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Impeachment não pode mesmo ser de qualquer jeito

Decisão de anular a votação de impeachment de Dilma deixou muita gente irritada. Mas está correta.

Por Denis Russo Burgierman
Atualizado em 11 mar 2024, 10h40 - Publicado em 9 Maio 2016, 16h00

Guerra de torcidas impeachment

Quase todo mundo concorda que a votação do impeachment na Câmara dos Deputados, que ocorreu no mês passado, foi um show de horrores, com direito a deputados oferecendo o voto a sua própria família, um sem-número de menções ao divino causando confusão num estado supostamente laico, um gângster comandando tudo e até um zé mané que achou legal homenagear um torturador safado. Mas o mais chocante é que, naquele domingo esquisito, os deputados simplesmente não fizeram o seu trabalho. Parece que eles esqueceram que estavam lá com uma missão muito clara e também muito importante: a de decidir se havia indícios sérios de que a presidente Dilma Rousseff cometeu um crime. O assunto sequer foi discutido. Conforme a SUPER apurou, as expressões “responsabilidade fiscal”, “improbidade administrativa” e “lei orçamentária” – que dizem respeito ao suposto crime de Dilma – praticamente não foram pronunciadas naquele dia. A primeira foi mencionada só 3 vezes, a segunda, 2, a terceira uma única vez (já a palavra “família” apareceu nos pronunciamentos dos deputados 133 vezes).

Palavras impeachment

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Mas e daí? E daí que a Câmara fez um trabalho porco na hora de punir a presidente: se praticamente todos os partidos concordam que Dilma deve cair, se mais de 60% da população são a favor de lhe tirar o cargo e sua popularidade se arrasta pelo chão, por que se ater a formalidades? Se o Brasil não quer mais Dilma presidente, não é mesmo o caso de lhe cassar o mandato logo, mesmo que para isso seja preciso acoxambrar uns processos e pedir ajuda a uns bandidos? Pois então… A verdade é que não. Democracia tem ritos, tem regras e tem balanços de poder. Obedecer a tudo isso dá trabalho, complica as decisões, mas é justamente o que faz com que democracia seja um regime melhor que os outros.

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O cientista político Larry Diamod, da Universidade Stanford, um dos maiores especialistas em democracia do mundo, fala muito sobre isso. Ele diz que, para um país ser democrático, não basta que ocorram eleições. É preciso que haja uma série de “pesos e contrapesos” – o poder nunca pode estar num lugar só. Nem mesmo quem é eleito pelo voto pode ter direito a fazer o que quiser. Diamond escreveu bastante sobre a ideia de accountability – uma palavra tão estranha à cultura política brasileira que nem tradução decente tem. Accountability é a obrigação que os governantes têm de prestar contas pelo que fazem. Segundo Diamond, uma democracia de alta qualidade precisa ter dois tipos de accountability: vertical (prestar contas à população) e horizontal (certas áreas do governo têm a obrigação de fiscalizar outras áreas, ninguém pode ter poder absoluto sobre nada).

Pela premissa da accountability vertical, o povo tem todo o direito de cassar o mandato de um governante frustrante. Pela accountability horizontal, faz todo sentido que o Congresso tenha a atribuição de investigar e de punir o presidente, mesmo num país presidencialista. Mas não pode ser de qualquer jeito.

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Assim como Dilma não tinha o direito de aumentar os gastos sociais sem pedir autorização para o Congresso, o Congresso não tem o direito de anular os 54 milhões de votos de Dilma sem cumprir uma série de formalidades e provar que Dilma cometeu um crime. Numa democracia, “todo o poder emana do povo”, mas nenhum poder é absoluto.

Ao que tudo indica, o crime foi mesmo cometido. Dilma realizou pedaladas fiscais, que nada mais são do que gastar mais do que tem para cobrir o rombo depois. O Brasil seria um país melhor se os governantes não cometessem tal crime, mas o fato é que eles cometem. Não só Dilma. Temer, nos curtos períodos em que substituiu a presidente em sua ausência, pedalou três vezes mais que ela. Entre os tucanos, o senador Antonio Anastasia, relator do processo de impeachment no Senado, foi um padalador notório em seus tempos de governador. As pedaladas do governador paulista Geraldo Alckmin já ultrapassaram os 300 milhões de reais – bem menos que os bilhões de Dilma, mas crime igual. Se o Congresso quer seriamente punir Dilma, é importante que se afirme com clareza a disposição de punir de maneira equivalente todos os ciclistas fiscais, independente de partido ou de taxa de popularidade.

Alguém vai argumentar que se apegar às regras da democracia enquanto o país naufraga é como tocar violino no Titanic. Que importa se a Câmara não discutiu nem provou o crime, se não garantiu amplo direito à defesa nem cuidou para que o processo fosse legítimo e conduzido por pessoas insuspeitas? Só o que importa é derrubar Dilma. Enfim, democracia é bom, mas há que se abrir mão dela quando ocorre uma crise.

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Mas não. Embora seja verdade que democracias quase sempre sejam mais lentas na hora de tomar decisões, há farta pesquisa mostrando que elas são muito mais estáveis no longo prazo. Regimes autoritários, nos quais regras são menos respeitadas, realmente conseguem tomar decisões mais rápido, mas de tempos em tempos acabam caindo em grandes crises institucionais, por falta de legitimidade de seus líderes. As sucessões são mais turbulentas, os debates políticos tornam-se violentos, a insegurança sobre quais regras valem e quais não valem gera um clima em que nenhuma regra é cumprida. Se um processo tão cheio de situações suspeitas quanto aquele iniciado no dia 17 de abril terminasse com o afastamento de uma presidente eleita e com a faixa no peito de um presidente tão ilegítimo quanto Temer – que não tem nenhum voto popular, é investigado por vários crimes e pedala mais que Dilma -, talvez ele nos assombrasse por muito tempo. Imagine o clima de revanche que isso podia gerar. Imagine o quanto essa insegurança institucional poderia atrapalhar a economia e afugentar investimentos.

Numa democracia de alta qualidade, o mandatário segue as regras – e portanto não pedala. Da mesma forma, numa democracia madura, o Congresso segue as regras e os ritos e faz as coisas direito. Um processo ilegítimo para punir um mandatário pelos seus processos ilegítimos não é um passo na direção de um país melhor. Não contribui em nada para deixar nossas instituições mais sólidas, justas e democráticas.

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Que a Câmara faça seu trabalho direito dessa vez, sem nos obrigar a passar vergonha de novo. E que a decisão sobre se Dilma e Temer merecem ou não perder seus mandatos, seja ela qual for, não seja respaldada por paixões eleitorais ou por inspiração divina, mas pela aplicação objetiva da lei, que precisa valer para todo mundo.

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