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O Profeta do Islã

Conheça a vida de Maomé, o homem que foi mercador, pai de família (teve 11 mulheres), estadista, guerreiro e ainda encontrou tempo para fundar uma religião que tem mais de 1,2 bilhão de fiéis.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h25 - Publicado em 31 ago 2002, 22h00

Rodrigo Cavalcante

São quase seis horas da tarde. O xeque Jihad Hassan Hammadeh pede licença, interrompe a entrevista e vai à mesquita ao lado do Centro Islâmico de São Bernardo, em São Paulo. Lá, outros 30 muçulmanos se juntam a ele numa das cinco orações diárias dedicadas a Alá. Na mesma hora, é possível que 1,5 milhão de pessoas estejam repetindo o mesmo ritual Brasil afora. Esse é o número estimado da ainda pequena, mas crescente, comunidade islâmica no país (dos 160 milhões de brasileiros, 140 milhões são cristãos). No resto do mundo, essa proporção muda bastante. De cada cinco pessoas que habitam o planeta, uma é muçulmana. São 1,2 bilhão de fiéis que, cinco vezes por dia, assim como o xeque Jihad, se ajoelham voltados para uma única direção: a cidade de Meca, na Arábia Saudita, onde nasceu Maomé, o profeta do Islã.

“Depois do atentado contra os Estados Unidos, muitas pessoas buscaram informações sobre a nossa religião”, diz o xeque Jihad. “Mas a maioria delas ainda desconhece a vida do profeta e o seu exemplo como ser humano para os muçulmanos.” Talvez exatamente pelo fato de ser considerado um ser humano, e não divino, é que Maomé ainda seja um personagem tão controverso para boa parte do Ocidente. “Ele é uma figura muito diferente da imagem idealizada do Cristo dos Evangelhos”, diz a escritora inglesa e estudiosa das religiões Karen Armstrong, em seu livro Maomé – Uma Biografia do Profeta. “Não é nenhum santo. Viveu numa sociedade violenta e perigosa e, às vezes, adotou métodos que nós, que temos a sorte de viver num mundo mais seguro, acharemos perturbadores.”

Diferentemente de Jesus, que foi crucificado numa terra governada pelos romanos, ou mesmo de Moisés, que morreu pouco antes de chegar a Canaã, Maomé não apenas vislumbrou o que seria sua sociedade ideal. “Ele conquistou sua terra prometida e criou seu próprio Estado, do qual ele mesmo foi soberano”, diz o historiador Bernard Lewis, professor de Estudos Orientais da Universidade de Princeton, Estados Unidos, e autor de O Que Deu Errado no Oriente Médio? “Como tal, promulgou leis, ministrou justiça, arrecadou impostos, recrutou exércitos, fez guerra e fez paz. Numa palavra, governou.”

Mesmo que não seja considerado “santo” pelos padrões do Ocidente, ninguém pode negar que ele foi responsável por um grande milagre: em pouco mais de 100 anos, seus seguidores criaram um império tão vasto que tinha ramificações da Ásia Central até a Espanha. Difícil imaginar que tudo começara num dos lugares mais áridos e desolados da Terra: a Arábia do século VI.

VIDA NO DESERTO

Esqueça a imagem de um país rico e pujante graças ao petróleo, cortejado pelas potências ocidentais e repleto de xeques que costumam recompensar generosamente os técnicos de futebol brasileiros que trabalham por lá. Por volta do ano 570, data provável do nascimento de Maomé, a região que hoje faz parte da Arábia Saudita era mais parecida com o sertão nordestino no tempo do cangaço. A vida valia bem pouco e o petróleo, caso alguém soubesse o que era isso na época, não servia nem para matar a sede dos camelos que cruzavam o deserto. Com boa parte da sua população formada por tribos nômades em conflitos constantes, a melhor chance que alguém tinha de sobreviver era manter-se leal ao grupo seguindo à risca a ética tribal. Essa ética era dura e permitia, por exemplo, que a morte por assassinato de alguém da tribo fosse vingada com a morte de alguém do grupo do assassino. Nesse esquema olho por olho, o derramamento de sangue não era algo raro. Nos poucos momentos de paz, havia ainda a chance de morrer de desnutrição ou por outro problema decorrente das frágeis condições da vida no deserto.

