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Canhotos: Essa sofrida gente de esquerda

A mão esquerda tem razões que a ciência desconhece. Talvez por isso os canhotos sejam tidos como pessoas esquisitas e frequëntemente vítimas de preconceitos.Mas nada disso está direito: eles são tão normais como os destros

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h33 - Publicado em 31 out 1987, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

Já se sabe ao certo qual foi a maior conspiração da História. Sem dúvida foi a conspiração contra a esquerda, combatida por todos os lados, nos dois hemisférios, como se houvesse um acordo sinistro entre todos os que preferiam a direita – a mão direita, bem entendido. Durante milhares de anos, quase sem exceção, o lado esquerdo ficou com o pior pedaço e isso é demonstrado, na prática, nas crenças preconceituosas e palavras pejorativas que lhe são associadas. Por outro lado, “à direita do Deus Pai”, como está na Bíblia, ficam as boas ovelhas. Direito máximo, injustiça máxima: a supervalorização do destro somada a um fator real – a maioria das pessoas é mais hábil com a mão direita – estigmatizou os canhotos, aqueles que dominam melhor a mão esquerda, como pessoas no mínimo diferentes e esquisitas.

Até há poucas décadas, os canhotos eram castigados ou convencidos de alguma forma a trocarem direitinho de mão. Escrever com a “mão errada” era desde sinal de insubordinação grave até prova de dificuldade de aprendizado. Mas a medicina moderna e as novas teorias pedagógicas, de mãos dadas, derrubaram essas idéias falsas. Reconhece-se que a mão esquerda de um canhoto não é nada canhestra. E como as pessoas passaram a ter o direito de preferir o lado esquerdo, nos últimos anos o número conhecido de canhotos aumentou consideravelmente. Hoje se estima que existem cerca de dez canhotos em cada cem pessoas de qualquer população. Isso comprova: os canhotos são minoria no mundo. Mas uma minoria de 500 milhões de pessoas. O que não se sabe é quantas pessoas usam a mão direita forçadas por pressões do ambiente.

Ser canhoto é fazer um esforço a mais para coisas tão banais do cotidiano que, na verdade, não deveriam exigir esforço algum. Saca-rolhas, torneiras, maçanetas – tudo o que gira, gira para a direita na ditadura dos destros. Para os canhotos, de duas, uma: ou vivem um eterno jogo de desmunhecar ou aprendem a lidar com as coisas usando a mão direita. Existem em muitos países indústrias preocupadas também com esse lado (esquerdo) da questão, fabricando objetos próprios para as mãos canhotas. A pioneira foi uma fábrica finlandesa que, em 1954, começou a produzir tesouras canhotas, ou seja, com as laminas invertidas.

Nos Estados Unidos e na Europa existem associações de canhotos, que batalham por seus direitos – igualdade de oportunidades no trabalho, por exemplo. No Brasil, uma Associação Brasileira de Canhotos (Abracan) surgiu no final da década de 70, e conseguiu apoios ilustres, como o do então presidente João Figueiredo, um canhoto; também conseguiu do governo Paulo Maluf, de São Paulo, a determinacão de que ao menos cinco por cento das carteiras nas escolas públicas sejam para canhotos, isto é, com a mesinha de apoio no lado esquerdo. Em 1982. porém. a Abracan fechou por falta de recursos, deixando aproximadamente 14 milhões de brasileiros canhotos na mão dos destros.

Uma das teorias mais aceitas para justificar á preferência pelo lado direito das coisas diz que isso surgiu com os primitivos habitantes do hemisfério Norte, adoradores do Sol. Pois, no hemisfério Norte, o Sol parece mover-se no sentido horário, para a direita. Seguindo nessa mesma direção, os budistas fazem suas caminhadas para meditar; os peregrinos que vão a Meca rezar para Alá circundam da estluertici para a direita a Ka’aba, a construção onde está a pedra sagrada dos seguidores de Maomé. Os muçulmanos, aliás, chegam a ponto de afirmar que Deus tem duas mãos direitas.

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A própria Bíblia exalta a mão direita, simbolicamente a mão que ” sabe dar”, já que a esquerda é a que recebe de Deus o sopro da vida. Michelângelo,( pintor italiano canhoto, retratou esse momento da Criação no teto da Capela Sistina). O Antigo Testamento diz que Eva foi criada a partir da costela esquerda de Adão; tanto pior, porque dai se estabelece nos textos bíblicos toda uma duradoura ligação do lado esquerdo com o pecado e a tentação.

Na Idade Média, a Inquisição queimará os canhotos, como praticantes de bruxarias, mensageiros da morte e enviados do Diabo.

Também na Idade Média a mão esquerda passa a ser relacionada com a sujeira A explicação para isso até que tem alguma lógica: num período em que lavar-se era um hábito raro, a limpeza ficava por conta da mão esquerda, inclusive a higiene íntima. Com medo de sujar-se, as pessoas só se cumprimentavam com a mão direita , a mesma usada para comer ou pentear-se.

