Muito além das vacinas: as promessas do mRNA
O RNA mensageiro é como se fosse um arquivo executável: contém instruções para que o corpo fabrique determinadas proteínas. Veja como essa tecnologia, que estreou nas vacinas da Covid, se tornou uma aposta para tratar diversas doenças – de colesterol a câncer, de gripe a síndromes genéticas raras.
“Eu trabalhava todas as noites, escrevendo as propostas. E as respostas sempre vinham: ‘não, não, não’. Cogitei ir para outro lugar, trabalhar com outra coisa. Também pensei: ‘talvez eu não seja inteligente o bastante”, contou a bioquímica húngara Katalin Karikó em uma de suas raras entrevistas, no fim de 2020.
Naquele momento, Karikó estava no topo do mundo: as vacinas de RNA mensageiro (mRNA), que só se tornaram realidade graças ao trabalho dela, começavam a chegar aos braços de centenas de milhões de pessoas. Mas a cientista não havia se esquecido do que passou para chegar até ali. Nem teria como esquecer.
Nascida na Hungria, filha de um açougueiro, Karikó cresceu numa casa de dois cômodos sem geladeira, TV ou água encanada. Ela ia bem na escola, entrou na faculdade e se formou na Universidade de Szeged, no sul do país. Foi trabalhar no Instituto de Bioquímica da cidade até que, em 1985, o governo cortou a verba do laboratório.
Karikó vendeu o carro da família (algo proibido no país, comunista), escondeu o dinheiro dentro de um ursinho de pelúcia e o levou, junto com o marido e a filha, numa viagem até os Estados Unidos – para onde a família emigrou em busca de oportuindades.
Essa nova vida começou bem: ela fez pós-doutorado na Universidade Temple, na Filadélfia, e em 1989 se tornou professora-assistente na Universidade da Pensilvânia. Mas, alguns anos depois, o sonho tinha virado um pesadelo. Ninguém acreditava que os estudos com RNA mensageiro, nos quais Karikó colocava todo o seu esforço, poderiam chegar a algum lugar.
Nada contra a ideia em si, que era ótima. Quando o seu corpo precisa fabricar alguma proteína, ele consulta conjuntos de instruções presentes no DNA: os genes. Aí, num processo chamado transcrição, o organismo fabrica moléculas de RNA mensageiro, que contém cópias de determinados trechos do DNA. Elas vão parar nos ribossomos, dentro das células, que leem aquele código e fazem as proteínas. Pronto.
É como se o seu corpo fosse um computador, e o mRNA fosse o software que roda nele. Esse mecanismo é poderoso e universal: plantas, bactérias e vírus também empregam o RNA mensageiro. Se você conseguisse criar e editar mRNA em laboratório, poderia usá-lo para ensinar o corpo humano a fazer quase qualquer proteína – como anticorpos contra vírus, ou moléculas capazes de prevenir e curar doenças. “Você transforma o corpo em produtor de medicamentos”, diz Wesley Fotoran, que é imunologista do Instituto Butantan e pesquisa, em seu pós-doutorado, o uso de mRNA contra malária e câncer.
Um potencial gigantesco. Mas a realidade era diferente. Primeiro, não havia como levar aquele mRNA “artificial” até os ribossomos. Isso exigiu 25 anos de pesquisas, mas acabou dando certo: no começo dos anos 1990, cientistas americanos criaram nanopartículas de gordura para envolver e transportar as moléculas. Elas usam um truque genial, relacionado à acidez das células humanas, para só liberar o mRNA no lugar exato (veja quadro abaixo).
Só que aí apareceu um obstáculo bem maior. Na maioria dos casos, o organismo via aquelas moléculas de mRNA como invasoras – afinal, elas continham sequências genéticas estranhas, que haviam sido criadas em laboratório e não faziam parte do corpo – e as atacava. Não fabricava as proteínas que você queria ensiná-lo a produzir.
As pesquisas bateram num muro, e não avançavam. A visão predominante na comunidade científica era de que aquilo jamais funcionaria. Karikó tentava e tentava, mas nada dava certo. E o dinheiro foi secando – suas propostas de financiamento para pesquisas começaram a ser sumariamente rejeitadas.
Em 1995, veio o fundo do poço: ela foi rebaixada pela universidade. Não tinha mais chance de virar professora titular, e seu salário foi cortado. “Eu ganhava menos do que o técnico do laboratório. Geralmente, nesse ponto, as pessoas dizem tchau e vão embora.” Na mesma semana, recebeu um diagnóstico de câncer. Karikó estava vendo sua vida ruir. Sozinha: o marido, que viajara para a Hungria para renovar o passaporte, acabou tendo problemas com o visto de entrada nos EUA – e só poderia regressar dali a seis meses.
