Análise de DNA revela linhagem desconhecida que viveu na Argentina por 8.500 anos
Genomas de 238 pessoas mostram uma continuidade populacional rara, preservada apesar de secas, mudanças culturais e contatos externos.
Um novo estudo revelou que uma população indígena até então não documentada habitou a região central da Argentina por cerca de 8.500 anos, passando por mudanças ambientais e culturais sem grandes trocas genéticas com grupos vizinhos.
O trabalho, publicado na revista Nature, analisou o DNA de 238 pessoas que viveram na Argentina nos últimos dez milênios. Trata-se da maior cobertura temporal e espacial já produzida em uma pesquisa envolvendo a região do Cone Sul.
A equipe, formada por cientistas argentinos e da Universidade Harvard, buscava preencher justamente a ausência de dados do centro do país. Outras regiões da América do Sul, como os Andes centrais, Amazônia e Patagônia já tinham sido amplamente mapeadas.
“A Argentina central é uma grande área que não foi pesquisada e estava sub-representada”, disse Rodrigo Nores, geneticista do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica da Argentina (CONICET) e coautor do artigo, à Science. “Nossa grande questão era: dada a sua localização no meio dessas três populações, as pessoas que ali viviam eram ou não uma mistura dessas ancestralidades?”
A investigação começou em 2017, com a análise de 29 dentes arqueológicos da província de Córdoba obtidos em décadas de escavações. Nos anos seguintes, o trabalho se expandiu: mais de 30 arqueólogos de 20 instituições cederam amostras, resultando em 344 fragmentos ósseos ou dentários de 310 indivíduos distribuídos por 133 sítios arqueológicos.
Após o sequenciamento e a filtragem dos dados, surgiram padrões inesperados. Um indivíduo de cerca de 8.500 anos, encontrado na região de Jesús María (Córdoba), apresentou um conjunto de variantes genéticas nunca visto entre os povos antigos já estudados.
Essa pessoa tornou-se o marco inicial da linhagem recém-identificada, que aparece repetidamente nos indivíduos datados entre 4.600 e 150 anos atrás. A análise revela que a ancestralidade desse grupo não desapareceu completamente: ela ainda pode ser identificada em parte da população atual do centro da Argentina.
A persistência é a característica mais notável dessa linhagem. Em outras regiões do mundo, grandes mudanças na economia, na tecnologia ou no clima costumam ser acompanhadas de migrações e substituições populacionais, que ficam marcadas no DNA. No centro da Argentina, porém, a história é outra.
Mesmo eventos drásticos, como secas extremas entre 6.000 e 4.000 anos atrás ou o surgimento da horticultura e da agricultura incipiente há cerca de 1.500 anos, não alteraram de forma mensurável a composição genética regional.
Esse isolamento também chama atenção porque não existiam barreiras geográficas expressivas (como montanhas) que limitassem deslocamentos ou bloqueassem migrações. Ainda assim, os indivíduos dessa linhagem permaneceram por milhares de anos relativamente isolados dos grupos vizinhos.
O DNA revela que, entre 8.000 e 5.000 anos atrás, conviviam no Cone Sul três grandes linhagens: a recém-identificada no centro da Argentina; outra ligada à região de Puna e aos Andes; e uma terceira associada aos Pampas e à Patagônia. Com o tempo, apenas a linhagem central permaneceu de forma contínua nessa região, enquanto as outras passaram a aparecer sobretudo nas extremidades do território.
Esse padrão contradiz interpretações baseadas apenas na cultura material. A presença, há cerca de 1.300 anos, de cerâmicas e estilos atribuídos a povos amazônicos havia sido vista como evidência de migração. O novo levantamento genético, porém, não detecta entrada significativa de grupos amazônicos no centro argentino.
Outro ponto importante é o descompasso entre genética e cultura. Mesmo com a grande diversidade de línguas registrada na região no período pré-colonial, essa variação não corresponde a linhagens genéticas diferentes. Segundo os autores, populações com a mesma ancestralidade podiam falar idiomas distintos e adotar práticas culturais variadas, sem que isso implicasse a chegada de novos povos.
E como era essa população?
A linhagem identificada habitou ambientes variados: serras, planícies abertas, áreas úmidas associadas à Laguna Mar Chiquita e trechos do vale do rio Dulce. As evidências arqueológicas mostram populações que, ao longo dos milênios, adotaram diferentes estratégias de sobrevivência: caça e coleta, horticultura, aproveitamento de recursos fluviais e, em alguns locais, práticas semissedentárias.
Por volta de 1500 anos atrás, grupos das serras de Córdoba passaram a cultivar pequenas plantações. Mesmo assim, o DNA indica que eram descendentes diretos da linhagem detectada em Jesús María – um exemplo de transformação cultural sem substituição biológica.
“Nesta região, há uma diversidade de línguas e de mudanças culturais, e observamos interações com outros grupos nas evidências arqueológicas. Mas a população é a mesma”, explicou Nores.
Apesar da continuidade, houve contatos esporádicos com grupos vizinhos que deixaram marcas discretas no registro genético. Parte da ancestralidade central alcançou o noroeste do país, onde se combinou a populações dos vales andinos ligadas ao componente genético dos Andes centrais.
Outro movimento ocorreu em direção aos Pampas: a partir de cerca de 3.300 anos atrás, a linhagem do centro avançou para o sul e gradualmente passou a predominar nessa região, sobretudo no último milênio. No Gran Chaco, o cenário foi diferente, com sinais de mistura entre essa população central e grupos amazônicos ou de floresta tropical, processo mais evidente após aproximadamente 800 anos atrás.
No entanto, nenhum desses fluxos alterou substancialmente o núcleo populacional do centro argentino, que permaneceu extraordinariamente estável.
Também há pistas sobre os povos que primeiro chegaram ao Cone Sul. A equipe analisou o genoma de uma mulher que viveu há 10.000 anos na região dos Pampas.
Ela compartilhava mais semelhanças com grupos antigos do Cone Sul do que com povos mais ao norte, o que reforça a ideia de uma expansão rápida pelo continente seguida de longos períodos de isolamento regional.
A descoberta reforça que a história populacional da América do Sul não replica padrões observados em outras partes do mundo. Segundo comunicado do CONICET, “a permanência prolongada de grupos humanos nos mesmos territórios durante milênios” pode ser uma característica própria do subcontinente, contrastando com regiões onde deslocamentos populacionais foram mais frequentes.
Essa conclusão também impõe cautela ao correlacionar cultura ampla e diretamente com genética. Línguas distintas coexistiram no centro da Argentina até a chegada europeia, mas nenhuma delas indica divisões biológicas profundas.
E, embora o levantamento seja o mais completo já realizado para o centro da Argentina, os cientistas reconhecem que há lacunas importantes nos dados, sobretudo entre 8.000 e 4.000 anos atrás e em regiões como Pampas, Gran Chaco e Pantanal.
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