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O futebol chegou ao Brasil de trem – e muito antes de Charles Miller

Ele veio de trem e se espalhou por vários cantos do Brasil de carona na expansão da malha ferroviária. Embarque nessa viagem expressa ao passado remoto

Por Felipe Germano, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 28 nov 2022, 08h41 - Publicado em 29 Maio 2018, 09h45

Em 19 de julho de 1900, um alemão de 25 anos colocou a pacata cidade de Rio Grande (RS) nos trilhos da história do Brasil. Johannes Christian Moritz Minneman pegou o bonde imigratório de conterrâneos que vieram ao País em busca de trabalho no final do século 19 – e trouxe o lazer na bagagem. Ele queria promover o football em Rio Grande e, para isso, marcou uma reunião com as elites da região. Convocou compatriotas, brasileiros e outros imigrantes: franceses, portugueses, ingleses. Esse seleto grupo fundaria o Sport Club Rio Grande: o primeiro time de futebol do Brasil.

Quer dizer, essa é a versão gaúcha dos fatos. A 1.500 km dali, no interior de São Paulo, a história é outra. Para os moradores de Campinas, a agremiação mais antiga do País leva o nome de um bairro da cidade: a Ponte Preta – ainda que ela tenha nascido 23 dias depois do Rio Grande. Os campineiros reconhecem as datas, mas argumentam que, diferentemente do clube gaúcho, passaram os últimos 118 anos na ativa, sem interrupções. Por isso, proclamam a Ponte como clube há mais tempo em atividade. Como o clássico mais antigo do Brasil nunca foi disputado dentro de campo, o tapetão desempata a parada: em 1976, a CBF instituiu o Dia do Futebol na data de fundação do clube de Johannes. Gol da Alemanha.

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Operários e maquinistas jogaram bola no Brasil – mais exatamente em Curitiba – quase 20 anos antes de Charles Miller “fundar” o futebol brasileiro. (Bernardo França /Superinteressante)

O que pouca gente sabe sobre essa rivalidade ancestral é que as trajetórias de Rio Grande e Ponte Preta têm um entroncamento comum: a criação e expansão das ferrovias brasileiras. Os gaúchos, ainda sem campo para jogar, pediram emprestado um terreno da Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil (Companhia Auxiliar de Ferrovias no Brasil), empresa belga que, no início do século 20, construía uma linha de trem entre Porto Alegre e Uruguaiana.

A ponte preta de verdade, que batizou o bairro e o time paulista, existe até hoje e foi construída no fim do século 19 para transpor a estrada de ferro Jundiaí-Campinas. Como a ponte original, de madeira, ficava manchada pela fuligem das locomotivas, trataram logo de cobri-la de piche. A alvenaria tomou o lugar das tábuas, mas a tinta preta continua lá sobre os trilhos.

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Esses pequenos detalhes revelam que o primeiro clube de futebol do Brasil (seja ele qual for) tem uma relação estreita com os trens. Mas a lição é bem mais profunda: nosso futebol não existiria da forma como conhecemos se não fossem os ferroviários. É o que vamos ver a seguir.

Os donos da bola

Atenção, passageiro: seu destino às origens do futebol no Brasil será reprogramado. Se você comprou bilhetes para saber mais sobre o pioneirismo de Charles Miller, fundador do ludopédio tupiniquim, pode desembarcar por aqui.

Não que o estudante paulistano que voltou da Inglaterra em 1894 com uma bola de couro, chuteiras e uma bomba de ar não seja peça importante da história do esporte nacional. É que existe uma pré-história futebolística pouco conhecida: os registros mais antigos de peladas jogadas por aqui datam de 1875, em Curitiba, quase 20 anos antes de Charlinho levar a fama. Três anos depois, houve também um rachão entre marinheiros ingleses que desembarcaram no Rio, com a princesa Isabel na plateia.

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O Rio Grande é o time mais antigo do Brasil, com 118 anos. Seu primeiro campo ficava no terreno de uma empresa ferroviária belga. (Bernardo França /Superinteressante)

O historiador Luiz Carlos Ribeiro, da UFPR, explica a versão oficial descarrilhada: “A história é escrita a partir de registros, só que é complicado encontrar documentos sobre o futebol brasileiro no século 19. Charles Miller era um membro da burguesia paulista – seu pai era diretor da São Paulo Railway, que originou o São Paulo Athletic Club –, e as elites são fáceis de registrar: aparecem em jornais, se preocupam em guardar documentos. Essa lenda é propagada porque os historiadores são preguiçosos ao procurar a origem do futebol no Brasil”.

Um responsável acidental pelo florescimento da bola no pé por aqui foi Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. Rico e influente, o Elon Musk do Brasil imperial convenceu Dom Pedro 2º de que o futuro do País era sobre trilhos. Começou, então, a trazer companhias estrangeiras para tocar as obras. Os funcionários, em sua maioria ingleses, precisavam de alguma diversão. Nos intervalos de trabalho achavam qualquer coisa que dava para chutar, delimitavam uma área como alvo e se dividiam em equipes. O futebol já era popular na Inglaterra e, naturalmente, veio como passatempo para cá.

“Houve dezenas, centenas de Charles Millers. O esporte chegou aqui de maneira espontânea, praticamente ao mesmo tempo em São Paulo, Minas, no Sul, nas capitais litorâneas, no Nordeste. Foi obra dessa rede de imigrantes, todos fundadores do futebol brasileiro”, afirma Ribeiro.

