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Leonardo de todos os instrumentos

Não frequentou uma universidade e era desprezado nas rodas intelectuais de Florença, no Renascimento. Mas suas pinturas o fizeram cortejado pelos poderosos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 26 abr 2023, 17h03 - Publicado em 30 set 1987, 22h00

José Tadeu Arantes

“De tempos em tempos, o Céu nos envia alguém que não é apenas humano, mas também divino, de modo que, através de seu espírito e da superioridade de sua inteligência, possamos atingir o Céu.”

Com estas palavras, Vasari, o célebre biógrafo do século XVI, inicia o seu relato sobre a vida de Leonardo da Vinci. Apenas 30 anos após a morte desse gênio superlativo, sua figura já estava totalmente envolvida pela aura do mito.Nascido na cidadezinha de Vinci, próxima a Florença, no dia 15 de abril de 1452, Leonardo seria considerado, em pouco tempo, o maior pintor de sua época, protegido e adulado em algumas das principais cortes européias. Mas seu enorme prestigio não se restringiu à pintura. Escultor, músico, arquiteto, engenheiro civil e militar e extraordinário inventor, ele foi a versão suprema do homem dos sete instrumentos.Seu talento versátil se expressou até mesmo em atividades mundanas e tipicamente cortesãs, como a organização de festas e diversões para a nobreza: desde a invenção de um palco giratório para apresentações teatrais até o desenho de trajes de luxo; de entretenimentos musicais à arte da conversação e aos jogos de palavras. Vasari diz que ele “foi o melhor improvisador de rimas de seu tempo”.Mas, coexistindo com esse Leonardo público, celebrérrimo e celebrado, houve outro, talvez ainda mais assombroso: um Leonardo solitário e secreto, que permaneceria desconhecido durante muito tempo. Numa atividade recolhida, sigilosa, escrevendo da direita para a esquerda para que seu texto não pudesse ser lido — o que Ihe era facilitado pelo fato de ser ambidestro —, encheu páginas e páginas com a mais eclética massa de conhecimentos, produzindo, com anotações e desenhos, uma gigantesca colcha de retalhos do saber universal. Os primeiros manuscritos de que temos noticias datam de 1478, quando Leonardo, então em Florença, contava ainda 26 anos. Os últimos são de 1518, de poucos meses antes de sua morte, ocorrida na França, em 2 de maio de 1519.Em cerca de seis mil páginas que nos restam dessa prodigiosa obsessão há praticamente de tudo: Geometria e Anatomia; Geologia e Botânica Astronomia e Ótica; Mecânica dos Sólidos . Mecânica dos Fluidos; Balística e Hidráulica; magníficos desenhos preparatórios e exaustivos estudos de perspectivas; considerações teóricas sobre a arte e anotações técnicas muito precisas sobre como fundir uma estátua eqüestre em bronze; o plano arquitetônico para a construção da catedral de Milão e um projeto de desvio do curso do rio Arno para ligar Florença ao mar; mapas e planos urbanísticos; projetos de pontes e fortificações.Há, principalmente, a mais fantástica coleção de invenções e soluções de engenharia já imaginadas por um único homem: esboços de helicópteros, submarinos, pará-quedas, veículos e em barcações automotores, máquinas voadoras; projetos minuciosos de tornos máquinas perfuratrizes, turbinas, teares, máquinas hidráulicas para limpeza e dragagem de canais, canhões, metraIhadoras, espingardas, bombas, carro de combate, pontes móveis etc.Mas esse Leonardo, que escrever praticamente sobre tudo, escreveu muito pouco sobre si mesmo. Sabemos que no seu comportamento cotidiano se refletia a mesma ambigüidade presente em sua produção intelectual. Gostava de se cercar de luxo, tratava amigos e criados com opulência e generosidade, mas tinha hábitos frugais: era vegetariano e preferia a água ao vinho. Muitas de suas noites foram consumidas na dissecação de cadáveres, em meio aos odores da morte e da decomposição. O quanto ele era habilidoso nessas técnicas o mostram seus desenhos anatômicos, considerados superiores aos do célebre Andreas Vesalius, o grande anatomista do Renascimento.Sua infância não foi fácil — o que talvez explique o gosto pelo luxo na idade adulta. Filho ilegítimo de um tabelião florentino e uma camponesa, foi criado longe da mãe, na casa do avô paterno, junto do pai e de uma madrasta.