Mas ela persistiu. Enfrentou a solidão, a humilhação, o descrédito, o câncer. E continuou estudando o RNA mensageiro. Até que em 2005, dez longos anos depois, finalmente conseguiu. Karikó e o imunologista Drew Weissman (que em 1997 começou a trabalhar com ela na Universidade da Pensilvânia) publicaram um estudo revolucionário (1) no qual mostravam como fazer o mRNA funcionar.
O segredo era trocar um dos nucleotídeos, as “letras” que formam o código genético dele. Se você substituísse a uridina (U) por pseudouridina (Ψ) no RNA mensageiro artificial, criado em laboratório, dava certo: o organismo fabricava as proteínas desejadas. Essa alteração imita um processo que o corpo normalmente já faz (ele mesmo transforma uridina em pseudouridina), e evita a rejeição do mRNA “estranho”.
Estava aberto o caminho. Nos anos seguintes, várias equipes começaram a desenvolver medicamentos baseados em RNA mensageiro. Mas essa tecnologia só estreou para valer em 2020, quando foi usada em duas das vacinas contra o coronavírus. Karikó e Weissman ganharam vários prêmios científicos – e são fortes candidatos ao Nobel de 2022.
A vacina da Pfizer se tornou o produto farmacêutico mais rentável de todos os tempos: arrecadou US$ 36 bilhões em 2021 e transformou a empresa, que ficava entre o sétimo e o oitavo lugar entre as gigantes do setor, em vice-líder (só atrás da J&J). Das 10 maiores farmacêuticas do mundo, 9 estão desenvolvendo medicamentos à base de mRNA.
São pesquisas que pretendem ir muito além das vacinas da Covid – e poderão transformar nossos ribossomos em armas para prevenir, curar e tratar doenças. Essa tecnologia permite rodar novos ‘softwares’ no corpo humano sem mexer no sistema operacional: o DNA.
Mensagem restrita
RNA é a sigla em inglês para ácido ribonucleico. Existem três tipos principais: o mensageiro (mRNA), o ribossômico (rRNA) e o transportador (tRNA). Como seu nome indica, o RNA mensageiro copia e transporta informações do DNA – ele leva a “receita” da proteína que será fabricada até o ribossomo. O RNA ribossômico traduz essa informação. E o RNA transportador carrega matérias-primas até o ribossomo, para ajudar na síntese das proteínas.
De todo o RNA de uma célula, o mensageiro corresponde a 10%, o transportador por outros 10% – e os 80% restantes são formados por RNA ribossômico. Os três funcionam como tradutores das informações contidas no DNA – que fica guardado, e protegido, no núcleo da célula.
Ou seja: ao contrário do que afirma um tipo comum de fake news, as vacinas de RNA mensageiro não têm o poder de alterar o DNA humano. “Elas entregam a informação no citoplasma, enquanto o DNA fica no núcleo”, diz Fotoran. “Existem barreiras entre essas duas partes da célula. A mensagem [o mRNA] é lida e destruída, sem ter acesso ao núcleo”, explica.
Depois de orientar a produção da proteína, o mRNA é degradado, se dissolve e some do organismo. Normalmente, isso leva dois dias (2). Mas, para que as vacinas tenham tempo de alertar o sistema imunológico, o RNA mensageiro contido nelas precisa durar um pouco mais. Por isso, ele é modificado em laboratório para se tornar mais estável – e ficar cerca de uma semana (3) no corpo. Depois vai embora, sem deixar rastros; e sem mexer no DNA.
A confusão envolvendo as vacinas e possíveis alterações no DNA surgiu porque alguns elementos externos conseguem, de fato, se inserir no código genético humano. Quando uma pessoa contrai o HIV, por exemplo, fragmentos desse vírus podem ir parar dentro do genoma. Isso acontece porque os retrovírus, como o HIV, convertem o próprio RNA em DNA para se replicar.
Fazem isso usando uma enzima, a transcriptase reversa, que eles mesmos possuem. Em maio de 2021, um estudo publicado na revista científica PNAS, uma das mais respeitadas do mundo, afirmou que o Sars-CoV-2 seria capaz de realizar a mesma coisa, e se integrar ao código genético humano (4).
Segundo os autores, havia indícios de que as moléculas de RNA do vírus se transformavam em DNA e entravam no código genético das pessoas infectadas. Logo, existiria o risco de que as vacinas e futuros medicamentos baseados em mRNA tivessem o mesmo efeito. Porém, dois meses mais tarde, um segundo estudo revelou que aquilo era só um erro de leitura, típico da técnica que havia sido utilizada no trabalho anterior (5). O RNA do coronavírus não tinha feito nada de anormal. Ele não estava se convertendo em DNA.
