buonarroti, então com 29 anos, admirado por boa parte da sociedade da época, tinha aceitado o convite para pintar uma cena de guerra numa das paredes do Palazzo della Signoria, então sede do governo florentino. O fato, por si só, não chamaria tanto a atenção se não fosse por um detalhe: o mesmo convite tinha sido feito, um ano antes, a outro grande artista, o respeitadíssimo Leonardo Da Vinci, na época com 51 anos. Leonardo aceitara a encomenda e já havia até montado seu andaime na parede oposta àquela posteriormente oferecida a Michelangelo.

A tarefa dos dois era retratar uma cena de batalha, de livre escolha, inspirada na história recente de Florença. O trabalho era tão bem pago que se tornou irrecusável – para um e para outro. Parece que Leonardo não gostou muito da idéia de ter Michelangelo por perto, mas se sentiu estimulado com o clima de competição. Logo ele, que tinha fama de procrastinador, trabalhou com afinco nos desenhos que dariam origem à sua Batalha de Anghiari. “Estavam em jogo duas visões bastante diferentes do fazer artístico”, diz o historiador Francisco D’Alambert, professor da Universidade Estadual Paulista, Unesp. De um lado, Leonardo, o intelectual que fazia da natureza sua fonte de inspiração e já tinha escrito um tratado sobre a pintura. Do outro, Michelangelo, o escultor que imprimia às figuras de seus afrescos o mesmo vigor de suas obras no mármore. Ambos, como bons renascentistas, almejavam a perfeição. E ambos, como bons rivais, não se topavam.

Pense nesse confronto como se os físicos Isaac Newton e Albert Einstein tivessem vivido na mesma época, na mesma cidade, e a prefeitura tivesse chamado ambos a medir forças realizando o mesmo teste de matemática. É claro que Florença se tornou pequena demais para dois gênios com aquela estatura. E é lógico também que os florentinos ficaram eletrizados com a expectativa de qual dos dois iria realizar a melhor pintura épica.

Florença e o mundo jamais ficaram sabendo qual dos dois venceria o desafio. É que ambos interromperam seus trabalhos no Palazzo della Signoria entre 1505 e 1506. Leonardo, porque estava comprometido com encomendas inacabadas em Milão. (Quase criou um entrave diplomático entre os governos das duas cidades.) Michelangelo, porque precisou atender aos pedidos caprichosos do papa Júlio II, em Roma, e deixou preparados apenas os desenhos de sua Batalha de Cascina. Aparentemente, os motivos da desistência de ambos foram alheios à competição. Mas quem garante que não tenham também, de alguma forma, em algum momento, amarelado? Pois é, caro leitor. Atrás dos gênios e dos mitos existem homens – que amam, invejam, cometem deslizes e sentem medo e raiva como qualquer um de nós, pobres mortais.

Pode-se dizer que a rivalidade entre Michelangelo e Leonardo era inevitável. E não apenas pela semelhança de suas grandezas artísticas. Eles também não combinavam em quase nada: as diferenças se revelavam na aparência, nos traços de personalidade, nos caminhos artísticos, nas buscas estéticas que escolhiam e até mesmo nas influências filosóficas que haviam recebido. Simpatizante da teoria neoplatônica, bastante em voga naquela época, Michelangelo buscava tirar do mármore formas idealizadas, bem de acordo com a subjetividade do filósofo grego Platão. Leonardo, ao contrário, se identificava muito mais com a visão objetiva de Aristóteles, que valorizava a investigação científica e a observação da natureza.

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Capela Sistina, obra-prima de Michelangelo (Andrew Nguyen / EyeEm/Getty Images)

Michelangelo, 23 anos mais jovem que o rival, era irreverente, impetuoso e, não raro, malcriado. Sua intempestividade lhe rendeu brigas homéricas com os Médicis, a família florentina que patrocinava grande parte dos artistas da época. Discordava daqueles que viam em Leonardo um gênio. Mas, num cantinho qualquer do seu ateliê, Michelangelo se via na obrigação de estudar as experimentações de seu grande desafeto, por ele ter sido precursor de uma série de inovações técnicas – como o “claro/escuro”, o jogo de sombra e luz. “Michelangelo nutria por Leonardo um misto de inveja, discordância e admiração velada”, diz Maria Elisa de Oliveira Cezaretti, professora de História da Arte na Faculdade Belas Artes, de São Paulo.

Leonardo chamava a atenção, principalmente por sua excepcional beleza e seu porte físico. Estava acostumado a usar túnicas coloridas, em geral cor-de-rosa, que iam até os joelhos – um pouco curtas para os padrões da época, é verdade, mas sempre na moda. Deixava que a longa e encaracolada barba chegasse à metade do peito. E era festeiro: baladas eram com ele mesmo. “Leonardo participava de festas na corte, gostava de música, era bastante animado”, diz o artista plástico Percival Tirapeli, professor da Unesp. Foi graças a esse jeito que tinha para lidar com as pessoas, aliado a seu enorme talento, que ele conseguiu driblar a má-sorte de ter sido filho bastardo naquela época. (Na Itália renascentista, quem carregava tal rótulo era rechaçado pela sociedade.)