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Até os habitantes da cidade de Meca, o mais próspero centro de comércio e riqueza da região, seguiam essa lei tribal. Ainda que alguns grupos tenham acumulado riqueza e prestígio, alcançando, por vezes, uma certa estabilidade, as dissidências internas eram comuns. Esse era o caso dos poderosos mercadores coraixitas na cidade de Meca, tribo da qual descendia Maomé. As cisões familiares haviam dividido o clã em duas partes: uma mais rica e outra mais pobre – Maomé teria nascido da parte menos poderosa.

Sabe-se pouco sobre a sua infância. Assim como os evangelistas abusaram de “licença poética” para descrever a vida do menino Jesus, os relatos dos primeiros anos de vida de Maomé são baseados em histórias pouco confiáveis, escritas cerca de 125 anos depois da sua morte. Parece não haver dúvidas de que ele ficou órfão cedo e passou um tempo longe de Meca. “Na época, era costume que as crianças fossem doadas para serem criadas por beduínos no deserto”, diz Karen Armstrong. “Acreditava-se que era uma forma mais saudável de educar um jovem, além de prepará-lo para a difícil vida na região.”

Até os 25 anos, nada de excepcional parece ter marcado a vida do profeta. Ele trabalhava como mercador, levando caravanas à Síria e à Mesopotâmia. Por ser órfão e não pertencer ao lado mais abastado da sua família, teve dificuldades em achar uma esposa. Até que, nessa idade, uma parente distante, chamada Cadija, pediu-lhe que levasse suas mercadorias à Síria. Ela era viúva e reza a tradição que devia ter uns 40 anos quando propôs casamento a Maomé – como teve pelo menos seis filhos com ele, é provável que fosse um pouco mais jovem. Entre as 11 esposas que Maomé teria (além de autorizada, a poligamia permitiu que ele usasse o casamento para firmar alianças), Cadija seria uma das mais importantes. Afinal, foi ela que estava ao lado de Maomé quando ele passou por uma assustadora experiência sobrenatural que mudaria o curso da história.

A REVELAÇÃO

Enquanto dormia em meio ao seu retiro habitual, numa caverna no monte Hira, no vale de Meca, no ano 610, Maomé foi arrancado do sono e tomado pela sensação de uma devastadora presença divina. Os relatos contam que um anjo o abraçou tão fortemente que Maomé teve a sensação de estar sendo expelido para fora do corpo. O anjo ordenou: “Recita”. Ele argumentou que não sabia recitar, não era nenhum sábio nem um líder religioso. Mas não teve jeito. O anjo, que mais tarde seria identificado como Gabriel, o mesmo que teria visitado Maria mais de 600 anos antes, abraçou-o novamente com força e insistiu: “Recita”. Quando Maomé parecia no limite da sua resistência física, sentiu, finalmente, que algumas palavras inspiradas por Deus começavam a sair da sua boca.

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As palavras, mais tarde, formariam o Alcorão que, para os muçulmanos, contém as mensagens divinas que Maomé continuaria recebendo até o final da sua vida, 23 anos depois. (Leia a reportagem de capa da Super de novembro de 2001 sobre o Alcorão: “A Palavra de Deus”.) Quando voltou a si da experiência que ficaria conhecida como Noite do Poder ou do Destino, os relatos dizem que ele estava visivelmente assustado. “Gabriel não era o anjo naturalista e bonitinho como os que, às vezes, vemos na arte cristã”, diz Karen Armstrong, em sua biografia sobre Maomé. “No Islã, ele é o Espírito da Verdade, uma avassaladora presença da qual é impossível fugir.” Ainda aterrorizado e relutante em aceitar a idéia de que teria sido escolhido por Deus, Maomé foi consolado por Cadija. Ela também consultou um estudioso das escrituras, o sábio Waraqa, que reconheceu que Maomé era um profeta, como foi Moisés.

A revelação preenchia um vazio religioso que há muito perturbava os povos da Arábia. Até então, havia santuários de culto a diversas divindades. O mais importante desses locais sagrados, em Meca, era a Caaba, que significa o cubo, e o seu objeto especial de veneração era uma pedra preta, fragmento de um meteoro. “Pedras desse tipo eram adoradas pelos árabes nesse tempo em diversas regiões”, diz o francês Maxime Rodinson, na sua biografia Mahomet, ainda sem tradução no Brasil. Ao lado da pedra, havia representações de diversas deusas e o santuário era uma espécie de parada obrigatória entre os mercadores da região.

