Como a vodca criou a União Soviética
Ela surgiu no final do século 15, acelerou a queda dos czares e motivou a primeira lei seca da história. Conheça a sua trajetória.
O líder mongol Tokhtamich não acreditou no que estava vendo. Seus homens conseguiram sitiar Moscou, mas a cidade ainda não havia sucumbido. O descuido dos inimigos moscovitas o surpreendeu. “Alguns rezavam, enquanto outros pegavam hidromel dos depósitos dos boiardos e começavam a beber. Bêbados, ficaram ousados e subiram nas muralhas”, anotou.
No alto dos muros, começaram a xingar os oponentes tártaros. Ficaram dois dias assim. Bebendo e ofendendo. Até que, totalmente desnorteados, trôpegos e entorpecidos pelo álcool, acharam que a batalha cessara e abriram os portões, enganados pelos inimigos à espreita.
Os mongóis saquearam e devastaram Moscou naquela noite de 23 de agosto de 1382. O próprio Tokhtamich atribuiu a vitória à bebedeira. Os russos tombaram, humilhados. A cidade foi queimada e milhares morreram.
Quase 7 séculos mais tarde, em 2011, o presidente Dmitri Medvedev anunciou um plano para quadruplicar a taxação sobre a vodca no país. O objetivo é não só aumentar a arrecadação de impostos sobre o produto como também combater o velho mal do alcoolismo na Rússia, onde a expectativa de vida é de 65,5 anos – menor até que a do pobre vizinho Cazaquistão.
Não é nem de longe a primeira vez que o governo se mete com o álcool. A vodca já foi monopólio estatal antes mesmo do socialismo. Acelerou a queda dos czares. Escancarou a fragilidade do Partido Comunista da União Soviética. Não importava se quem estava no comando era uma família real ostentadora ou um punhado de burocratas corruptos. Havia vodca na mesa. No trabalho. Nas manhãs congelantes. Quem ousou se meter com esse misto de orgulho e vício nacionais dificilmente passou incólume.
Primórdios bêbados
A vodca é uma bebida de centeio, batata ou trigo que surgiu no final do século 15 com a popularização da tecnologia de destilar, ou seja, separar líquidos por meio da evaporação. A palavra “vodca”, que evoca no imaginário algo forte, devastador, tem um significado quase irônico em russo: “aguinha”.
Mas o termo só se firmou no fim do século 19. Até então, tinha muitos nomes, como vinho de centeio e, atenção para a poesia, lágrima de cereal. Nessa época, ela já havia substituído havia muito tempo no coração e no fígado dos russos o hidromel, a antiga bebida fermentada que levou à derrota frente aos mongóis.
Em 1478, a Rússia, que começava a nascer como estado nacional, tirou o domínio da vodca da Igreja e criou um rentável monopólio sobre o produto. Até as tavernas pertenciam ao czar. No fim da década de 1850, 46% do orçamento do governo vinha da bebida. Esse era o Império Russo, um lugar onde a vodca dava mais dinheiro para o governo do que trens e ferrovias, o símbolo máximo da modernidade no século 19.
A época foi marcada também pelas mudanças implementadas no reinado de Alexandre II. Dois anos antes de Abraham Lincoln acabar com a escravidão nos Estados Unidos, ele libertou os 22,5 milhões de servos russos, em 1861. O czar lançou políticas econômicas mais progressistas e a indústria cresceu. A produção de vodca não estava nas mãos do Estado, mas da nobreza.
Esse contexto favoreceu o fortalecimento dos primeiros grandes industriais do álcool, segundo a jornalista americana Linda Himelstein no livro O Rei da Vodca. O mais famoso deles era o ex-servo Piotr Smirnov, criador daquele que é hoje o destilado mais conhecido e consumido do mundo, a vodca Smirnoff.
A bebida já estava estabelecida no cotidiano dos russos. Pedro, o Grande, instituiu o gole punitivo em seu reinado (1682-1725), passatempo em que os atrasados a uma reunião eram supostamente forçados a entornar uma caneca de vodca. Àquela altura, os russos bebiam em negociações. Bebiam na colheita. Na falta de dinheiro, pagavam em bebida. Subornavam em bebida. A mulher entrou em trabalho de parto? Dê-lhe vodca. O recém-nascido não para de chorar? Vodca goela abaixo que é para acalmar.
E o governo estimulava isso. Mesmo com o monopólio desativado desde o século 18, os impostos sobre o produto rendiam muito aos cofres públicos. Um terço das despesas estatais, incluindo todos os gastos militares em tempos de paz, era pago com o dinheiro da vodca.
Mas ela não era querida por todos. Pelo contrário. Além da Igreja, que desde que perdera o direito de produção tornara-se uma ferrenha opositora do álcool, havia grupos cada vez mais barulhentos que se levantavam contra os males causados pela bebida. O movimento da temperança crescia no fim do século 19 a fim de combater a já mundialmente notória embriaguez russa.