As escritas alfabéticas , de modo geral, indiscutivelmente favorecem os destros, porque correm da esquerda para a direita. Nessa direção, o canhoto cobre com a própria mão o que está escrevendo ou acaba torcendo o punho, segurando a caneta com a mão em forma de gancho. As exceções mais conhecidas são o hebraico e o árabe, escritos da direita para a esquerda. Já o grego é conhecido como caminho de boi, por formar um zigue-zague: vai da esquerda para a direita numa linha e da direita para a esquerda na linha seguinte.

Na realidade ninguém pode afirmar com total segurança que este ou aquele motivo é que origina o preconceito ou as desvantagens que levam os canhotos. Até porque nem a ciência moderna conseguiu encontrar uma explicação para o próprio fenômeno do canhotismo. Os macacos ou são ambidestros ou dividem-se em igual proporção entre esquerdistas e direitistas. Só no homem o ambidestrismo é uma raridade – apenas duas de cada cem pessoas, em média, são tão hábeis com a esquerda como com a direita.

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Justamente por causa dessa falta de explicações seguras, o canhotismo foi o bode expiatório das mais diversas mazelas. “Atualmente sabemos que o canhoto pode ter tantos problemas de saúde ou de aprendizado quanto um destro: não há vantagem em ser um ou outro”, ensina o professor de neurologia Saul Cypel, da Universidade de São Paulo. A única expressão orgânica do canhotismo é o fato de o lado direito do cérebro ser aproximadamente onze por cento maior do que o esquerdo e dele partir um feixe mais espesso de nervos.

Nos destros, o lado esquerdo do cérebro é o mais desenvolvido, porque o cérebro exerce um comando cruzado,ou seja, a parte direita do corpo é comandada pelo hemisfério cerebral esquerdo, enquanto a parte esquerda é comandada pelo hemisfério cerebral direito. Os ambidestros têm os dois hemisférios exatamente iguais e feixes de nervos da mesma espessura nos dois lados.

É sabido que o canhotismo tem a ver com a hereditariedade. “Há uma incidência maior de canhotos em famílias onde já existem canhotos”, diz o doutor Cypel.

Normalmente, um casal de canhotos tem cinqüenta por cento de chances de ter um filho canhoto: quando o pai ou a mãe prefere a mão esquerda, essa probabilidade cai para não mais de vinte por cento; quando os pais são destros, a probabilidade de terem um filho canhoto é de apenas dois por cento.

Outro fato comprovado é que desde o primeiro instante de vida já se pode ou não ser canhoto.

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O embriologista alemão Hans Spemann, prêrnio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1935, mostrou que nos estágios embrioná-rios de vida os dois lados do cérebro já apresentam diferenças de tamanho. Apesar de a preferência manual ser geneticamente estabelecida, a criança só a percebe aos cinco anos de idade (embora haja crianças que se definem aos dois anos e outras,igualmente normais, só aos sete ou oito).

A preferência manual está dentro de um contexto muito amplo: a lateralidade, ou seja,a dominância de todo um lado do corpo. Assim, ser canhoto não é apenas escrever com a mão esquerda, mas também preferir todo o seu lado esquerdo, embora o canhoto não perceba isso nitidamente. O lado do cérebro mais desenvolvido – nos canhotos, o direito – está conectado a um número maior de nervos, que recebem todo tipo de informação sensitiva. Portanto, nesse lado preferido , a visão é mais aguda, a pele é mais sensível, os músculos respondem mais prontamente.

Por isso , o Dr. Guy Azemár, do Instituto Nacional de Educação Física da França, acredita que os canhotos são especialmente bons de briga. Ele observou que todos os oito finalistas do torneio de esgrima das Olimpíadas de Moscou, em 1980, lutavam com a mão esquerda, assim como cinco dos oito melhores espadachins das Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, eram canhotos. O doutor Azémar supõe que, como o hemisfério direito do cérebro possui os centros de noção de espaço, os canhotos são ligeiramente mais rápidos e precisos nos seus golpes.

É bem possível. No tênis, por exemplo, muitos campeões seguram as raquetes com a esquerda. É o caso de Thomas Koch, John McEnroe, Martina Navratilova e Jimmy Connors. O canhoto supercampeão, con-tudo, é Rocky, o pugilista do cinema, protagonizado pelo ator norte-americano Silvester Stallone.