Mesmo assim, boa parte dos árabes sentiam-se um tanto renegados por nunca terem recebido uma mensagem direta e explícita de Deus, como as revelações contidas nas escrituras judaicas e nos evangelhos. Por conhecerem as tradições dessas duas religiões, eles acreditavam que já era hora de Deus enviar um profeta com uma revelação exclusiva para os árabes. Muitos anos antes do nascimento de Maomé, corria o boato de que um mensageiro chegaria. A revelação que ele teve na caverna parecia se encaixar nas previsões. Agora ele teria que começar a pregar os novos ensinamentos de Deus.

VIAGEM A MEDINA

Depois das primeiras revelações, Maomé permaneceu dois anos em silêncio. Foi o tempo que levou para aceitar, resignado, que ele era mesmo o profeta incumbido de levar a mensagem de Deus ao povo de Meca. Provavelmente, ele relutou tanto em aceitar a nova missão porque sabia o tamanho do problema que teria que enfrentar. Até então, os árabes adoravam diversos deuses na Caaba e a revelação de Maomé exigia que os árabes adorassem apenas um Deus, Alá, o mesmo das escrituras do Antigo e do Novo Testamento. Os próprios coraixitas, da comunidade de Maomé, adoravam diversos ídolos pagãos e não estariam dispostos a romper a tradição religiosa dos seus antepassados.

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Mas a mensagem do próprio Alcorão parecia ter uma força irresistível. Os historiadores contam que, quando recitavam pela primeira vez o seu conteúdo em voz alta, diversas pessoas se convertiam imediatamente, acreditando que elas só podiam ser inspiradas em algum poder divino. “Quem lê o Alcorão na versão original, em árabe, não tem dificuldade em entender por que tantas pessoas aderiram ao Islã”, diz Safa Jubran, professora de Língua e Literatura Árabe da Universidade de São Paulo (USP). “Mesmo quem não é muçulmano, como eu, sabe que se trata de uma obra sem paralelo em toda a literatura.”

Os encantos do Alcorão, no entanto, não foram suficientes para convencer a maioria dos habitantes de Meca a adotarem a nova religião. Quando Maomé proibiu os seus seguidores de cultuarem outras divindades da Arábia, boa parte dos coraixitas ficaram revoltados. Foi o estopim para uma onda de conflitos que terminaria pondo em risco a própria vida de Maomé. Ele estava sendo acusado de dividir famílias inteiras entre os adeptos da nova religião e os que permaneciam fiéis às antigas tradições. A situação dos muçulmanos em Meca foi ficando insuportável e os seus opositores organizaram um bloqueio para impedir os comerciantes de vender comida para Maomé. Com a morte da esposa Cadija, em 619, a situação só piorou. Desolado, o profeta precisava encontrar um novo lugar onde as suas mensagens fossem aceitas.

A solução apareceu quando seis peregrinos, vindos da cidade de Yathrib, atual Medina, viram na liderança de Maomé uma oportunidade de apaziguar os conflitos generalizados que varriam a cidade. Em Medina, tribos judaicas, nômades e pagãs viviam em constante estado de guerra e Maomé poderia fazer o papel de árbitro imparcial no julgamento desses conflitos. Como os judeus já eram monoteístas, o profeta também acreditava que sua mensagem seria compreendida mais facilmente por lá. Os peregrinos fizeram um pacto com o profeta e, entre julho e agosto de 622, cerca de 70 muçulmanos fizeram a chamada hijra: partiram com suas famílias para Medina em busca de um novo lar. A viagem despertou ainda mais o ódio dos coraixitas que ficaram em Meca e assistiram, desolados, muitos dos seus parentes partirem com Maomé.

No início, tudo parecia bem com a chegada dos muçulmanos na cidade. Maomé acabara de casar-se novamente, construíra uma mesquita e parecia ter o apoio dos judeus. Mas esse apoio não durou muito. “Quando os judeus perceberam que estavam perdendo cada vez mais espaço em Medina, passaram a rejeitá-lo com veemência”, diz Karen Armstrong. “Essa rejeição foi, provavelmente, a maior desilusão da vida de Maomé e colocava um desafio à sua posição religiosa como um todo.”

