Viemos programados de fábrica para sentir ternura por bebês humanos. Essa fraqueza por olhos grandes e bochechas moldou a evolução do Homo sapiens, nos deu os cachorros e tornou a estética kawaii, da cultura pop japonesa, uma indústria bilionária.
Texto: Bruno Vaiano | Ilustração: Mama Galsi | Design: Natalia Sayuri Lara
F
az meia hora que liguei o computador para escrever este texto, mas não consigo me concentrar – de dois em dois minutos, pulo para o YouTube, onde há um gatinho siamês se espreguiçando. Detalhe: ao vivo. Um abrigo de animais resgatados em Los Angeles, nos EUA, montou câmeras nos cômodos em que ficam os bichanos e as mantêm ligadas 24 horas por dia há mais de um ano. “Nos adote”, implora a legenda. Há dezenas de transmissões parecidas em outros abrigos.
Mais do que uma arma para a adoção de bichinhos sem teto, a fofura é uma indústria bilionária. A marca Pokémon é a mais valiosa da história do entretenimento; estima-se que Pikachu e cia. já tenham gerado US$ 100 bilhões em receita (76% disso só com merchandising, sem contar os videogames ou a série de TV). Os próximos do ranking são Hello Kitty (84,5 bi), Ursinho Pooh (80,3 bi) e Mickey (80,3 bi). Star Wars, a primeira franquia não fofa da lista, aparece em quinto. (1)
Mesmo o universo de George Lucas, porém, encontrou a redenção em um alienígena adorável. O chamariz da série Mandalorian (que carregou nas costas a audiência do serviço de streaming Disney +, e salvou Star Wars do fracasso do spin-off Solo) é uma versão bebê de Yoda: olhos imensos, orelhas maiores, corpinho minúsculo. É obscenamente fofo. E bem-sucedido.
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No Natal de 2019, a consultoria Jungle Scout estima que a Disney tenha deixado de ganhar US$ 2,7 milhões só na Amazon porque não conseguiu repor bonecos e pelúcias oficiais do personagem no mesmo ritmo das vendas. O mercado paralelo fez a festa: uma busca no Etsy, o Mercado Livre do artesanato mundial, dá 47,8 mil resultados para “baby Yoda”.
Pokémon, Hello Kitty e mesmo o baby Yoda são exemplos típicos de kawaii, nome da estética fofa e vulnerável que é espinha dorsal da cultura pop japonesa – e um produto de exportação valioso para o país. O segredo do sucesso? Darwin explica. Tudo começa com os bebês, que são as coisas fofas originais.
Filhotes de ser humano – na verdade, filhotes de qualquer mamífero, como os gatinhos do YouTube – compartilham certos traços físicos: olhos e cabeça desproporcionalmente grandes, testa mais alta, nariz pequeno, mandíbula pouco proeminente, braços e pernas curtos e relativamente grossos. Isso é consequência do ritmo particular em que cada pedaço de nós cresce no útero.
Durante a gestação, o crânio aumenta mais rápido que o tronco; o tronco, mais rápido que os membros. Por isso, chegamos ao mundo cabeçudos e desengonçados, com um centro de gravidade acima da cintura, que é garantia de tombos. No ser humano essa desproporção é mais acentuada e dura mais que nos outros mamíferos (mais para frente, vamos explicar por quê).
Quando o cérebro de um sapiens atinge o estado adulto, nosso tronco ainda está em 40% de seu estado definitivo; os dentes, 58%; a maturação sexual, 10%. Durante a infância e a adolescência, esse gradiente se inverte. Tronco, pernas e braços espicham bem mais que a cabeça. Os olhos, por outro lado, permanecem praticamente do tamanho que eram quando nascemos. (2)
O fato de que bebês não são versões menores de adultos, e sim criaturinhas com uma alometria própria e alienígena, veio bem a calhar para a seleção natural: nós evoluímos para sentir ternura por coisas com cabeções, olhos enormes e mandíbulas pequenas. Afinal, humanos que acham bebês fofos tendem a cuidar deles. E cuidar do seu filho é cuidar dos seus próprios genes. Esses bebês crescem e herdam dos pais a susceptibilidade à forma infantil. O sentimento de ternura por filhotes é algo que garante a propagação da espécie (isso vale para todos os animais que cuidam de seus filhotes, não apenas humanos, claro).
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O biólogo alemão Konrad Lorenz foi o primeiro a estudar esse fenômeno, na década de 1940. Ele batizou o conjunto de características físicas dos bebês de Kinderschema (em alemão, algo como “molde infantil”) – e propôs que até o cérebro do cabra mais macho vem de fábrica regulado para ter uma quedinha por pirralhos.