Pelo menos até a idade de 20 anos, foi filho único e só teria irmãos no terceiro ou quarto casamento do pai. Depois de afastado do convívio com a mãe, a morte da primeira madrasta, quando Leonardo tinha cerca de 13 anos, parece ter representado para ele uma segunda grande perda afetiva. Logo haveria uma terceira, aos 16 anos, com a morte do avô, a quem era muito ligado.Desse complexo quadro de vida, Freud, o fundador da psicanálise, derivou sua interpretação da trajetória de Leonardo. Ela seria movida por uma repressão da pulsco sexual e por uma inibição afetiva, em que a pulsão do conhecimento acabaria submergindo, pouco a pouco, qualquer outro fator emocional. Peça chave da explicação freudiana é a hipótese, que hoje parece indiscutível, da homossexualidade de Leonardo.Seja como for, aos 17 anos ele já havia dado provas de seu talento excepcional. O pai o inscreveu, então, como aprendiz no grande ateliê de Andrea Verrochio, em Florença. Não se tinha lá uma formação erudita; o ensino era todo voltado para a prática; mas era incrível a massa de conhecimentos que se podia adquirir: cálculo, perspectiva, desenho, pintura, escultura em pedra e metal, arquitetura, construção civil e militar etc. É ao ateliê de Verrochio que Leonardo deve toda a sua formação básica. A partir dai ele será um autodidata. Muitas coisas aprenderá por ouvir dizer, numa época em que grande parte do conhecimento ainda era adquirida de ouvido. Outras, porém, Ihe custam um enorme esforço de leitura e sistematização de que os manuscritos por ele deixados são testemunhos.Aos 40 anos, copia nos cadernos palavras eruditas — retiradas dos livros — que possam enriquecer seu vocabulário rústico. Aos 50, está envolvido ainda com um estudo por conta própria, não só do latim, mas também da geometria de Euclides, que será uma paixão e um modelo até o fim da vida.

Ele era, então, o que alguns de seus pedantes contemporâneos classificaram como um uomo senza lettere (homem sem letras), isto é, alguém que não possuía uma formação humanística: de fato jamais freqüentara a universidade e, durante muito tempo, esteve impedido de ter acesso direto à grande cultura pela barreira do idioma, já que não dominava o latim e muito menos o grego. Esse menosprezo dos meios sofisticados, a que Leonardo respondia com afetado desdém, não deixou de magoá-lo, reabrindo feridas mal curadas de sua infância traumática. Os biógrafos são unânimes em apontar como uma das principais causas de sua primeira saída de Florença, por volta dos 30 anos, uma dificuldade de adaptação ao culto e refinado ambiente florentino.

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A mudança para Milão, em 1482, representou uma virada decisiva em sua trajetória intelectual. Nos dezessete anos que passou a serviço do duque Ludovico Sforza, seu gênio floresceu plenamente. Não só em pinturas soberbas, como A última ceia e a primeira versão de A virgem dos rochedos, mas também na afirmação definitiva de sua vocação para a ciência e a tecnologia. A queda de Ludovico com a ocupação de Milão pelos franceses, em 1499, pôs fim a esse período brilhante e relativamente tranqüilo A partir dai, Leonardo, já uma celebridade, iria trocar de domicilio e patrão ao sabor da instável conjuntura política italiana: novamente Florença, com rápidas passagens por Mântua e Veneza; Urbino, como arquiteto militar e engenheiro chefe de Cesare Borgia, em cuja corte encontrou-se com Maquiavel, fundador da ciência política moderna; outra vez Milão, a convite do governador francês Charles d’Amboise; Roma, na corte papal.Essas mudanças constantes não Ihe bloquearam porém a criatividade. É do segundo período florentino, por exemplo, seu quadro mais famoso — na verdade, o mais famoso de toda a historia da pintura, a Mona Lisa, enigmático retrato da esposa do rico comerciante Francesco del Giocondo. Já a estada em Roma, novamente a serviço dos Medici, seria certamente a fase mais desgostosa de sua vida.Giovanni de Medici, filho de Lourenço, o Magnífico, havia sido eleito papa, com o nome de Leão X, e saudou sua eleição com uma frase que ficou célebre: “Já que Deus nos deu o papado, gozêmo-lo”. Amante dos prazeres, da pompa e do luxo, protetor das artes na medida em que satisfizessem sua vaidade, tratou logo de atrair para sua corte os artistas mais brilhantes. Lá se reuniram os três maiores nomes do renascimento italiano: Leonardo, Michelangelo e Raffaello.