Falando em polêmicas envolvendo o RNA mensageiro, vale a pena abordar outra: as declarações do bioquímico americano Robert Malone, que se apresenta como “o criador do mRNA” e ficou famoso na internet por atacar essa tecnologia e as vacinas baseadas nela. Em primeiro lugar, Malone não inventou o mRNA. Ele teve uma contribuição importante: em 1988, criou uma versão primitiva das nanopartículas de gordura, e conseguiu usá-las para inserir RNA mensageiro artificial em células de sapo (6).
Mas muitos outros cientistas trabalharam nisso antes, e depois também: o desenvolvimento das nanopartículas e do mRNA é uma história longa, com mais de 50 anos (veja quadro abaixo). Essas tecnologias, ao contrário do que pessoas antivacina costumam afirmar, não foram inventadas na pandemia.
Malone tem dito que as vacinas de mRNA fazem mal a crianças e são perigosas para adultos, podendo causar infarto fulminante, que máscaras não previnem Covid e o certo é tratar a doença com ivermectina e um remédio para azia. Tudo sem o menor fundamento; parece uma coletânea das besteiras que circulam no WhatsApp. Malone espalha tanta desinformação que recentemente foi banido do Twitter e teve suas entrevistas deletadas pelo YouTube. Deixou de ser um pesquisador respeitado para se tornar um propagador de bobagens.
Alheia a ele, a ciência segue em frente com o desenvolvimento do mRNA. A empresa mais adiantada nisso é a Moderna (cujo nome, aliás, é uma abreviação de modified RNA). Ela nasceu em 2010, depois que uma descoberta aumentou bastante o interesse da comunidade científica por essa tecnologia.
Naquele ano, o biólogo americano Derrick Rossi, da Universidade Harvard, descobriu como usar o mRNA para transformar células da pele em células-tronco embrionárias – que são usadas em muitos tipos de pesquisa científica, e até então eram difíceis de conseguir (só podiam ser obtidas em embriões humanos). A descoberta de Rossi colocou definitivamente o mRNA no mapa. E ele se tornou cofundador da Moderna.
A Spikevax, vacina de RNA mensageiro contra a Covid, foi o primeiro produto da empresa. Mas ela já está desenvolvendo outros 30, sendo que mais de 20 já estão em testes clínicos. Essa lista inclui vacinas contra influenza, chikungunya, citomegalovírus (que ataca os olhos e o sistema nervoso), o vírus Epstein-Barr (causador da mononucleose) e o RSV, que provoca infecções respiratórias graves em crianças – bem como uma vacina anti-HIV e duas contra câncer.
Elas são similares à vacina da Covid: contêm RNA mensageiro artificial, modificado em laboratório, com instruções para que o corpo fabrique uma determinada proteína. Nas vacinas contra HIV ou influenza, por exemplo, o RNA mensageiro ensina o organismo a fabricar um fragmento do vírus – para que o sistema imunológico o reconheça e crie defesas contra ele. Esse efeito, vale lembrar, é temporário e inofensivo: o corpo faz só um pedacinho do vírus, que não tem como se replicar – nem infectar células.
A vantagem do mRNA em relação às vacinas tradicionais, que usam vírus inativados ou enfraquecidos, é que ele pode ser modificado rapidamente: basta alterá-lo em laboratório. Além disso, as vacinas de RNA mensageiro permitem atacar pontos bem específicos dos vírus – e por isso elas têm chance de derrotar tipos para os quais até hoje não existe vacina, como o HIV.
No final de janeiro, a Moderna começou a testar uma vacina experimental contra o vírus da Aids. Ele é conhecido por sofrer mutações em ritmo muito acelerado. Mas a vacina usa RNA mensageiro para ensinar o corpo a produzir um pedacinho do vírus, o CD4bs, que é extremamente estável – não sofre mutações. A ideia é que o sistema imunológico aprenda a reconhecer e atacar esse pedaço.
Se der certo, estará criada a primeira vacina eficaz contra o HIV. O teste da Moderna é em humanos, mas é de Fase 1: seu objetivo é apenas verificar a segurança da vacina (a eficácia dela será avaliada em outros testes, de Fase 2 e 3).
Já as “vacinas” anticâncer são um pouco diferentes, porque não previnem a doença: são tratamentos, aplicados em quem já tem um tumor. E uma delas, a mRNA-4157, é feita de maneira personalizada: a Moderna coleta uma amostra do tumor do paciente, faz uma análise genética e identifica 20 pedacinhos das células cancerosas.
