Cuspir a esmo na Câmara dos Deputados tem boas chances de acertar
A porcentagem de deputados com problemas na Justiça ou outros escândalos que os desabonem é tão alta que Jean Wyllys tentou cuspir em um e acabou acertando outro. Por que é assim?
Você viu a cena: Jean Wyllys, logo após dar seu voto, derrotado, na seção da Câmara que aprovou o processo do impeachment, saiu andando chateado. Seu colega deputado, Jair Bolsonaro, que, quis o destino – e a ordem alfabética – tinha acabado de votar, estava lá ao lado, todo pimpão. Ele tinha acabado de publicamente prestar homenagem ao coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, um assassino sanguinário que gostava especialmente de espancar mulheres, mesmo as grávidas. Animadão, Bolsonaro começou a gritar para Wyllys – segundo relatos, chamou-o de “queima-rosca”, “boiola” e “veado”. O único parlamentar asumidamente homossexual da Câmara perdeu a compostura e deu uma cuspida no falastrão. Errou. O ágil Bolsonaro desviou o rosto e o catarro foi melecar os cabelos brancos de outro deputado, o gaúcho Luis Carlos Heinze, investigado por corrupção, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro pela Operação Lava Jato, famoso também por ter dito e redito que homossexuais, índios e quilombolas são “tudo que não presta”.
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O incidente, lamentável por todos os aspectos, dá o que pensar para quem gosta de questões estatísticas. Nas redes sociais, os mais irônicos saíram dizendo que nossa Câmara dos Deputadas tem uma concentração tão grande de gente com postura e ficha corrida questionáveis que mesmo uma cuspida errada tem boas chances de acertar. A questão dominando as conversas dos dois lados da divisão ideológica é a seguinte: como é possível que a qualidade das pessoas na Câmara seja tão baixa?
Antes que alguém comece a insinuar que este artigo aqui é “pró-PT” ou “pró-governo”, que fique claro: o problema não está apenas entre os inimigos de Dilma. Deputados com problemas na Justiça, por exemplo, estão equanimemente divididos entre os que votaram “sim” e “não” na seção do impeachment: segundo a agência de notícias Lupa, especializada em checagem de dados, 59% de quem votou “sim” e 58% de quem votou “não” tem “ocorrências judiciais” no currículo.
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Dos 513 deputados brasileiros, 299 tem problemas com a Justiça, segundo a Lupa. Algo como 60% dos deputados federais brasileiros têm problemas com a lei: uma porcentagem tão incrivelmente alta que, como o jornalista e comediante britânico John Oliver, em seu programa Last Week Tonight, notou, “o Legislativo brasileiro tem uma concentração per capita de criminosos apenas 40% mais baixa que os presídios brasileiros”.
Muita gente saiu dizendo que a Câmara é reflexo da nação: a baixa qualidade do Legislativo reflete uma qualidade baixa que perpassa a sociedade toda. Mas isso não é bem verdade. Embora não haja dados confiáveis, é muito improvável que o número de brasileiros respondendo a denúncias ou sendo investigados por crimes ultrapasse 5% da população.
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Como é que pode? Como é que o órgão que existe para representar o Brasil, e que teoricamente deveria reunir o melhor do país, virou um lugar com concentração de bandidos semelhante ao de uma prisão?
Para responder a essa pergunta, é útil recorrer à ciência dos sistemas complexos, que fala muito sobre “incentivos”. A ideia é a seguinte: não é que as pessoas sejam divididas entre os “bons” e os “maus”: o mundo tem mais sutileza que isso. A maioria de nós tem um lado bom e um nem tanto, e nos comportamos pior ou melhor conforme os incentivos que nos são oferecidos. É por isso que o parlamento da Noruega ou o da Dinamarca são um pedacinho do paraíso, com todo mundo se comportando bem, enquanto que, no Brasil, quando se cospe para cima, as chances do cuspe cair em algum salafrário é gigantesca. Não é que os brasileiros sejam piores que os dinamarqueses – canalhas e heróis existem em proporções semelhantes em todas as populações. Mas provavelmente nosso sistema é muito pior desenhado que o deles, o que faz com que apareça um padrão de mau comportamento aqui e um de bom comportamento lá.
E, realmente, quando se investiga as regras que regem as escolhas e a carreira dos deputados, percebe-se que existe mesmo uma série de incentivos que atrai gente questionável para a carreira parlamentar. Veja alguns dos problemas:
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1. RAPOSAS ADMINISTRAM O GALINHEIRO – O cientista político Larry Diamond, da Universidade Stanford, um dos maiores especialistas em democracia, fala muito sobre o que distingue democracias de alta qualidade das de baixa qualidade. Uma característica chave é a ideia de “accountability horizontal” – ou seja, deve caber a uma instituição monitorar e fiscalizar a outra. Afinal, quando cada um fiscaliza a si próprio, há um forte incentivo de fechar os olhos para mal-feitos. Por exemplo: o presidente no Brasil tem muitos poderes, mas o Congresso tem o poder de punir o presidente. Isso cria um clima de cuidado – mesmo os mal intencionados pegam leve para não serem apanhados. No Congresso, a coisa não funciona bem assim: a Câmara tem poder demais para definir seus próprios benefícios e as regras que a regem. O Comitê de Ética da casa raramente pune alguém: há um clima corporativista que protege todos. Essa característica ainda por cima atrapalha a resolução dos problemas: é difícil imaginar que um Congresso picareta tenha incentivo para mudar as regras de maneira a deixar o Congresso menos picareta.
