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A fé que move a China

No país mais populoso do mundo, 3 doutrinas se influenciam para formar uma religião que só existe lá - e explica o jeito chinês de ser

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 26 abr 2023, 11h19 - Publicado em 30 jun 2008, 22h00

Texto José Francisco Botelho

“Todo chinês é taoísta em casa, confucionista na rua e budista na hora da morte”. Para muitos estudiosos, esse ditado chinês resume a complexa espiritualidade da nação mais antiga do mundo. Em seus 5 mil anos de história, a China teve a alma moldada pelos livros dessas 3 doutrinas, surgidas há mais de 20 séculos. Por isso, apesar do vertiginoso crescimento econômico que moderniza o país a toque de caixa, quem quiser entender a China de hoje precisa voltar o olhar para o passado distante. Enquanto arranha-céus e canteiros de obras mudam a face das milenares metrópoles chinesas, Confúcio, Tao e Buda ainda explicam muito sobre os chineses e sua relação com o mundo. Em vez de se excluírem, essas doutrinas se misturam como ingredientes de uma poderosa salada espiritual – a chamada “religião tradicional chinesa”, que inclui de filosofia e regras de etiqueta a magias, talismãs e reencarnação. Nas próximas páginas, você vai entender como se formou essa tríade sagrada, cujas origens se perdem na lenda e cujos ensinamentos regem a vida de mais de 1 bilhão de pessoas.

Num país em que sabedoria conta mais que santidade, nenhum sábio desfruta de tanto prestígio quanto Kung-Fu-Tzu – o “Venerável Mestre Kung”, também conhecido por seu nome latinizado, Confúcio. Nascido no século 5 a.C. – uma época de guerras, fome e miséria –, Confúcio estava mais interessado em reformar o mundo dos homens do que em desvendar os mistérios do Universo. E buscou o antídoto para os problemas sociais em clássicos da civilização chinesa: ao longo da vida, ele compilou, editou e comentou um conjunto de obras hoje conhecidas como Clássicos Confucianos (leia mais na página 24). Nos séculos seguintes, discípulos e seguidores reuniram os ensinamentos do mestre nos Analectos e transformaram o confucionismo na ideologia oficial do império.

A filosofia de Confúcio se baseia no conceito de ren, termo que pode ser traduzido por “benevolência” ou “humanismo”. Para ele, um sábio deve medir suas ações tendo em vista o bem da humanidade – tanto as gerações presentes quanto as futuras. Esse apelo ao altruísmo universal se resume na máxima cunhada pelo mestre 400 anos antes de Jesus Cristo: “Não faças aos outros o que não desejes que te façam”. Outro conceito essencial do confucionismo é o li, que pode ser traduzido como “ordenamento social”. Confúcio acreditava que só poderia haver harmonia entre os homens se cada indivíduo seguisse à risca as normas de sua sociedade – incluindo respeito à hierarquia e etiqueta.

“Socialmente – ou seja, ‘na rua’ – o chinês moderno ainda é profundamente confuciano”, diz o sinólogo André Bueno, do Departamento de História e Filosofia da Faculdade Estadual de União de Vitória, Paraná. O apreço pelas regras de etiqueta pode parecer estranho aos olhos de outros povos – um tipo de choque cultural que ocorre com freqüência entre empresários ocidentais que vão fazer negócios na China. Um exemplo bem atual da obsessão confuciana por esses protocolos: entre os chineses, cartões comerciais devem ser apresentados com os braços estendidos, uma suave reverência com a cabeça e a palma das mãos voltadas para o interlocutor. Quem entrega seu cartão com displicência se arrisca a arruinar transações milionárias. Exagero? Não, confucionismo.

Apesar de sua influência sobre a espiritualidade chinesa, o confucionismo está mais para filosofia ética do que religião. Confúcio nada disse sobre vida após a morte, e há quem diga que era ateu. Para Kung-Fu-Tzu, o sábio deveria fazer o bem pelo bem, sem esperar recompensas divinas. O que soou muito estranho para os missionários cristãos que chegaram à China a partir do século 15 e passaram a descrever o confucionismo como “religião oficial” do país. É verdade que o cético e pragmático mestre Kung pregava o respeito aos cultos tradicionais como forma de coesão social. Mas foi nas outras duas faces da tríade, o taoísmo e o budismo, que a alma chinesa saciou seu apetite pela transcendência.