No primeiro filme da série, o peso pesado que iria enfrentar o herói é advertido pelo técnico: “Cuidado que ele é canhoto. Não dá para confiar em canhotos, eles fazem tudo às avessas”. Por razões hollywoodianas e não científicas, é claro que Rocky derrubou o destro com uma boa canhotada na cara. Mas “às avessas” mesrno, e não nas telas de cinema, viveu no século XVI, no norte da Inglaterra, a família Kerr, constituída na maioria por canhotos. Temendo que os escoceses fossem tomar-lhe as terras, o clã dos Kerr construiu no castelo escadas em caracol, com espirais da direita para a esquerda – direção contrária à usual – , de maneira que pudessem golpear os invasores, prensando-os contra a coluna central da escada. Com a maior destreza, diz a história, os canhotos Kerr expulsaram os escoceses, que até hoje usam o termo Kerrhandness (mão dos Kerr) para designar canhotismo.

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Para saber mais:

Eis o que você é

(SUPER número 1, ano 10)

 

 

 

 

Agourentos, desajeitados, maliciosos…

Na hora de dar sua palavra, o grego foi o único que ficou a favor da esquerda: arístera , o termo grego que designa a mão esquerda, tem o sentido de” melhor” e a mesma origem da palavra aristocracia. O latim, a princípio, concordava com essa imagem positiva: sinister, que quer dizer ” esquerdo”, significava “afortunado”; a palavra vem de sinus , o bolso da toga dos romanos que ficava, é claro, daquele lado.

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Mas essa era a época em que as estátuas dos deuses romanos tinham a face voltada para o sul e o olhar dirigido à esquerda, ao leste, de onde vinham, com o sol, os sinais de bons augúrios. Não se sabe por que,mas as imagens das divindades, aproximadamente no século II, foram voltadas para o norte. Daí o leste ficou à direita. De “afortunado sinister” passou a ser “azarado” e os romanos começaram a costurar seus bolsos no lado direito.

Em português, língua nascida do latim, sinistro é “esquerdo” ou “suspeito” ou ainda “ameaçador”.

Canhoto assim como canhestro é uma palavra com ligações etimológicas suspeitas com “cao”, que por sua vez é sinônimo de “diabo”. Mas a palavra esquerdo propriamente dita é de origem desconhecida. Outras línguas latinas seguem em oposição à esquerda. Em francês gauche vale para “esquerdo” e também para “desajeitado” ou “maldito” . Em espanhol, o canhoto é chamado de siniestro, termo que significa ainda “mau agouro”, “Desengonçado” e “canhoto” têm um mesmíssimo nome em italiano : maldestro.

Mas as linguas não-latinas também tratam os canhotos de forma sinistra. No alemão linkisch é tanto “canhoto” quanto “maldito”; recht é “direito”, “destreza e “lei” – e dessa palavra nasceu reich, “reino”.Left -handed, em inglês, é o canhoto, mas também a pessoa, canhota ou destra, maliciosa e insincera. Já right-handed é tanto o destro quanto a pessoa íntegra. No árabe yamin é ” mão direita” e “sorte”.

O lado direito é sinônimo de coisas positivas até em países de esquerda .Na União Soviética, pravy é a palavra ” lado direito” . Dela nasceu pravda, que significa ” verdade”.Levaya stonora é “lado esquerdo” e- -claro – “lado errado”.

 

 

 

Alguns tipos sinistros

Eles estão em toda parte e fazem de tudo. Veja esta lista, por exemplo: Baudelaire, Ben-jamin Franklin, Beethoven, Baden Powell, Beth Faria, Carlos Magno, Charles Chaplin, Cole Porter, Denis Carvalho, Gerald Ford, Goet-he, Greta Garbo, Hans Christian Andersen, Harpo Marx, Jack, o Estripador, Jimi Hendrix, João Baptista Figueiredo, Judy Garland. Júlio César, Leonardo da Vinci, Lewis Carroll, Marcel Marceau, Maria Zilda, Marilyn Monroe, Michelângelo, Napoleão, Nietzsche, Paganini, Paul Klee, Paul McCartney, Picasso, Ringo Starr, Robert Redford, Ronald Regan.

 

 

 

Canhotos bons de bola

Há um campo onde ser canhoto não é desdouro para ninguém. No futebol, de fato, incontáveis jogadores se celebrizaram pelo show de bola de que se mostraram capazes com a perna esquerda. Na atual Seleção Brasileira há três canhotos, todos craques: Pita e Nelsinho, do São Paulo, e Edu, da Portuguesa.

Na tricampeã de 1970 havia Gérson, que não chutava nada com a direita, mas tantas maravilhas fazia com a esquerda que ganhou o ,apelido “Canhotinha de Ouro”.

Rivelino, outro canhoto daquela Seleção, era conhecido por seus dribles curtos, que dificultavam qualquer marcação, e pela potência de seu chute – a “patada atômica” . A grande vantagem dos canhotos no gramado é a facilidade com que se livram dos marcadores – quase sempre destros. Ninguém faz isso melhor hoje em dia que o argentino Diego Maradona, capaz de ir de uma ponta a outra do campo sem que ninguém consiga tirar-lhe a bola do pé esquerdo.

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