Lei seca
“A vodca é uma bebida incolor que pinta seu nariz de vermelho e enegrece sua reputação.” A frase é de Anton Tchekhov, um dos maiores autores russos de todos os tempos. Outro gênio da literatura fazia coro à oposição pública de Tchekhov à bebida. Filho de um alcoólatra, Fiódor Dostoievski escreveu que “o consumo de bebidas alcoólicas brutaliza o homem e o transforma em um selvagem”. O outrora bêbado contumaz Leon Tolstoi escreveu sobre os malefícios do álcool e criou, em 1887, a Liga Contra a Embriaguez.
Com o apoio de artistas desse porte, movimentos de temperança ganhavam força na sociedade, especialmente após a morte de Alexandre II, em 1881. Seu filho e sucessor, Alexandre III, não era tão liberal e não podia ignorar a crise do alcoolismo. Ele sancionou novas leis, como uma de 1885 que dizia que as tavernas só poderiam vender bebidas alcoólicas se também servissem comida.
Alexandre III morreu de pneumonia em 1894, e seu filho Nicolau II deu passos mais largos rumo à centralização do comércio alcoólico. Em 1895, com o intuito de controlar a qualidade e a quantidade de álcool no mercado, restituiu o monopólio, o que, em um primeiro momento, rendeu bons frutos tanto para a saúde do povo como para os cofres públicos.
Mas no século 20 a situação se complicou para a família real. O país perdera a Guerra Russo-Japonesa, em 1905, ano em que uma série de rebeliões se espalhou pelo território. E o estigma da vodca não havia diminuído.
Mais uma vez, a bebida atrapalhou o desempenho. Generais japoneses reconheceram que algumas vitórias ocorreram graças ao porre dos soldados russos. A posição do governo sobre o assunto gerava controvérsia. Havia campanhas pela sobriedade, mas, como a vodca era a principal fonte de renda do governo, na prática o consumo era estimulado.
A pressão aumentou ano a ano. O país estava em crise, e Nicolau II, desacreditado. Mas, com a Primeira Guerra Mundial, em 1914, o povo voltou a se unir e apoiar o czar, que achava que a sobriedade era de suma importância no conflito.
Para mobilizar a população, ele decretou a lei seca, a primeira do gênero na história. O czar queria livrar a Rússia do vício. E parecia que podia conseguir. “A população saiu da inércia bêbada para a sobriedade da noite para o dia”, registrou o jornal americano The New York Times na época.
Os soldados ficaram prontos para a guerra na metade do tempo previsto. A embriaguez pública era algo raro. A criminalidade caiu. “Não se pode escrever sobre a mobilização russa ou o rejuvenescimento do império sem falar da proibição da vodca”, disse o jornal inglês Times em 1915. “De um só golpe, libertou-se da maldição que paralisou a vida dos camponeses por gerações. Isso em si não é nada menos que uma revolução.”
Entretanto, a proibição teve consequências nefastas. Os soldados estavam despreparados, havia poucos suprimentos. “A lei seca significou que o Estado perdeu um terço do orçamento, resultando em falta de botas e fuzis [no front]”, lembra Patricia Herlihy, historiadora da universidade Brown, nos EUA, e autora de The Alcoholic Empire (inédito em português).
Para tentar acelerar a economia, o governo imprimiu mais dinheiro, o que causou hiperinflação e mais descontentamento. “A defasada infraestrutura ferroviária dificultou o transporte de grãos para o norte. A produção de samogon, uma vodca ilícita [e muito mais prejudicial à saúde], cresceu. A falta de pão em São Petersburgo [Petrogrado à época] desencadeou a rebelião de mulheres, que tiveram apoio de soldados e estudantes para pedir a abdicação de Nicolau II”, diz.
Somem-se a isso um frio de -40 ºC no inverno e anos de descontentamento. “Há relação entre a proibição e a queda do czarismo”, afirma. O cientista político americano Mark Schrad, autor de The Political Power of Bad Ideas (inédito em português), concorda. “Os tesouros mais cobiçados do Palácio de Inverno não eram os quadros na parede, mas as adegas imperiais”, diz.
A era dos czares acabou em 1917. “O quebrado governo bolchevique cogitou vender o estoque de vodca no estrangeiro, mas optou por destruí-lo para evitar insurreições bêbadas”, diz Schrad. A vodca tinha criado um vício econômico que ajudou a derrubar o regime czarista. Mas o estigma social perdurava.
OUTRAS LEIS SECAS
Os americanos fizeram a fama, mas outros países proibiram o álcool antes
Islândia (1915-1935)
Assim como outros países do norte da Europa, a Islândia foi marcada pela forte presença de grupos conservadores nos séculos 19 e 20. A cerveja só foi legalizada em 1989. Ainda hoje há restrições ao consumo nesses países.
Finlândia (1919-1932)
Assim como a Noruega, sentiu no bolso os efeitos da lei seca. Países como a França ameaçaram produtos escandinavos com o aumento de tarifas alfandegárias em represália ao banimento de suas bebidas. Com 70% de aprovação, o fim da lei foi decretado após 13 anos.