Manancial de superstições

Para alguns estudiosos, o taoísmo é a viga mais forte do templo espiritual chinês, e sua influência sobre práticas típicas da cultura chinesa, como o feng shui e o tai chi chuan, são provas disso. A palavra Tao – “caminho” ou “curso” em mandarim – indica a força primordial que mantém o Universo em equilíbrio. Não é uma divindade antropomorfa, à maneira judaico-cristã, mas uma espécie de energia impessoal que se move por trás de tudo que existe. Segundo o taoísmo, o fluxo do Tao é regido pela transição entre yin e yang, os pares de opostos que formam o cosmos: macho e fêmea, luz e sombra, quente e frio etc. Essas idéias são antigas como a China e remetem aos xamãs da Pré-História – mas o primeiro a elaborá-las em forma de filosofia foi Lao-tsé. Embora não se saiba ao certo se ele viveu uma geração antes ou 100 anos depois de Confúcio, todas as referências concordam que ele foi o autor do primeiro cânone do taoísmo, o Tao Te Ching ou “Clássico do Caminho e da Virtude”.

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Se o ideal de Confúcio era reformar a sociedade, o de Lao-tsé era harmonizar o ser humano com o Cosmos. “O homem segue a Terra, a Terra segue o Céu, o Céu segue o Tao, e o Tao segue a si mesmo” – é um dos versos mais famosos de sua fascinante e obscura obra. Mais individualista que Confúcio, Lao-tsé pregava uma vida simples, em comunhão com as energias da natureza e longe das turbulências da política. Essa busca de equilíbrio entre o indivíduo e o Universo é o que rege, ainda hoje, a disposição das mobílias segundo o feng shui, os movimentos do tai chi chuan e os exercícios de disciplina das artes marciais chinesas.

“Até o século 4, o taoísmo era uma filosofia de vida, principalmente. Depois, tomou ares de religião”, explica o sinólogo Bueno. Em sua vertente mística, o taoísmo se aproxima do animismo – a idéia de que todas as coisas, incluindo pedras e plantas, são dotadas de “espírito” e “poder”. Daí a multidão de feitiços, encantamentos e simpatias que o taoísmo assimilou com o tempo. Na Idade Média, os sacerdotes taoístas não se limitavam a meditar: praticavam a alquimia, buscavam a imortalidade em elixires mágicos e diziam ter superpoderes, como o de voar pelos céus à noite. Ao lado da vertente filosófica, muitas superstições do panteão taoísta continuam vivas até hoje. Um exemplo: quando um chinês tem problemas domésticos, costuma pôr a culpa na presença de gênios mal-humorados em sua casa. O jeito é contratar os serviços de algum sacerdote taoísta especializado em exorcismos – cujos rituais se parecem com os da umbanda brasileira, com direito a banhos de sal grosso e golpes de folha de arruda nos exorcizados. “Mesmo para quem vem de um país como o Brasil, a quantidade de crenças e superstições populares que existem na China é enorme”, diz a antropóloga especialista em China Rosana Pinheiro Machado, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A salvação da alma

Mas com todos seus feitiços e meditações o taoísmo nada diz sobre a vida após a morte. E é aí que entra o budismo, fundado também por volta do século 5 a.C., na Índia. Siddharta Gautama (o Buda) viveu na época de Confúcio e Lao-tsé – mas foi só por volta do século 1 a.C. que obras budistas chegaram à China, com viajantes que cruzavam o Himalaia. Entre os conceitos budistas que “colaram” na China está o “nirvana”, estado de elevação espiritual em que todo sofrimento desaparece, e o “samsara”, que pode ser entendido como reencarnação. Durante séculos, monges chineses traduziram obras em línguas indianas e compuseram seus próprios tratados em mandarim – o resultado disso tudo é a coleção conhecida como Grande Tesouro das Escrituras, compilado no século 10.

O budismo original se dividia em duas escolas: o Theravada, mais cético e filosófico, e o Mahayana, uma espécie de caldeirão de crenças que aceita a existência de deuses, espíritos e criaturas fantásticas, como demônios e serpentes falantes. Foi esta versão que fez sucesso no país de Confúcio, dando origem a duas formas de budismo típicas da China. Uma é o chan, ou zen, que misturou crenças budistas a práticas de meditação do taoísmo. A outra é o “terra pura”, ramo mais popular, que venera diversos espíritos iluminados em vez de um único Buda.

E assim deciframos a última parte do enigmático provérbio citado lá no início. Pois é na hora da morte que o pragmático chinês renuncia às preocupações desse mundo e chama monges budistas para recitarem os sutras – textos sagrados que garantem sorte na próxima encarnação. “O raciocínio é simples: se corremos o risco de reencarnar, então é melhor chamar um especialista”, resume o sinólogo Bueno. Mais chinês, impossível.

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A tríade espiritual passaria por maus bocados a partir de 1949, quando o país foi dominado pela ditadura comunista de Mao Tsé-tung. Por sua ênfase na reflexão individual, o confucionismo virou ideologia “burguesa”. Enquanto isso, as práticas budistas e taoístas eram descartadas como “superstições abomináveis”. Os livros foram proibidos e muitos queimados. Mas a repressão mal afrouxou, na década de 1980, e a borbulhante religiosidade chinesa voltou à tona, com resultados muitas vezes irônicos. É o caso do destino póstumo de Mao Tsé-tung. Alguns anos após sua morte, o ditador ateu passou a ser venerado como espírito do panteão taoísta. Hoje, quase todos os táxis de Pequim têm um amuleto no retrovisor, onde se vê a fotografia de Mao cercada de franjas e sininhos – uma simpatia contra acidente de trânsito.