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Leonardo nasceu em Vinci, um bucólico vilarejo distante um dia de Florença, em 1452. Aos 13 anos, deixou sua cidade natal para trabalhar no ateliê do mestre florentino Andrea Del Verrocchio, artista conhecido por ser um professor inspirado, onde teve o primeiro contato com as artes e com a filosofia. O jornalista britânico Michael White, autor da biografia Leonardo: The First Scientist (“Leonardo: O Primeiro Cientista”), afirma que Leonardo, um típico garoto do interior, se transformou num dândi graças ao burburinho de Florença. A cidade era o berço de toda a agitação cultural que marcou a Renascença, nos séculos XV e XVI, e se transformou no ambiente ideal para os artistas. “Eles gozavam de um status social diferente. Eram mais do que artesãos, tinham autonomia sobre a obra”, diz o italiano Luciano Migliaccio, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e também da Escola do Museu de Arte de São Paulo, o Masp.

Leonardo não era um simples pintor. Era, na verdade, um cientista com criatividade e sensibilidade extraordinárias. Transitava dos desenhos e pinturas aos grandes projetos de engenharia e de arquitetura com extrema facilidade. Quando encasquetava com um problema qualquer, parava tudo o que estava fazendo – gravuras, quadros, projetos – e ia escrever um tratado sobre a questão. Era apaixonado pela natureza. E a tomava como ponto de partida em grande parte de seus estudos e projetos. Um deles, o estudo da anatomia humana, o levou a dissecar cadáveres e a ser perseguido por isso. “Deixo a alma aos monges”, costumava dizer. “Leonardo antecipou diversas idéias que foram posteriormente confirmadas pela ciência: algumas leis da dinâmica dos líquidos, a relação entre a Lua e as marés, a circulação do sangue”, diz Migliaccio.

Michelangelo, ao contrário, era artista em tempo integral. Apesar de se considerar antes de tudo um escultor, também produziu afrescos e realizou experimentos com cores que influenciaram dezenas e dezenas de outros artistas. Nasceu em 1475, em Caprese, no seio de uma família de classe média alta já um tanto decadente. Em decorrência disso, carregava consigo o anseio de nobreza. Primeiro estudou no ateliê do mestre Domenico Ghirlandaio, um pintor famoso por seus murais, nos idos de 1489. Depois, passou a trabalhar para Lorenzo de Médici, talvez o mais destacado mecenas do clã dos Médici. O artista e historiador italiano Giorgio Vasari (1511-1574), contemporâneo de Michelangelo e Leonardo, e autor de Vidas dos Pintores, Escultores e Arquitetos, confirma que Michelangelo tinha um temperamento difícil, irascível e briguento. Os relatos dão conta de um sujeito melancólico, que vivia atormentado por conflitos interiores.

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Enquanto o vaidoso Leonardo encantava a sociedade intelectual abrindo seu ateliê àqueles que queriam acompanhar seu processo de criação e fazendo do ato de pintar uma verdadeira performance, Michelangelo esculpia sozinho, obstinado, tendo como única companhia a poeira do mármore. Precursor dos workaholics, era capaz de trabalhar até 20 horas por dia e dormir no chão do seu ateliê. Baixinho e um pouco curvado, estava bem longe de ser um homem bonito. Justo ele que, em todas as suas obras, buscava o belo, o sublime, a representação perfeita de idéias perfeitas. Para aumentar a distância entre ele e suas obras, um incidente o marcou – literalmente – para toda a vida. “Numa briga, na adolescência, Michelangelo levou um soco que lhe quebrou o nariz”, diz a historiadora Fernanda Mendonça Pitta, doutoranda da Universidade Estadual de Campinas. Mas isso não o impediu de se retratar em algumas obras, como na segunda de suas três Pietà, em que ele aparece como Nicodemos, ajudando Maria a segurar Cristo morto.

Michelangelo também deixou seus escritos. Não milhares de páginas de anotações, esboços e tratados como Leonardo. Mas cerca de 300 poemas, entre sonetos, canções e fragmentos. Muitos deles dedicados ao amigo Tommaso Cavalieri, por quem Michelangelo cultivava uma paixão platônica. “Amor, se tu se’ dio,/ non puo’ ciò che tu vuoi?/ Deh fa’ per me, se puoi,/ quel ch’i’ fare’ per te, s’Amor fuss’io…”, diz um dos versos. (“Amor, se tu és deus,/ não podes o que desejas?/ Bem faz por mim, se podes,/ como eu faria por ti, se o amor fosse eu…”). “Ele buscou na arte a sublimação dos seus conflitos”, afirma a historiadora Liana Ruth Bergstein Rosemberg, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Uerj. (Diferente de Leonardo, que teria imprimido conscientemente às suas pinturas um certo efeito psicológico.)

