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Como a guerra criou o molho de pimenta

O Tabasco é um produto global, vendido em 166 países. Mas só existe graças a uma receita mirabolante – que mistura escravidão, falência e seis guerras.

Por Eduardo Campos Lima e Bruno Garattoni
Atualizado em 1 jul 2021, 11h01 - Publicado em 19 dez 2018, 14h44

Edmund McIlhenny estava falido. Logo ele, que havia começado a trabalhar aos 17 anos, num banco da Louisiana, e subido até virar dono do negócio e ficar milionário. A desgraça de Edmund foi a Guerra de Secessão (1861-1865), que opôs os Estados do sul do país, escravistas, aos Estados do Norte, abolicionistas. Quando a guerra começou, Edmund já tinha mais de 50 anos, e por isso não precisava servir no front. Mas ele (que, como muita gente do Sul, possuía escravos) acabou se engajando mesmo assim, e atuou organizando a distribuição de suprimentos para os soldados do Sul. O Norte venceu, a escravidão acabou, e o sulista Edmund se lascou. A economia local foi destroçada, e ele perdeu tudo.

Até que um dia, perambulando pelas ruas de Nova Orleans em busca de emprego, encontrou um velho conhecido: Gleason, um soldado americano que acabara de voltar do México. Os historiadores não sabem ao certo o motivo (acredita-se que Gleason, cujo nome completo é desconhecido, tenha fugido para o México para não se render na Guerra de Secessão). Mas o relevante é que, para animar o amigo, Gleason deu a ele um punhadinho de pimentas secas trazidas do México – mais precisamente de Tabasco, um Estado no sul do país.

Como bom sulista, Edmund adorava pimenta. “Nova Orleans era o maior mercado de escravos dos EUA, até pouco antes da Guerra Civil, e tinha conexões caribenhas, com Cuba e o Haiti. Além disso, foi colônia da Espanha e da França. Tudo isso fez com que as pessoas tivessem uma ligação muito maior com comidas picantes”, diz o americano Denver Nicks, autor do livro Hot Sauce Nation – America’s Burning Obsession (“A nação do molho picante”, não lançado em português).

Edmund misturou as pimentas com sal e vinagre, e gostou. Ficou tão bom que ele resolveu plantá-las em Avery Island: uma área de 9 km2, na Louisiana, pertencente à família da esposa. Fez a primeira colheita e, em 1868, lançou o “molho Tabasco”. Vinha em garrafinhas de perfume, que Edward comprava numa farmácia. Hoje o Tabasco é vendido em 166 países, e a empresa (McIlhenny Company, que ainda pertence à família) fatura US$ 200 milhões por ano. 

Mas, inicialmente, o produto não foi propriamente um estouro. “Descobri duas ou três páginas de um rascunho autobiográfico, no qual Edmund só fala de como se deu bem como banqueiro, antes da Guerra Civil, sem mencionar o Tabasco. Seus obituários nos jornais tampouco faziam referência ao produto”, conta o historiador americano Shane Bernard.

Quando Edmund morreu, em 1890, seu patrimônio era de modestos US$ 14 mil (o equivalente a US$ 380 mil em valores atuais), e isso já incluindo a fábrica de pimenta. Era um negócio pequeno. O Tabasco só começaria a se transformar em fenômeno anos depois – e por causa de outra guerra.

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(Marcus Penna/Superinteressante)

Os cavaleiros rudes

Quando Edmund morreu, a empresa passou às mãos de John, seu filho mais velho. Ele modernizou os métodos de produção e investiu em propaganda. Mas em 1898, com a eclosão da Guerra Hispano-Americana, John largou a empresa e entrou nos Rough Riders (“cavaleiros rudes”), um batalhão militar formado principalmente por caubóis do sudoeste dos EUA.

Liderado por Theodore Roosevelt, que depois seria eleito presidente americano, o regimento teve papel de destaque nas batalhas – tanto que, após o fim da guerra, John foi trabalhar no governo. A fabriquinha de pimenta ficou com Edward, o irmão mais novo de John. E foi aí que tudo mudou.

Edward chefiou o negócio por cinco décadas, transformando o Tabasco em produto onipresente nos lares americanos. Isso aconteceu, principalmente, porque Edward radicalizou o investimento em propaganda – chegou até a financiar a produção e exibição de uma ópera sobre o Tabasco. A empresa investiu pesado em anúncios de revista, livros de receitas e, na década de 1920, nos primeiros anúncios de rádio.

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Boa parte desse esforço foi para tentar dissipar uma crença da época: muita gente achava que alimentos picantes faziam mal à saúde. Além disso, era preciso ensinar as pessoas a colocar poucas gotas do molho na comida, já que uma queixa frequente era que o Tabasco deixava tudo apimentado demais. Edward também teve de enfrentar empresas como Heinz e Campbell (famosa por sua sopa enlatada), que começaram a usar o nome “tabasco” em seus próprios molhos de pimenta – e só pararam depois de brigas na Justiça.

Mas Edward não ficou famoso só pela gestão dos negócios. “Ele era um autodidata, e passou muito tempo fazendo pesquisa científica. Estudou aves, anfíbios, répteis e mamíferos da ilha Avery e publicou artigos acadêmicos e na imprensa”, diz Bernard. Seu interesse pela vida selvagem era contraditório: criou grandes reservas ecológicas na Louisiana junto com outros milionários, como os Rockfeller, mas fundou clubes de caça ao pato – seu esporte favorito.