Estados Unidos (1920-1933)
Foi aprovada para combater a pobreza e a violência causadas pelo alcoolismo. Mas resultou em bares clandestinos, 30 mil mortos por intoxicação, corrupção na polícia – e Al Capone. Ao menos, popularizou drinques que mascaravam o álcool de má qualidade, como o bloody mary.
Contrarrevolução
Os líderes da Revolução Russa condenavam o álcool e mantiveram a lei seca. Produção e venda ilegais de vodca eram crimes graves. Mas, em 1924, o estado soviético retomou a produção, dando início a uma nova era de monopólio.
Na década de 1930, o líder soviético Josef Stálin mudou a postura antiálcool com objetivos políticos. Aumentou a produção e permitiu um consumo maior na camada da sociedade mais crítica a ele: artistas, jornalistas, arquitetos e outros profissionais liberais. “Com a ajuda do álcool, tentavam cortar a língua de críticos em potencial”, escreveu o historiador russo W. V. Pokhlióbkin no livro Uma História da Vodca.
O governo conseguiu razoavelmente controlar o mal do alcoolismo nos primeiros anos do regime soviético. Mas aí veio a Segunda Guerra Mundial.
Em 1943, após a vitória sobre os nazistas na batalha de Stalingrado, o Exército Vermelho passou a dar uma ração diária de vodca aos soldados. No começo, quem não bebia podia optar por chocolate, mas em 1945 o hábito de beber voltou a ser tão comum entre as tropas que recusar a dose podia ser visto como insubordinação.
“Toda a população masculina ativa da União Soviética estava no Exército”, lembra Pokhlióbkin. Assim, o hábito de beber costumeiramente voltou com tudo. “Em meados da década de 1960, a embriaguez no serviço se tornou um fenômeno cotidiano”, escreveu.
Déjà vu
Uma das primeiras medidas de Mikhail Gorbachev quando assumiu o poder, em 1985, foi lançar uma forte campanha antiálcool. O problema, segundo os críticos, é que a medida mirou a produção de vodca, e não a questão de saúde pública. Fazendas foram dissolvidas e destilarias, quebradas.
Mas a vodca ainda era monopólio estatal. Se há campanha contra a produção e o consumo, a renda do produto na forma de impostos, responsável por um quarto do orçamento, cai. Foi o que aconteceu. Novo fracasso contra o álcool. A produção de samogon voltou a crescer, detonando a saúde da população. “Na mesma época, o preço de outro produto-chave dos soviéticos entrou em colapso: o do petróleo”, diz Schrad. Assim como 70 anos antes, imprimiram mais dinheiro, geraram uma nova superinflação e aceleraram o fim da URSS.
Hoje a vodca não tem um papel tão central na economia do país, representando de 2 a 5% do orçamento. “Além disso, na campanha antiálcool de Medvedev, parece que os russos aprenderam que práticas culturais não podem mudar simplesmente com medidas de choque”, opina Schrad. “A classe média tem trocado vodca por vinho”, diz Herlihy. “Algumas atitudes estão mudando. Mas aumentar o preço não resolve o problema. Só vai fazer com que as pessoas voltem ao samogon ou a qualquer coisa com álcool, como fluido de refrigerador.”
O monopólio sobreviveu ao fim da URSS. Boris Yeltsin tentou, mas não conseguiu acabar com ele. Nem a Rússia nem o presidente venceram a dependência do álcool. As bebedeiras de Yeltsin, morto em 2007, eram tão famosas que seu antigo chefe de segurança precisou negar uma afirmação feita em 2009 pelo ex-presidente americano Bill Clinton. Segundo Clinton, em 1995, Yeltsin, em visita oficial a Washington, foi visto de madrugada na rua, próximo à Casa Branca. Ele procurava por pizza. De cueca. Bêbado.
Afinal, a vodca é de quem?
Na década de 1970, a Polônia, então um dos mais inquietos países sob o guarda-chuva soviético no contexto da Guerra Fria, passou a divulgar que a vodca é um produto típico do país – e não da União Soviética.
O monopólio estatal polonês alegava que a bebida nasceu no antigo reino formado por Polônia e Lituânia no século 14. Portanto, o direito de usar comercialmente o nome “vodca” deveria ser exclusivo do país (assim como champanhe é só o vinho branco efervescente feito na região homônima da França e tequila é só o destilado de agave produzido em Jalisco, México).
Em 1978, a URSS iniciou uma busca aos primórdios da vodca a fim de comprovar a origem russa dela. Quatro anos depois, um tribunal internacional deu a vitória aos soviéticos. Mas até hoje se discute onde o destilado mais consumido do mundo realmente nasceu.
Além da Rússia e da Polônia, a Finlândia, antiga colônia russa e grande produtora de vodca, alega que a “aguinha” surgiu em suas terras. Mas quem realmente popularizou a bebida no Ocidente foi um inglês, que há 60 anos pede vodca martíni em bares do mundo todo: James Bond.