O gráfico acima mostra os resultados de um estudo realizado em 2009 na Universidade da Filadélfia, nos EUA. Primeiro, os pesquisadores pegaram a foto de um bebê e criaram duas versões. Uma mais fofa, com o crânio e os olhos aumentados artificialmente; outra menos fofa, com olhos menores e rosto mais fino. Então exibiram a 122 voluntários as três fotos – bebê menos fofo (a), bebê neutro (b) e bebê mais fofo (c) – e pediram que eles atribuíssem notas de 1 a 5 em dois quesitos: o quanto acharam cada foto fofa e o quanto gostariam de cuidar de cada uma das crianças. Não deu outra: as fotos manipuladas à moda Lorenz receberam em média 1 ponto a mais. (3)
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Feitos de trouxa
O Kinderschema nos torna facilmente manipuláveis. Na hora de adotar um bebê em um orfanato, por exemplo, os pais escolhem pensando mais na fofura (de maneira inconsciente) do que na semelhança da criança com eles próprios.(4)
Seu cérebro te dá uma injeção de dopamina, o neurotransmissor do prazer, toda vez que você vê uma coisa redonda e bochechuda, mas ele não distingue coisas humanas de não humanas – nem de coisas inanimadas.
Uma estratégia típica dos designers é juntar traços de bebê com a pareidolia – aquele bug cognitivo que nos faz ver rostos em carros, torneiras e espuma de café. Vide o New Beetle: a Volkswagen pensou o modelo sabendo que nós interpretamos os faróis como olhos e o teto como crânio. Então, fez faróis enormes e teto arredondado para que você queira adotar um fusquinha emperiquitado.
A domesticação de lobos em cachorros seguiu a mesma lógica – só que o designer foi a civilização como um todo, de maneira inconsciente. Há 12 mil anos, quando surgiram os primeiros vilarejos de humanos agricultores e sedentários, lobos menos ariscos se aproximavam para comer nossos restos.
Dentre esses catadores, os que tinham cara de coitado e jeito brincalhão eram atraentes para nós e acabavam virando pets. De geração em geração, selecionamos uma casta de canídeos programada para reter traços e comportamentos infantis (como trazer a bolinha de volta) depois de crescer. Os biólogos chamam esse atraso proposital de neotenia.
Em um famoso experimento, o biólogo soviético Dmitri Belyaev, exilado na Sibéria, domesticou raposas – parentes próximas dos cachorros. Nascia uma ninhada, ele isolava os bebês mais tranquilos e os colocava para cruzar entre si. Vinha a próxima ninhada e ele repetia o procedimento. Após dez gerações, 18% das raposinhas já comiam na sua mão. 20 gerações depois, 35%. Para escala de tempo geológica em que a evolução atua, isso é instantâneo. (5)
Um estudo da Universidade da Flórida de 2018 revelou que o ápice da fofura dos cães, na opinião de voluntários humanos, ocorre entre 6,3 e 8,3 semanas de vida – que é justamente o período do desmame. Ou seja: nos cachorros, o Kinderschema atinge o auge quando eles estão prestes a sair debaixo da asa da mãe e precisam conquistar um humano para alimentá-los. (6)
Como os mamíferos são todos parentes evolutivos próximos, filhotes de cães e gatos compartilham o Kinderschema conosco. Com espécies mais distantes na árvore da vida, alarmes falsos são comuns: corujas parecem fofíssimas por causa do cabeção e dos olhos, mas já são adultas.
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Mickey Button
Em um texto de 1989, o biólogo Stephen Jay Gould pega seus esquadros e compassos – que ele usava para medir crânios de animais fossilizados – e analisa a evolução de um rato: o Mickey. (7)
Em 1928, quando o roedor estreou no curta-metragem Steamboat Willie, ele tinha focinho pontudo, olhos pequenos, braços finos. Seu rosto se distorcia enquanto ele assobiava, dava beliscões sádicos em porcos e torcia o rabo de um bode. Esses curtas animados eram exibidos nos cinemas intercalados com filmes mais longos, documentários e comerciais. Na época, não havia TV em casa – o cinema era a TV. Com o passar das décadas, Mickey passou a protagonizar roteiros cada vez mais infantis e politicamente corretos, e os desenhistas foram deixando sua aparência menos aloprada. De maneira inconsciente, seguiram as recomendações de Lorenz.
Gould determinou que, entre 1928 e 1947, os olhos de Mickey foram de 27% a 32% do tamanho da cabeça – no Mickey atual, estão em 42%. O mesmo aconteceu com a altura da cabeça, que foi de 42% a 48% da altura total do corpo entre Steamboat Willie e o Mickey atual.
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Gould também mediu as proporções de Ranulfo, um rato mau que rouba Minnie em um filme de 1936. Sua cabeça tem só 28% do tamanho do corpo; o focinho, 80% do tamanho da cabeça (contra 49% em Mickey). Isso dá ao vilão uma aparência bem mais adulta e perigosa que a do protagonista.
Mickey é um Benjamin Button. Conforme envelheceu, ganhou traços infantis. Um processo análogo ocorreu com a Turma da Mônica: Maurício de Sousa tornou os olhos dos personagens maiores e as bochechas mais arredondadas com o passar das décadas.
