A criação e venda de animais exóticos empregam 14 milhões de pessoas na China. Entenda por que esse hábito é uma bomba-relógio de epidemias – e o que o país tem feito para impedi-lo.
Texto: Guilherme Eler | Design: Maria Pace | Ilustrações: Sapo Lendário | Edição: Bruno Vaiano
Entre 1958 e 1961, toda a agricultura e pecuária da China foram “coletivizadas” pela ditadura comunista de Mao Tsé-Tung. A propriedade privada se tornou ilegal. Pequenas e grandes fazendas se tornaram estatais; a produção de grãos era recolhida por agentes do governo e então redistribuída. Além de perder a posse de suas terras, os camponeses recebiam em troca do trabalho uma parcela minúscula da produção.
Com os produtores rurais completamente desmotivados a investir para as safras futuras, a produção caiu. Mas oficiais falsificavam os dados para dar a impressão de que havia mais grãos – e ficar bem na fita com o poder central. Grandes quantidades de alimento eram remetidas às cidades. Os camponeses que produziram esse alimento pagavam o pato e ficavam com cotas ainda menores que as normais (ou cota nenhuma). Adicione a esse cenário alguns desastres naturais, nenhuma imprensa para fazer denúncias e opressão violenta, e o resultado foi a fome. Dos 900 milhões de habitantes que a China tinha na época, 40 milhões morreram de inanição.
Em 1978, teve início um processo de reforma agrária e as terras voltaram a ser privadas. Logo de cara, as criações mais tradicionais (porcos, frangos e bois) acabaram concentradas nas mãos de grandes proprietários. Com a expansão da economia e empresários centralizando a produção, as propriedades familiares perderam espaço. Os preços caíram e os produtores de subsistência já não conseguiam mais competir.
Muitos, então, passaram a apostar na criação de animais exóticos. De início, o governo chinês fez vista grossa à prática. Apesar de ser um desastre ambiental e sanitário, a criação desses bichos em cativeiro garantia empregos e fazia girar a economia, evitando outra crise de fome. Veja bem: as espécies selvagens não eram fonte de alimento para os pobres, e sim fonte de renda. Elas eram vendidas a pessoas com mais dinheiro – como acontece com as criações de lagosta no Nordeste brasileiro.
Uma década depois, em 1988, o governo deu bênção à prática, baixando uma lei que considerava animais exóticos recursos naturais – cuja exploração, portanto, era autorizada. Negócios de fundo de quintal se expandiram e viraram verdadeiras linhas de produção de cobras, tartarugas, pavões etc. Essa lei, desde então, foi revisada quatro vezes. Até 2019, 400 espécies de animais eram protegidas. Não podiam ser caçadas ou vendidas. Mas outras 1.480 espécies ainda eram legalizadas, desde que os produtores seguissem certas normas. E centenas de espécies exóticas, algumas comuns nos mercados, não são mencionadas.
Estima-se que 14 milhões de pessoas trabalhem em atividades ligadas a animais exóticos na China. Em 2016, um relatório da Academia Chinesa de Engenharia calculou o valor dessa indústria em US$ 73,3 bilhões. A demanda por couro e pelagem, principalmente de doninhas, raposas e guaxinins, corresponde à maior porcentagem desse valor (US$ 55 bilhões). Outros US$ 17,6 bilhões são gerados pela venda de carnes exóticas. Répteis são o tipo preferido: movimentam US$ 9 bilhões ao ano. Por fim, US$ 700 milhões são gerados pela criação de animais pela obtenção de matérias-primas consideradas terapêuticas ou estimulantes sexuais pela milenar medicina chinesa, como bile de urso e escamas de pangolim. Consumir esses produtos se tornou símbolo de status a partir da década de 1990 (ainda que, hoje, pouca gente mantenha o hábito – como veremos adiante).
O impacto positivo na economia, anos mais tarde, causaria problemas de saúde pública em escala internacional. Afinal, diversos vírus que afetam humanos fazem a festa também em animais. Porcos podem transmitir ebola, hepatite e gripe. Bois e vacas foram os primeiros hospedeiros do vírus do sarampo. E a Mers chegou aos humanos de carona em camelos. Dos 1.415 patógenos que infectam humanos, 61% têm origem em outras espécies. É por isso que o consumo de carnes exóticas é tão arriscado: se animais que convivem conosco há milênios já carregam surpresas, imagine que tipo de micróbio nos aguarda em espécies que não fazem parte do cotidiano.