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Dr. Zerbini, o mago do coração

Ele fez Medicina apenas por sugestão paterna, odiou o início da faculdade, quase desmaiou ao assistir a uma operação. Mas, graças à mania de ser sempre o primeiro aluno da classe, acabou se transformando em um dos pioneiros da cirurgia cardíaca em todo o mundo.

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Atualizado em 31 out 2016, 18h34 - Publicado em 31 Maio 1993, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

Por Lúcia Helena de Oliveira

Nos últimos quatro meses, a rotina do cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini, que permanecera inabalável por quase meio século, sofreu uma mudança. Antes, sustentado por um desjejum reforçado, ele entrava no hospital de manhã e só à noite tirava o pé dali, contentando-se em ingerir um copo de suco e, às vezes, uma fatia de queijo, no meio do expediente. Agora, o mais famoso médico brasileiro em todo o mundo deixa o consultório, no segundo andar do Hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo, para almoçar em casa. Trata-se de ordem médica. Na última segunda-feira de Carnaval, 22 de fevereiro, doutor Zerbini foi operado para extrair um nódulo do cerebelo, o órgão do sistema nervoso que controla, entre outras coisas, o equilíbrio. “Há tempos, eu notava uns nódulos espalhados pelo corpo, mas atribuía seu aparecimento a traumas dos jogos de tênis. Afinal, eu vivia batendo a raquete nas pernas”, diz ele. Só que, na realidade, o problema não tinha relação com as partidas semanais, disputadas todas as terças-feiras, há 39 anos, no raiar do dia. O cirurgião tem, isso sim, uma doença que provoca nódulos indolores no trajeto dos nervos e justamente o do cerebelo foi inventar de crescer, até atrapalhar.

Assim, Zerbini, que já realizou cerca de 40 000 cirurgias do coração, enfrentou o bisturi pela terceira vez na vida. “Já fui operado de apendicite e de um problema na bexiga. Mas não sofri em nenhuma dessas ocasiões”, garante. Totalmente recuperado, o cirurgião voltou ao antigo ritmo. Aos 81 anos de idade, completados no dia 7 de maio passado, Zerbini opera quatro vezes por dia, de segunda a sexta-feira. E faz questão de esclarecer: só teve tempo para dar entrevista e posar para fotos porque dois pacientes apresentaram problemas e as cirurgias foram adiadas. De fato, a agenda do cirurgião ficou ainda mais apertada, por causa dos almoços caseiros. Em um dicionário inglês-português, Zerbini seria a melhor tradução para o termo workaholic (maníaco por trabalho). Graças ao seu esforço concentrado na Medicina, ele foi um dos pioneiros nas cirurgias do coração, em todo o planeta. Pois esse órgão — que hoje em dia os médicos mexem e remexem com desenvoltura, para consertar defeitos e desobstruir suas passagens — era considerado intocável até o início dos anos 40. Duas décadas mais tarde, Zerbini também foi o primeiro médico na América Latina a fazer um transplante cardíaco.

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Se atualmente os transplantes podem virar tema de novela — como aconteceu no dramalhão De Corpo e Alma, que a Rede Globo exibiu em horário nobre —, no final da década de 60, eles eram assunto obrigatório dos jornais e revistas. O magnífico feito do cirurgião chegou a ser explorado como imagem ufanista pelo regime militar. O transplante brasileiro ocorreu no dia 27 maio de 1968. E 1968 foi o ano em que a linha-dura do Exército colocava as mangas de fora. Dois meses antes de Zerbini trocar o coração do peão mato-grossense João Ferreira da Cunha, mais conhecido por João Boiadeiro, um estudante carioca morria assassinado por soldados, marcando o início da pior fase de repressão na história do país. Instalava-se, ainda, a Operação Bandeirantes (Oban), para investigar suspeitas de movimentos políticos. Depois disso, para homenagear a equipe de Zerbini — e à revelia deste —, o governo publicava um anúncio com o slogan “Pulsa o coração do novo Brasil”. “Ah, eles fizeram isso?”, retruca Zerbini, quando indagado sobre o episódio, sem levantar os olhos, ocupados com alguns papéis.