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Somos todos neotênicos
O sapiens é o único mamífero que possui infância – um longo período após o desmame em que o filhote continua dependente de adultos para comida e proteção. As demais espécies vão direto para a adolescência, mas nossas crianças não estão prontas paraa vida quando param com o leite materno. O amadurecimento sexual ainda levará uma década. Isso acontece porque, do mesmo jeito que cães são lobos neotênicos, humanos são, grosso modo, chimpanzés neotênicos. Travados na infância.
Há 5 milhões de anos, viveu o primata que era ancestral tanto nosso quanto dos chimpanzés contemporâneos. Na aparência, ele lembrava bem mais um chimpanzé do que um humano.
Nossa linhagem sofreu mudanças numa taxa mais rápida que a dos chimpanzés porque a evolução reprogramou nossos genes para desacelerar – ou mesmo frear de vez – o crescimento de várias partes do nosso corpo. Síndrome de Peter Pan anatômica. Em humanos, o primeiro dente molar permanente surge aos 6 anos em média; nos chimpanzés, o dente equivalente já está lá aos 3. Nosso dedão do pé não cresce até se tornar um polegar opositor; o dos chimpanzés, sim. A versão adulta do crânio humano é extremamente similar ao de um bebê chimpanzé: testa alta, forma arredondada, mandíbula retraída.
De fato, nosso cérebro só é tão grande porque ele continua crescendo depois que sai do útero. Outro aspecto interessante é que ele retém uma parcela da capacidade de aprendizagem da infância pelo resto da vida. A neotenia é um ingrediente da nossa inteligência.
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A origem dessa juventude eterna, segundo uma hipótese, está na seleção sexual. Na maioria das espécies, os machos evoluem rabos de pavão, chifres enormes e outros artifícios espalhafatosos para disputar fêmeas. É que elas são criteriosas: como investem mais – gerando e com frequência criando os bebês –, é preciso escolher o parceiro com cuidado.
Entre humanos, porém, há um critério em que os machos são mais seletivos que as fêmeas: a idade. Verifica-se uma preferência estética dos homens por mulheres mais novas até em culturas não industrializadas e distantes do Ocidente. Sinal de que há um instinto universal aí, e não só preferências específicas de cada povo. Isso não acontece em outras espécies. Chimpanzés, inclusive, preferem fêmeas mais velhas. (8)
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Uma hipótese é que isso ocorra porque somos os únicos mamíferos (além das baleias) que passam pela menopausa. Como mulheres mais velhas param de se reproduzir – e a gravidez se torna mais arriscada em idades mais avançadas –, é natural que haja uma disputa instintiva pelas mais jovens. Isso gerou uma pressão seletiva em prol de genes neotênicos: mulheres que pareçam novas se dão melhor reprodutivamente (mesmo que elas na verdade já tenham alguma idade e só retenham traços juvenis). A neotenia, é claro, será herdada pelos bebês independentemente do sexo – a preferência dos machos por fêmeas mais novas pôs em marcha a neotenia nos machos também. E foi ela que, como vimos, permitiu o aumento dos nossos cérebros e a emergência de muitos outros traços que tornaram o gênero Homo único. Somos todos Mickeys cabeçudos. Mais Mickeys que nós, só nossos próprios bebês. (9)
A fofura, enfim, é poderosa. Move impérios midiáticos e direciona nossa evolução há 5 milhões de anos. Tão poderosa que desenvolvemos uma arma contra ela. Sabe aquela vontade de morder ou apertar coisas fofas? Psicólogos especulam que seja um mecanismo de regulação. A ternura é boa para a seleção natural porque nos faz cuidar de bebês, mas em excesso se torna uma emoção incapacitante. E aí você ativa demonstrações de agressividade parapôr rédeas no faniquito. Afinal, seu filhote precisa de você. E só ficar enternecidonão adianta: o que ele quer é comida e proteção. Para provê-lo decentemente, você precisa estar sempre alerta.
Fontes: (1) “The Pokémon Franchise Caught ‘Em All”, no Statista; (2) artigo “Evolutionary Hypotheses for Human Childhood”, em Yearbook of Physical Anthropology; (3) artigo “Baby Schema in Infant Faces Induces Cuteness Perception and Motivation for Caretaking in Adults”, em Ethology; (4) artigo “The influence of infant facial cues on adoption preferences”, em Human Nature; livro The Greatest Show on Earth, de Richard Dawkins; (6) artigo “Dog pups’ attractiveness to humans peaks at weaning age”, em Anthrozoös; (7) livro O Polegar do Panda, de Stephen Jay Gould; (8) artigo “Male chimpanzees prefer mating with old females”, em Current Biology; (9) livro The Red Queen, de Matt Ridley; artigo “It’s so cute I could crush it!: Understanding neural mechanisms of cute aggression”, em Frontiers in Behavioral Neuroscience.
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