Assim como sua efígie, a ideologia de Mao também foi virada pelo avesso por seus sucessores. Quando abriu a economia chinesa, por volta de 1988, o reformista Deng Xiaoping justificou sua traição ao marxismo com uma tirada tipicamente chinesa: “Não importa se o gato é preto ou branco. Importa que cace ratos”. Nos anos seguintes, o onívoro dragão chinês, que já tinha digerido a doutrina de Marx, fez o mesmo com o capitalismo – transformando essas duas ideologias ocidentais em algo, digamos, bem chinês. O que não é de estranhar no país de Confúcio, que também cunhou outra máxima famosa: “Devemos copiar o que admiramos, para depois superá-lo”.

Genealogia das escrituras chinesas

As religiões chinesas têm vários cânones religiosos, os ching, em mandarim. Mas seu conteúdo não é considerado a palavra de Deus, e sim o repositório de milênios de sabedoria humana. Confira a história dos principais livros que deram forma e sentido à espiritualidade chinesa.

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I CHING (Cerca de 3000 A.C.)

Considerado o livro mais antigo da China, foi escrito por Fu Hsi, imperador legendário que viu um dragão emergir das águas com símbolos geométricos gravados nas costas: os 64 hexagramas do I Ching. Mais tarde, sábios escreveram interpretações para os sinais, formando o livro I Ching. Nessa obra, surgiu o conceito de yin-yang, base de todo o pensamento chinês. Os hexagramas são usados até hoje para adivinhações na China e na Coréia.

TAO TECHING (cerca de 500 A.C.)

Muitas lendas envolvem Lao-tsé – suposto autor do maior clássico do taoísmo. Segundo a mais famosa, o sábio teria abandonado a China para viver como eremita em terras ocidentais. Lao teria escrito o Tao Te Ching a pedido de um guarda da fronteira, quando deixava sua província. A obra fala da relação entre o ser humano e o Tao – força primordial que move o Cosmos. Para historiadores, o Tao Te Ching foi escrito por diversas pessoas entre os séculos 4 e 3 a.C..

CLÁSSICOS CONFUCIANOS (500 A.C.)

Confúcio passou boa parte da vida comentando as obras mais importantes da tradição chinesa. O I Ching é o primeiro dos Clássicos Confucianos como ficou conhecido o conjunto da obra, que serviu de base à educação chinesa durante milênios. A obra tem no total 13 livros. Os 5 principais, incluem, além do I Ching, o Chu Ching (“Clássico da História”), o Chi Ching (“Clássico da Poesia”) e o Shi Ching (“Clássico da Música”).

ANALECTOS (500 a 200 a.c.)

Após a morte de Confúcio, seus seguidores acrescentaram ao cânone os Analectos – coleção de diálogos e ditos do mestre, compilados por seus discípulos em 22 capítulos.

O TRIPITAKA (100 a.C.)

Siddharta Gautama, o Buda, elaborou sua doutrina entre os séculos 6 e 5 a.C. – mas não deixou nenhuma palavra por escrito. Seus ensinamentos foram memorizados por um assistente e em seguida preservados pela tradição oral entre monges budistas. No século 1 a.C., monges do Sri Lanka os transcreveram, dando origem ao Tripitaka (“Os Três Cestos”, em páli). A obra trata de questões teológicas, sermões do Buda sobre a moral e o destino e regras de disciplina para os monges. O texto é o cânone do Teravada, versão mais tradicional e filosófica do budismo.

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SUTRAS MAHAYANAS (100 A.C. a 100)

Outra vertente budista, o Mahayana, surgiu por volta do século 1 a.C. Mais mística que o Teravada, e fonte principal do budismo chinês, ela inclui a crença em seres fantásticos como demônios, fantasmas e serpentes gigantes. Seus textos sagrados são os “Sutras Mahayanas”, escritos no início da era cristã, no idioma sânscrito.

GRANDE TEURO DAS ESCRITURAS (983)

No século 1 a.C. os textos budistas começaram a ser levados à China por viajantes que cruzavam o Himalaia, cadeia de montanhas que separa o país da Índia. Nos séculos seguintes, os eles foram traduzidos para o mandarim, dando origem a formas de budismo típicas da China, como o chan (ou zen) e a vertente conhecida como “terra pura”. Em 983, as escrituras em chinês foram reunidas no Grande Tesouro das Escrituras, que integra mais de 2 mil textos individuais e também influenciou o budismo no Japão e no Tibete.

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