A reação é no melhor estilo zerbiniano — o aparente pouco caso em relação a qualquer desvio do assunto cirurgia. “Nunca dei a menor bola para o que os políticos achavam”, sentencia, em tom de quem deseja encerrar a conversa. “Eu só queria praticar Medicina, a melhor Medicina possível.”E pensar que, garoto, Zerbini jamais sonhou em ser médico. Ele era o caçula dos seis filhos de um casal de imigrantes italianos que se conheceu no Brasil — dona Ernestina e senhor Eugênio, um professor da Escola Normal. Nasceu prematuro em Guaratinguetá, no interior de São Paulo, numa casa modesta que, há alguns anos, foi demolida para dar lugar à atual estação rodoviária da cidade. “Como era franzino, minha mãe me deu uma overdose de feijão na infância”, recorda. “Ela tinha um gênio forte e obrigava meu pai a controlar os estudos dos filhos.” Este, por sua vez, não perdoava: nenhum dos Zerbini podia ficar em segundo lugar na classe. “E, de fato, todos tiravam as melhores notas da turma.” Aos 17 anos, o jovem Euryclides assustou o pai: “Ele estranhou que eu não falasse a respeito de uma carreira”, conta o cirurgião, risonho. ”Então, me chamou para um bate-papo. Perguntou sobre a minha vocação e eu, com a maior calma, respondi que não tinha vocação alguma.” Daí o pai, conforme a memória do filho, coçou a cabeça, matutou alguns segundos e sugeriu a Medicina. “Eu teria aceitado qualquer idéia. Se ele falasse de outra profissão, eu certamente não estaria aqui, neste hospital.”

Naquele tempo, no ano de 1929, já era dificílimo conseguir uma vaga para ser médico. Havia menos candidatos do que hoje em dia, é verdade, mas a Faculdade de Medicina do Estado era a única de todo o São Paulo. Só aceitava cinqüenta pessoas por ano e Zerbini passou em décimo lugar, nos exames de avaliação. Na sua turma existia apenas uma mulher — afinal, na época, as médicas eram exemplares raros. “No começo do curso, a minha adaptação foi péssima”, revela Zerbini. A matéria que lhe agradava mais — ou, melhor, a que lhe desagradava menos — era Anatomia. Por isso, o estudante resolveu assistir a uma operação para ver se, finalmente, se entusiasmava pelos estudos. Quem imagina que ele saiu do centro cirúrgico como quem encontrou a sua tão perseguida vocação, se engana. “Saí de lá quase desmaiado. Achei tudo aquilo um horror.”

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Mas, em vez de desistir da faculdade, foi levando. E encara essa insistência como filosofia de vida. Na sua opinião, o segredo do sucesso é trabalhar 24 horas por dia. “Se você, ainda por cima, gosta da maneira como está gastando esse tempo, melhor. Mas isso não é fundamental”, acredita, apesar de admitir que acabou se apaixonando pelo universo da cirurgia. A idéia de seguir para esse campo surgiu quando servia como soldado, no litoral norte de São Paulo, durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Zerbini, então, ouviu falar pela primeira vez no trabalho de um jovem cirurgião mineiro, Alípio Corrêa Netto. Além de fazer um rodízio pelas enfermarias, os estudantes de Medicina tinham de se engajar numa das equipes da Santa Casa de São Paulo, numa espécie de estágio extracurricular. Em termos de cirurgia, existiam duas correntes no hospital paulistano. Uma delas pregava a chamada escola européia: o cirurgião tinha de ter uma habilidade artesanal apuradíssima. Diga-se de passagem, essa escola predominava no Brasil na década de 30.

A outra corrente universitária, a defendida pelo professor Alípio, recebia influências dos americanos, que buscavam técnicas cirúrgicas cada vez mais práticas, baseadas em pesquisas em vez de artesanato. Essa escola só iria se desenvolver após a Segunda Guerra Mundial, quando a Europa arruinada dava chance para florescer a influência americana. Zerbini se engajou nessa corrente. No início da carreira, ele se dedicou à cirurgia dos pulmões — até porque os médicos só tocavam em um coração quando estavam diante de uma mesa de necrópsia. Era um tabu, que Zerbini teve a oportunidade de quebrar no dia 26 de fevereiro de 1942. O menino Disnei Zanoline, então com 7 anos, brincava na oficina do pai. Bastou um golpe com um martelo e uma lasca de ferro atravessou seu peito, ficando presa no coração. A criança chegou à Santa Casa em estado de coma. E Zerbini, o médico de plantão, não teve outra alternativa, a não ser abrir-lhe o tórax, para tentar estancar a hemorragia. Deu certo.