Por causa das constantes viagens a trabalho – para Roma, Milão, Bolonha e para países vizinhos –, decorrência das encomendas dos mecenas, é provável que os dois gênios renascentistas não tenham passado muito tempo juntos em Florença. Se essa relativa distância ajudou ou atrapalhou uma possível aproximação, ninguém pode dizer. Outra coisa sobre a qual é difícil dar certeza é sobre o quanto as diferenças entre ambos – e também o que tinham em comum – colaboraram para a inimizade. Um dos únicos a especular sobre o assunto foi Sigmund Freud. O pai da psicanálise encontrou algumas semelhanças entre ambos: de um lado, os dois tinham dificuldade em lidar com a figura da mãe, ausente em suas infâncias. De outro, os dois eram homossexuais – Leonardo mais bem-resolvido, Michelangelo totalmente enrustido. Essas questões, levantadas por Freud, só ele mesmo explica – a maioria dos historiadores da arte não considera esses aspectos nas suas análises.

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Para Vasari, porém, a inimizade entre ambos deveu-se a um evento particular: o único encontro casual entre os dois nas ruas de Florença de que se tem notícia. Leonardo passeava com um amigo perto do Palazzo Spini, onde um grupo de homens discutia uma passagem do Inferno, de Dante Aligheri, obra em evidência na época. (Florença vivia um momento de glória: era, ao mesmo tempo, o lar de Michelangelo, Leonardo, Dante, Rafael, Botticelli e vários outros artistas.) À determinada altura, os homens pediram que Leonardo lhes explicasse alguns trechos do Inferno, bem na hora em que Michelangelo passava pelo local. Leonardo, sabendo da admiração do jovem artista por Dante, disse então: “Michelangelo vai explicar para vocês”. Pensando que estava sendo ridicularizado, Michelangelo enraiveceu e insultou Leonardo. Criticou a sua obra inacabada mais famosa, o monumental cavalo de bronze encomendado por Ludovico Sforza, duque de Milão: “Explique-se você, que fez um modelo de cavalo que jamais poderia terminar!” Atingido no calo, já em casa, Leonardo viveu um momento de grande baixa autoestima. Escreveu num de seus inúmeros cadernos de anotações: “Conte-me, conte-me se alguma vez eu fiz alguma coisa…”, considerando que talvez nada do que fizera na vida até então tivesse valido a pena.

Se Michelangelo também escrevia, Leonardo também tinha seus ímpetos. “Há um episódio divertido que aparece em um dos seus blocos de notas”, diz a historiadora Liana Rosemberg. Era um sábado santo e um padre fazia a ronda da sua paróquia, abençoando as casas com água benta. Ao entrar na sala do pintor, o padre espalhou água benta sobre algumas obras. “Por que o senhor está molhando as minhas pinturas?”, perguntou Leonardo, aborrecido. “Esse é o meu dever”, disse o padre, explicando que, segundo a promessa divina, quem pratica o bem na Terra recebe o dobro no Céu. Leonardo esperou o padre terminar a bênção e subiu para a janela da sua casa. De lá, quando o padre saía, despejou uma bacia de água sobre sua cabeça. “Eis o dobro que está vindo de cima em retribuição ao bem que o senhor acabou de me fazer com a água benta, arruinando metade das minhas pinturas.”

A rivalidade entre os dois artistas se manteve acesa, mas não se tem registro de nenhum outro encontro posterior. Sabe-se que, quando foi a Roma, no outono de 1513, uma das primeiras coisas que Leonardo fez foi dar uma espiadinha nas pinturas da Capela Sistina, concluídas um ano antes. Ele criticava o fato de Michelangelo retratar somente figuras hercúleas, mesmo quando não tinham a ver com o contexto. Sabe-se também que Leonardo participou da comissão que discutiu o lugar ideal para uma das obras-primas de Michelangelo, o Davi, concluído em 1504. Ele conhecia de antemão a fama do jovem escultor que encarou com sucesso o enorme bloco de mármore abandonado havia 40 anos, com o qual nenhum outro artista queria trabalhar.

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E, mesmo honrando a fama de explosivo, Michelangelo tinha lá seus momentos de bom humor. Na época em que finalizava a estátua de Davi, recebeu a visita de um conhecido. O homem declarou ter gostado muito da estátua, mas apontou um defeito: disse que o nariz estava um pouco grosso. Michelangelo percebeu que, da posição em que o outro estava, era impossível ver o nariz da estátua. Mesmo assim, para não decepcionar o amigo, subiu no apoio e derrubou um pouco de pó de mármore da estátua. E perguntou o que o outro achava da “mudança”. “Ah, ficou bem melhor”, elogiou o homem.

O que parece razoável é pensar que a existência da rivalidade só fez o trabalho de Michelangelo e Leonardo crescer. “As obras deles se tornaram atemporais – e esta é a marca dos gênios”, afirma Liana Rosemberg. Que o digam a provocadora Mona Lisa (1506), enigmática como Leonardo, e a última Pietà (1564) de Michelangelo, que transpira a tempestade de emoções e o sofrimento de seu criador.

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