A resposta de Maomé veio com uma importante mudança no ritual de oração dos muçulmanos. Até então, os muçulmanos rezavam voltados para a cidade sagrada de Jerusalém, o que fazia sentido, já que o Islã também reconhecia os patriarcas do Antigo Testamento – o Alcorão, para eles, era o complemento das mensagens dos profetas. Foi então que, num ato que marcaria a independência do Islã, Maomé fez com que todos os seus discípulos orassem voltados para o santuário da Caaba, na cidade de Meca – como fazem até hoje. A mudança surtiu um efeito imediato. A Caaba deveria deixar de ser o santuário de deuses pagãos para se tornar um local de veneração de um único Deus. Isso, é claro, não seria aceito pelos coraixitas. Foi então que teve início um dos períodos mais controversos da vida de Maomé.

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GUERRA E MORTE

Se Maomé morresse tentando impor sua religião, ele provavelmente seria lembrado como um mártir religioso que sonhou com uma sociedade justa e fraterna e, finalmente, sucumbiu em meio à insensibilidade dos homens. Mas não foi isso que aconteceu.

Com o aumento da hostilidade em Medina, ele tinha que assumir a responsabilidade de proteger a vida das famílias que o acompanharam até ali. Maomé estava consciente de que, caso fosse preciso, teria que usar a violência.

E a violência foi inevitável.

O que veio a seguir, foi uma série de confrontos sangrentos contra os coraixitas e, mais tarde, contra as tribos judaicas que haviam rompido o pacto de convivência em Medina. O profeta revelara-se um excelente estrategista militar, mas restava-lhe ainda um último ato: voltar consagrado à cidade de Meca e instituir o Islã como a nova religião da cidade. Depois de uma série de ações militares, recuos e negociações, ele finalmente entrou em Meca, em janeiro de 630, sem encontrar, praticamente, nenhuma resistência dos coraixitas. Ao contrário de outros líderes religiosos, ele alcançou o sucesso em vida. Morreu dois anos depois, doente, cercado dos filhos e de suas esposas.

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LEGADO DO PROFETA

Mais de 13 séculos depois da sua morte, no dia 11 de setembro do ano passado, boa parte do Ocidente ficou estarrecida quando outro árabe, Osama Bin Laden, invocou o nome de Maomé como inspiração para os ataques terroristas ao World Trade Center. Alguns críticos ocidentais do Islã apontaram as passagens de violência na biografia do profeta como um indício de que, desde a sua fundação, o Islamismo seria tolerante com a violência. “Essa associação não faz sentido”, diz Peter Demant, professor de Relações Internacionais, especialista em Oriente Médio, da USP. “É claro que há episódios de violência na vida de Maomé, mas isso era inevitável no tempo em que ele viveu.” Demant diz que é um excesso de simplificação querer julgar os atos de um homem da Arábia do século VII com a perspectiva de um cidadão que vive hoje em algum país do Ocidente.

“A violência era tão corriqueira no tempo de Maomé quanto era no tempo dos reis bíblicos Davi e Salomão”, diz Mamede Mustafa Jarouche, professor de Língua e Literatura Árabe da USP. Ele diz que os ataques terroristas têm mais ligação com o sentimento atual de inferioridade de alguns muçulmanos diante das potências ocidentais do que com a vida do profeta. “Quando, no século XI, os cristãos estavam acuados e começavam a lutar para conquistar o poder na Europa, eles também buscaram inspiração na Bíblia para justificar as Cruzadas”, diz Jarouche. “Se você procurar, vai sempre achar alguma passagem histórica para justificar a violência em nome da fé.”

Isso não significa, claro, que Maomé tenha tido a mesma vida de Buda ou até de Cristo. “Jesus não tinha que se preocupar com a ordem política e social, porque essa ordem já estava estabelecida pelo Império Romano”, diz Karen Armstrong. “Queira-se ou não, os romanos impuseram, ainda que brutalmente, certa segurança e paz social, enquanto Maomé teve que organizar uma sociedade.” Karen, que já foi freira católica, diz que é hora de o Ocidente e o Oriente fugirem dos estereótipos que dificultam a compreensão e o respeito da religião do outro. “A tragédia do dia 11 de setembro mostrou que, embora alguns progressos tenham sido feitos, todos nós – o Ocidente e o mundo islâmico – falhamos nesse teste.”

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