Deveria ser um momento privilegiado na história da arte. Mas não foi um momento feliz para Leonardo.Contava então 60 anos — era uma geração mais velho do que Michelangelo e duas mais do que Raffaello. Seu contato com Michelangelo foi francamente hostil. Típico produto do ambiente patrocinado pelos Medici, Michelangelo nada tinha em comum com a formação científico-experimental leonardiana. Além do mais, trabaIhava rápido, num ritmo alucinante. enquanto Leonardo, dispersivo e perfeccionista, projetando sua transbordante genialidade em inúmeras direções, mas sem paciência de levar nenhum projeto até o fim, trabalhava devagar e adiava sempre. A preferênciacia dos romanos por Michelangelo e Raffaello e ao ambiente hostil da corte papal, Leonardo respondeu com retraimento e um de seus desenhos mais perturbadores, O Dilúvio, um visão apocalíptica de destruição e aniquilamento.Ele escapou desse tormento graças à subida de Francisco I ao trono da França. Convidado a assumir o cargo de “primeiro pintor, engenheiro e arquiteto do rei”, foi instalado no palácio de Cloux, a apenas algumas centenas de metros do palácio real de Amboise, no condado do Loire, França, recebendo tratamento principesco. Lá viveria, de 1516 até o ano de sua marte, em companhia de seus discípula prediletos, entre eles Francesco Melzi e Salai.Ambos haviam-se unido a Leonardo ainda em seu primeiro período milanês.

Melzi herdaria praticamente todo os seus bens. Salai, um garoto de apenas 10 anos quando entrou a serviço do mestre, já no segundo dia robou-Ihe algum dinheiro, o que continuaria, a fazer com certa regularidade ao longo dos anos. Leonardo anotou que ele era “ladro, bugiardo, ostinato, ghiotto” (ladrão, mentiroso, obstinado, glutão), mas nem por isso deixou de mi má-lo. Com uma ponta de malícia Vasari o descreve como belíssimo gracioso, com vastos cabelos encaracolados, de que Leonardo “si diletò molto” (se agradou muito) — referência que, evidentemente, não escapou à atenção de Freud.A julgar por seus últimos auto-retratos e pelo testemunho dos visitantes, Leonardo parecia sofrer de alguma doença degenerativa, que Ihe dava uma aparência envelhecida. Sua mão direita estava semiparalisada, talvez em decorrência de um derrame cerebral. Nos aposentos, guardava algumas de suas maiores preciosidades: três magníficas pinturas — Sant’Ana, a Virgem e o Menino, a Mona Lisa e São João Batista — e os manuscritos que carregara consigo em suas muitas viagens e a vida inteira teimou em manter inéditos.Herdados pelo discípulo Mezi, esses, manuscritos acabariam se espalhando da maneira mais tortuosa e só começaram a ser redescobertos a partir do final do século passado. A impressão inicial causada pelas seis mil páginas sobreviventes é de um caos desconcertante. Os assuntos se misturam sem nenhuma ordem aparente: na mesma página, a anotação mais instantânea e trivial da vida cotidiana pode estar lado a lado com o enunciado de um teorema ou com a observação acurada de um fenômeno natural.

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O método de trabalho de Leonardo talvez explique em parte essa incrível dispersão. Sabemos hoje que ele carregava sempre consigo cadernos de notas em que podia registrar uma frase ou esboçar rapidamente um desenho. Ao lado desses, havia outros cadernos, mais ordenados e homogêneos, preenchidos com calma no silêncio de seus aposentos. Neles. numa escrita elegante e em desenhos de acabamento impecável, procurava dar a suas idéias uma forma definitiva.Mesmo nesses cadernos, porém, os assuntos muitas vezes se atropelam: não é raro que uma demonstração, começada com preciso enunciado de premissas, acabe indo parar bem longe do ponto de partida. Mas o caos é apenas aparente. Como observa Anna Maria Brizio, uma das maiores estudiosas leonardianas da atualidade, pouco a pouco se percebe que “a múltipla disparidade de argumento emana de um único centro e contém uma formidável unidade de processo mental”.