Até o século passado, o tratamento de cardíacos era baseado em repouso e sangrias. Dessa maneira, 90% dos pacientes morriam. Por isso, alguns cirurgiões europeus passaram a sugerir o uso de intervenções, numa tentativa de aumentar as chances de sobrevivência. Apesar de esse aumento ser evidente, até os anos 40, quando o menino ferido apareceu diante de Zerbini, operar o coração ainda era visto como ousadia ímpar, válida em casos de total desespero.

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Só dois anos mais tarde, quando conseguiu uma bolsa para estagiar nos Estados Unidos, Zerbini trocou os pulmões pelo coração. Os americanos criavam as primeiras técnicas da cirurgia cardíaca.Tratava-se da chamada era cega: os médicos não dispunham de equipamentos, como os que surgiriam mais tarde, para enxergar o coração por dentro. Abrir o músculo cardíaco, nem pensar, porque poderia provocar hemorragia fatal. Então, o jeito era literalmente en-fiar o dedo no coração.

Tal manobra podia, por exemplo, corrigir um estreitamento de válvula que atrapalhava a circulação do sangue. Para fazer esse serviço, alguns cirurgiões adaptavam pequena lanceta na ponta do dedo; outros simplesmente deixavam crescer a unha do indicador. Técnicas como essa, Zerbini trouxe na bagagem de volta ao Brasil. “A partir daí, todo o tempo era para ler, pesquisar, operar doentes cardíacos”, diz ele. “Como não freqüentava festas, não passeava nunca, só poderia arrumar uma namorada se ela fosse paciente, enfermeira ou médica.” Deu a terceira opção: em 1946, uma jovem estudante de Medicina, Dirce Costa, passou a fazer parte da equipe de cirurgiões.

“Da convivência surgiu o romance”, relembra a esposa do doutor Zerbini, com quem ele se casou no dia 24 de janeiro de 1949. “Quando o namoro ficou sério, ele se assustou. No dia do meu aniversário, mandou flores com um bilhete, avisando que tinha ido viajar. Fiquei morrendo de raiva.” Mas, ao retornar dos Estados Unidos, três meses mais tarde, Zerbini já tinha sido perdoado. Como a doutora Dirce o perdoaria outras tantas vezes: “Cansei de esperar por ele em casa, toda arrumada. E, na hora agá, como ele não aparecia, tinha de ir aos compromissos sozinha.”

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O casal, que hoje reúne meia dúzia de netos, teve três filhos — o do meio, Eduardo, morreu em um acidente, em 1978, logo após terminar a Faculdade de Medicina. A compreensão da mulher em relação às eventuais ausências do marido não é surpreendente, porque a doutora Dirce sempre foi companheira de equipe. O marido não esconde o orgulho, ao revelar: “A maioria dessas máquinas de circulação extracorpórea, que faz as vezes do coração durante a cirurgia, foi ela quem desenhou.” A esposa também estava ao seu lado, na famosa madrugada de maio de 1968, quando aconteceu o primeiro transplante cardíaco da América Latina. A primeira cirurgia desse gênero no mundo tinha ocorrido seis meses antes: no dia 4 de dezembro de 1967, os jornais anun-ciavam a operação, realizada na Cidade do Cabo, pelo médico sul-africano Christian Barnard. No dia seguinte, um sábado, Zerbini reuniu toda a sua equipe: “Temos de fazer o transplante de qualquer jeito”, ordenou.

Na reunião estava presente um jovem médico, Euclides Marques, que quatro anos antes havia pedido ao professor Zerbini autorização para transplantar corações de cães. Ouvira falar da técnica criada pelo médico Norman Shumway, da Califórnia, nos Estados Unidos. “Ele é o verdadeiro pai do transplante car-díaco”, diz Marques, hoje um renomado cirurgião do Hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo. Em 1967, Shumway estava esperando o paciente ideal para experimentar a cirurgia, desenvolvida por ele, com um ser humano. Ousado, Barnard passou a perna no criador dos transplantes. Segundo Marques, a equipe brasileira poderia ter feito o mesmo em duas oportunidades, no início de 1967. Mas os conselheiros da Santa Casa negaram autorização por cautela. “É uma pena, porque o Zerbini merecia ter sido o primeiro.” Já o mestre, dá de ombros: “Eu não estava interessado em ficar famoso.” E pede licença para ir almoçar em casa.

Para saber mais:

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Salve o coração

(SUPER número 1, ano 1)

Boas novas para o coração (SUPER número 5, ano 5)

Sob pressão

(SUPER número 12, ano 8)

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