Edward também fez uma grande burrada ambiental. Foi um dos introdutores do ratão-do-banhado, roedor típico da Argentina, do Uruguai e do Brasil, na Louisiana. A ideia era criar o bicho para usar sua pele na produção de roupas. Mas o ratão saiu do controle e se tornou uma espécie invasora, que infesta vários Estados do sul dos EUA, expulsando animais nativos e destruindo ecossistemas. 

Edward morreu em 1949, e o comando do Tabasco passou para Walter McIlhenny, filho do “rough rider” John. Walter não entendia nada de negócios. Mas tinha experiência militar (lutou na 2a Guerra Mundial), e decidiu aplicar essa lógica ao negócio. Foi o salto definitivo.

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Da Coreia ao Golfo

Walter criou um departamento internacional, passou a fazer propaganda em línguas estrangeiras e, na década de 1950, o Tabasco já era exportado para 30 países. Mas sua grande jogada foi fazer um acordo com o Exército americano. Na Guerra da Coreia (1950-1953), os soldados começaram a receber uma minigarrafinha de Tabasco junto com cada refeição.

Na Guerra do Vietnã (1955-1975), além de incluir Tabasco nas rações dos soldados, os militares também distribuíram um livrinho de receitas editado pela empresa, o The Charlie Ration Cookbook (“Victor Charlie” era a forma como os militares americanos se referiam aos vietcongs, seus inimigos). Bem-humorada, a publicação ensinava a aproveitar melhor a ração, incluindo receitas como “Caldo de Feijão com Sobras” e “Caçarola Cessar-Fogo”. Tudo com Tabasco, é claro. Os americanos mandaram 2,7 milhões de soldados ao Vietnã – e muitos deles conheceram a pimenta no front.

Na década de 1980, mais de 60% das rações do Exército americano passaram a incluir vidrinhos de Tabasco, hoje substituídos por sachês. “Isso atraiu um público muito leal”, diz Bernard. Ao mesmo tempo, a empresa sempre anunciou em revistas ligadas à contracultura – que se opunham às guerras. Como em todo negócio, o importante é vender. Não importa para quem.

As vendas de Tabasco cresceram tanto que, a partir dos anos 1970, a McIlhenny foi obrigada a adotar um sistema curioso. O primeiro passo é cultivar, todo ano, uma leva inicial de pimentas em Avery Island. Trata-se de uma planície de sal, cercada por rios, 50 m acima do nível do mar. Essas pimentas são colhidas e suas sementes enviadas para plantações na Guatemala, em Honduras, na Nicarágua, na Colômbia, no Peru e no Equador. As pimentas “latinas” são colhidas e mandadas de volta para Avery Island, onde ficam três anos em barris, misturadas com sal e vinagre.

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Esse vaivém todo significa que a pimenta viaja 10 mil quilômetros até virar molho. Mas a fabricante diz que é o único jeito de garantir o sabor do Tabasco – que combina pimentas de vários lugares. “Nós notamos que há diferença conforme a região de cada pimenta e, por isso, criamos uma mistura para assegurar a qualidade”, diz John Simmons, diretor de agricultura da empresa e tetraneto de Edmund McIlhenny.

Ele comeu Tabasco pela primeira vez aos 3 anos. “Hoje eu ponho em tudo, em todas as refeições”, conta. A empresa diz que, se consumido com moderação, o molho não faz mal. O fato é que, como você talvez já tenha percebido, quem consome muita pimenta vai criando tolerância. Aquele molho que antes era fortíssimo e dava medo passa a parecer normal ou até meio fraco, você começa a colocar em tudo – e passa a ir atrás de pimentas cada vez mais fortes.

Em 2017, a McIlhenny entrou nessa onda criando o Tabasco Scorpion, uma edição limitada do molho produzida com a pimenta caribenha de mesmo nome. Ela é a segunda mais forte do mundo: alcança 2 milhões de pontos na Escala Scoville, criada em 1912 pelo químico americano Wilbur Scoville para medir a ardência das pimentas (a campeã é a Carolina Reaper, com 2,2 milhões de pontos). O molho Tabasco tradicional atinge 2.500 pontos. O Scorpion – que leva essa pimenta, abacaxi, goiaba e tabasco comum – chega a 50 mil. Vinte vezes mais forte.

Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, seu primeiro lote esgotou em poucas horas após o lançamento nos EUA. Ele deixou de ser edição especial, virou produto “de linha” (pode ser comprado por US$ 7 nos supermercados americanos), e tem feito sucesso. Pelo menos até que o paladar e o estômago do público se acostumem, e queiram algo ainda mais forte. E a corrida armamentista das pimentas dê mais um passo rumo à ardência absoluta. 

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* * *

Sriracha – O antitabasco

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(Marcus Penna/Superinteressante)

Se o Tabasco foi construído com muita publicidade e política, o Sriracha (molho asiático que tem o desenho de um galo na embalagem e fatura US$ 60 milhões por ano) fez o caminho oposto. Ele foi inventado nos anos 1980 pelo vietnamita David Tran, que emigrou para Los Angeles e criou uma mistura de pimentas jalapeño vermelhas, alho, vinagre, sal e (muito) açúcar.

“O molho já existia na Tailândia, mas foi adaptado ao gosto californiano”, diz o especialista em pimentas Denver Nicks. A produção começou em casa, com David distribuindo ele mesmo o produto em um furgão. Acabou abrindo uma empresa, que batizou de Huy Fong (navio no qual deixou a Ásia), mas nunca investiu um dólar em marketing – foi tudo no boca a boca. Tran nunca se incomodou com as imitações e nem sequer patenteou o nome do produto: daí a proliferação de molhos Sriracha (que é o nome de uma cidade: Si Racha, na Tailândia).

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