2. IMUNIDADE PARLAMENTAR – uma das piores ideias da lei brasileira é o conceito de “imunidade parlamentar”, segundo o qual deputados (e vários outras autoridades do Executivo) não podem ser julgados pela justiça comum. Não que não seja importante proteger os congressistas de ações articuladas para atrapalhar seus mandatos. Pela própria natureza do trabalho parlamentar, deputados tendem a contrariar interesses e acabam sofrendo muitas ações. A maioria dos países tem instrumentos para garantir aos deputados a liberdade de expressão, e para que acusações de caráter político contra legisladores sejam julgadas apenas em instâncias altas. Mas, no Brasil, mesmo congressistas com acusações de crime comum – roubo, agressão, sequestro, homicídio – são protegidos pela lei e só podem ser julgados no Supremo, a não ser que haja flagrante. Isso cria um incentivo para que gente mal comportada entre para a carreira política. Alguém que está com a polícia nos calcanhares pode optar por, em vez de contratar um advogado criminal, contratar um marqueteiro de campanha e comprar uma vaga num partido. Esses não são deputados que viraram bandidos: são bandidos que escolheram a carreira política para escapar da cadeia.
3. VOTO PROPORCIONAL – no sistema brasileiro, para se eleger, um deputado precisa concorrer com centenas de outros candidatos de dezenas de partidos do estado inteiro. É muita gente. Só se elege quem consegue várias dezenas de milhares de votos. Nesse esquema, quem tem muito dinheiro leva boa vantagem sobre quem não tem: pode mandar imprimir milhões de panfletos e ficar repetindo seu nome para as pessoas até elas gravarem. Candidatos com poucos recursos, ainda que façam um trabalho fantástico em seus bairros, acabam sendo conhecidos apenas por quem está perto deles, e não conseguem votos suficientes para se eleger. Além disso, numa disputa entre milhares de pessoas querendo aparecer, acabam sobressaindo aqueles que falam coisas ultrajantes, ofensivas – coisas que repercutem na mídia e que todo mundo comenta. Nesse aspecto, deputados como Bolsonaro são beneficiados – quanto mais bobagens falam, mais ficam conhecidos e mais votos angariam. Um sistema de voto distrital, em que um pequeno número de candidatos disputam entre si uma única vaga em cada distrito, poderia melhorar isso, porque permitiria que os eleitores conhecessem todos os candidatos de sua região e escolhessem o melhor.
4. EMENDA PARLAMENTAR – outra excrescência do sistema brasileiro é a tradicional instituição da emenda parlamentar ao orçamento. Por lei, cada deputado pode dispor de cerca de 15 milhões de reais que ele destina a obras que ele julgue relevantes. Isso acabou levando a uma situação em que o Congresso brasileiro não conversa sobre quais são as necessidades do país – não há debate algum, cada um cria leis para beneficiar alguém, nada é avaliado pelo mérito ou pela necessidade. Claro que alguns deputados usam essa emenda para destinar dinheiro a quem precisa e/ou merece. Mas a existência desse mecanismo acaba criando outro incentivo perverso: se alguém é um estelionatário, nada melhor do que pegar emprestada uma grana para se eleger deputado, e depois usar a emenda parlamentar para recompensar aliados. Esquemas entre bandidos locais e financiadores de campanha viraram lugar-comum no Congresso brasileiro: o financiador de campanha dá x para um político desonesto, em troca o político destina 10x dos contribuintes, ou 100x, para este mesmo financiador. Não é à toa que quase metade da Câmara está de alguma forma implicada na Operação Lava-Jato.
5. CLIMA DE BARGANHA – um quinto problema é que, até pelo baixo nível dos deputados, não há na Câmara muito debate sobre o que é melhor para o Brasil. Os deputados sérios – e há vários – costumam falar sozinhos, sem ninguém para prestar atenção. Afinal, o mérito das coisas passa longe do dia-a-dia do Congresso. Os apoios são negociados não pela discussão sobre o que é melhor para o país, mas através de trocas simples: cargos por votos, emenda por emenda, apoio na eleição por segundos de TV e reais para a campanha. Esse clima de mercado livre acaba sendo um incentivo duplo: por um lado, afasta as pessoas que buscam um sentido maior no trabalho político. Por outro, atrai sociopatas e ladrões de galinha, que costumam se sair bem no toma lá dá cá. Para piorar, há pouca transparência tanto em relação aos gastos quanto em relação aos méritos das coisas – um cenário perfeito para aproveitadores passarem desapercebidos.
6. MÁ FAMA – Por último, ocorre algo que os cientistas da complexidade chamam de feedbacks positivos, um sinônimo de “ciclo vicioso”. Em outras palavras: a fama de que o Congresso é um lugar de bandidos acaba atraindo mais bandidos para o Congresso. Hoje, se alguém bem intencionado e talentoso disser à família ou aos amigos que quer ser deputado, provavelmente receberá de volta uma careta, se não um palavrão. Não se espera que alguém honesto escolha esse caminho, o que em si já gera um incentivo para que os honestos não o sigam. Mudar a qualidade do Congresso passa por mudar a cultura – precisamos aprender a valorizar o trabalho político.
A votação do impeachment, no domingo, deu a muitos brasileiros a esperança de que a democracia brasileira possa ficar mais forte, e de que a impunidade fique no passado. É uma esperança legítima. Mas é importante lembrar: não existe democracia de alta qualidade sem um Congresso de alta qualidade. E o Brasil está bem longe disso.
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