Arte, ciência e tecnologia se encontram ai de tal modo amalgamadas, que se passa de um domínio a outro praticamente sem perceber.A ciência de Leonardo é toda baseada no primado da visão sobre os demais sentidos e da geometria sobre as demais disciplinas. Em geometria, ele realizou descobertas teóricas importantes, como a determinação dos centros de gravidade dos sólidos geométricos e a transformação de um sólido em outro, com a do volume. Em estática, foi o primeiro a compreender a possibilidade de se decompor uma força segundo duas direções, o que Ihe permitiu resolver um grande número de problemas práticos. Em cinemática. ciência que só seria precisamente formulada quase 150 anos mais tarde, com os trabalhos de Galileu, ele intuiu as leis que regem os choques entre dois sólidos iguais como duas bolas de bilhar.A curiosidade de Leonardo o empurra mesmo a terrenos ainda não desbravados, como a mecânica dos fluidos, disciplina praticamente ignorada pelos gregos, a grande fonte das ciências medieval e renascentista. Uma de suas investigações nessa área — explicada em detalhes pelo estudioso Carlo Zammatio — pode ser considerada um caso exemplar de seu procedimento científico.

Ele parte de questões práticas relacionadas com a irrigação e o aproveitamento da forca hidráulica na região do rio Pó. E procura determinar a energia com que chega ao solo cada um de uma série de jatos d’água, que saem de orifício de dimensões idênticas, mas de alturas diferentes, de um recipiente com água em nível constante. Verifica que a velocidade de saída da água é inversamente proporcional à altura do orifício. Isto é, cresce de cima para baixo. E explica isso mostrando que, enquanto cada porção de água que sai do orifício mais alto é posta em movimento apenas pela ação de seu próprio peso, as porções que saem dos orifício inferiores são postas em movimento tanto por seu peso como pelo peso da coluna d’água situada acima delas.A conclusão é que todos os jatos chegam ao solo com a mesma energia, pois, se o jato mais alto é o que sai do recipiente com menor velocidade, ele é também o que tem uma maior distancia a percorrer e, portanto, o que mais ganha velocidade durante a queda. Em outras palavras, onde a energia cinética inicial do jato (que depende da velocidade) é menor, a energia potencial (que depende da altura) é maior e vice-versa. A soma desses dois termos é sempre a mesma.

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Evidentemente, Leonardo não formula suas idéias desta maneira. A física levaria ainda muito tempo para chegar a esse grau de concisão, rigor conceitual e vocabulário. Leonardo trabalha com as palavras que tem à mão-ou improvisa. O Importante é que, por trás de seu vocabulário tosco, ele de maneira admirável o teorema básico da hidrodinâmica formulado apenas em 1738 pelo físico e matemático suíço Daniel BernouilliMais importante ainda: intuiu uma idéia capital na física, a da interconversão de energia potencial e energia cinética — questão que ficaria perfeitamente esclarecida partir das experiências de Galileu Torricelli sobre a queda dos corpos, realizadas em 1642.Mas foi no domínio da tecnologia que se deram algumas de suas mais espantosas realizações. Uma delas — só descoberta muito recentemente, a partir de um trabalho de restauração num dos cadernos leonardianos — é uma bicicleta muitíssimo superior, em termos solução de engenharia, às primeiras bicicletas que seriam fabricadas por volta de 1817. Na verdade, o sistema proposto por Leonardo — com pedal ligado a uma roda dentada que transmite a força à roda traseira através de correia — só adotado no começo deste século Sua bicicleta jamais foi construída O mesmo se pode dizer, quase com certeza, de todos os seus outros inventos, geralmente avançados demais para as possibilidades técnicas da época.Além disso, a mistura contraditórios de dispersão e perfeccionismo fez com que, também em outros domínios sua criação ficasse incompleta. Em pintura, deixou vários quadros inacabada toda a sua produção não ultrapassa obras.

Em ciência, suas geniais antevisões jamais receberiam uma sistematização final, permanecendo secretas em nada influenciando o desenvolvimento científico da humanidade. Leonardo era extremamente suscetível ao julgamento público e essa deve ter sido uma das causas da ocultação dos manuscritos. Porque, para escrever para o mundo culto, era preciso rigor sistematização, refinamento de expressão e, principalmente, um domínio perfeito da língua latina. características dificilmente encontráveis num uomo senza lettere. Ironicamente, esses manuscritos fragmentários — redigidos em língua vulgar — permaneceriam como um dos mais maravilhosos legados de um homem à posteridade.

Para saber mais: SuperMundo

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