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Linhas de passe

Mais do que descarregar o jogo no Brasil, a malha ferroviária ajudou a disseminá-lo. A partir da metade do século 19, os trens dominaram o País. Entre 1852 (ponto de partida da primeira ferrovia) e a Proclamação da República, em 1889, foram construídos mais de 9.500 km de trilhos – um terço da nossa malha atual. Com as linhas conectando as capitais com o interior, o esporte foi se espalhando no mesmo passo das locomotivas. E a forma mais clara de mapear isso é seguindo a criação de times ferroviários.

“As empresas ferroviárias foram importantes lugares de organização sindical, que usavam o futebol como elemento de união entre seus funcionários; o resultado disso é a criação de vários clubes vinculados a essas instituições”, afirma Frederico de Castro Neves, historiador da Universidade Federal do Ceará (UFC). Entre as décadas de 1900 e 1970, 94 times foram fundados por ferroviários em 20 diferentes Estados. Dessa forma, a bola no pé chegou aos mais diversos cenários brasileiros: de Palmares (com a Associação Atlética Ferroviária, da terra de Zumbi) à Floresta Amazônica (com o Ferroviário Atlético Clube, criado por empregados da Madeira-Mamoré).

“À primeira vista, dá a impressão de que os clubes ferroviários foram numerosos, espalharam o futebol pelo Brasil, mas não tiveram lá muito impacto em campo. Muitos deles, porém, foram bem-sucedidos”, afirma Ernani Buchmann, autor de Quando o Futebol Andava de Trem, livro que narra a relação entre ferrovias e futebol no Brasil. “A Desportiva Ferroviária, de Vitória (ES), teve relevância nacional nos anos 1960 e 1970 e a Ferroviária de Araraquara fez barulho nos campeonatos paulistas dos anos 1960. Um dos mais destacados recentemente, aliás, é o Ferroviário de Curitiba”, completa, referindo-se a uma das agremiações que originaram o Paraná Clube, de volta à série A do Brasileirão em 2018. O estádio da Vila Capanema, bairro dos ferroviários curitibanos em que o Paraná manda seus jogos, aliás, foi palco da Copa do Mundo de 1950.

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A Ponte Preta que batiza o time paulista foi construída para transpor os trilhos da Jundiaí-Campinas. (Bernardo França /Superinteressante)

Não foram só os times das empresas ferroviárias que herdaram esse legado. O Corinthians é o maior exemplo disso: apesar de não ter nenhuma ligação direta com empresas de trem, foi fundado em 1910 por operários do bairro do Bom Retiro que trabalhavam na São Paulo Railway, primeira ferrovia do Estado, que ligava o Porto de Santos ao interior. Quatro anos depois, imigrantes italianos criaram um time com o objetivo de rivalizar com os operários do Bom Retiro: o Palestra Itália, atual Palmeiras. Outro filhote da São Paulo Railway é o próprio clube da empresa, que existe até hoje, mas com outro nome.

Em 23 de fevereiro de 1947, o São Paulo Railway Athletic Club lotava o Pacaembu em um amistoso contra o Flamengo. Só que o time nunca voltou o mesmo daquele intervalo. A concessão ferroviária da São Paulo Railway terminou e a estrada de ferro foi nacionalizada. Para marcar essa transição, o time iniciou a partida como São Paulo Railway e voltou do intervalo com nome e uniforme novos: virou o Nacional Atlético Clube, tradicional time da zona oeste paulistana.

Desse jeito, de forma direta, indireta, e às vezes mais indireta ainda, as ferrovias foram colocando o futebol brasileiro nos trilhos.

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Companhias de trem e seus funcionários foram essenciais para a fundação de clubes como Corinthians, Noroeste (SP) e Asa de Arapiraca. (Bernardo França /Superinteressante)

Rota de colisão

Mas nem tudo são locomotivas e vagões na trajetória do esporte bretão no Brasil. Gigantes como Flamengo e Vasco que o digam: ambos foram fundados, antes até mesmo do Rio Grande, como clubes de regatas, que só passaram a ter times de futebol depois de 1900. E ainda bem que foi assim. Se dependesse apenas dos trens, o jogo não teria emplacado. Na década de 1920, um dos slogans do governo de Washington Luiz, “governar é fazer estrada”, indicava o princípio da decadência férrea do Brasil.

Essa rivalidade rodovia versus ferrovia, inclusive, entrou em campo: nos anos 1950, a cidade de Itapetininga (SP) parava para ver o clássico local entre o Clube Atlético Sorocabana (nome de uma importante ferrovia paulista) e o Departamento de Estradas de Rodagem Atlético Clube. No governo JK (1956-1961), e ao longo de toda a ditadura, a situação se agravou. De lá para cá, o transporte de passageiros por trilhos praticamente deixou de existir, só restando o de carga, ainda assim com infraestrutura limitada.

De JK em diante, nosso solo foi mãe gentil de 946 novos clubes e o esporte se desprendeu definitivamente dos trens. Nada que extirpasse as ferrovias do DNA do futebol brasileiro. Sem elas a história do nosso esporte certamente seria outra, talvez menos gloriosa.

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94 clubes do Brasil foram fundados diretamente por empresas ferroviárias

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