Em seguida, ela desenvolve 20 moléculas de RNA mensageiro, que são injetadas no paciente – e ensinam o organismo dele a fabricar esses 20 fragmentos de célula. O objetivo é alertar o sistema imunológico, que irá reconhecer esses elementos como invasores – e começará a atacá-los, inclusive no tumor. É uma ideia bem ambiciosa.
A mRNA-4157 foi testada em dez pacientes com câncer de cabeça ou pescoço (7), e teve efeitos positivos em 50% dos casos (contra 15% do tratamento convencional). Mas também foi aplicada em 17 pacientes com câncer colorretal – nesses casos, não funcionou.
O mRNA não é uma panaceia. A vacina da Moderna contra o vírus influenza, que causa a gripe comum, é um bom exemplo disso. No final do ano passado, a empresa divulgou os resultados dos testes de Fase 1, e eles foram pífios.
O novo imunizante, batizado de mRNA-1010, se revelou menos eficaz do que a atual vacina da gripe (feita com vírus inativado, uma tecnologia que existe há mais de 100 anos). A Moderna pediu calma, disse que os números dos testes de Fase 2 deverão ser melhores, mas o fato é que os primeiros dados foram uma decepção – tanto que as ações da empresa caíram 10% no dia da divulgação.
A gigante francesa Sanofi e a alemã CureVac também enfrentaram dificuldades com o mRNA, que estavam tentando usar em vacinas contra a Covid: o imunizante da CureVac não funcionou, e a Sanofi desistiu do seu em setembro de 2021.
A empresa francesa também teve problemas em outro projeto envolvendo RNA mensageiro: um remédio chamado MRT5005, desenvolvido para tratar a fibrose cística. Aplicado por inalação, ele tem como objetivo alcançar os pulmões, e ali ensinar as células a produzir uma proteína capaz de combater essa doença – que é crônica, incurável e pode matar.
O medicamento foi criado pela Translate Bio, adquirida em setembro de 2021 pela Sanofi. Mas não apresentou bons resultados nos testes clínicos. A empresa diz que aprendeu com isso e vai continuar trabalhando em um medicamento à base de RNA para tratar a doença. Mas, por hora, não há perspectiva de cura. “Ao contrário do que se observa no campo das vacinas envolvendo mRNA, o desenvolvimento de medicamentos ainda está em fase incipiente”, diz Antonio Carlos de Freitas, professor do departamento de genética da UFPE e líder de um grupo que trabalha no desenvolvimento de vacinas para Covid-19.
O remédio da Sanofi não foi a primeira tentativa de usar mRNA nos pulmões – que aparentemente têm alguma resistência a esse tipo de tratamento. No ano passado, a empresa americana Arrowhead Pharmaceuticals suspendeu os testes do seu remédio contra fibrose cística depois que ele provocou inflamação nos pulmões de ratos. Talvez a técnica inventada pela húngara Katalin Karikó, de alterar o mRNA para que ele não seja atacado, não funcione ali.
Mas algumas empresas decidiram ir além do RNA mensageiro. Estão tentando redesenhar e até criar outros – incluindo tipos novos, que nem existem no corpo humano.
O RNA infinito
O RNA é linear, tem o formato de uma fita. Mas, em determinadas situações, ele pode se curvar e fechar, formando um círculo. É o chamado RNA circular, cuja função no organismo ainda não é bem compreendida (acredita-se que ele sirva para regular a ação dos genes). Ao contrário do RNA mensageiro, o RNA circular não é “executável”, ou seja, não gera proteínas. Mas e se gerasse?
Essa é a proposta da empresa de biotecnologia Laronde, criadora do que ela chama de “RNA infinito”, ou eRNA. Ele tem o formato de anel (daí o nome da companhia, que significa “redondo” em francês), e é baseado no RNA circular naturalmente presente no organismo. Com a diferença de que gera proteínas.
Segundo a empresa, a vantagem do RNA “infinito” em relação ao mRNA é que, graças ao formato contínuo, sem pontas, ele é mais estável e dura mais tempo no organismo – seria capaz de agir por meses. E supostamente não causa reações inflamatórias, podendo ser aplicado várias vezes. Essas duas características o tornariam ideal para tratar doenças crônicas.
A Laronde pretende desenvolver tratamentos para até 100 doenças até o final da década, e diz que irá começar os testes em humanos no ano que vem, mas ainda não mostrou nada concreto. Mesmo assim, o conceito atraiu investidores, que em agosto do ano passado decidiram aplicar US$ 440 milhões na iniciativa (a empresa saiu do papel após um investimento inicial do Flagship Pioneering, o mesmo fundo de investimentos que ajudou a criar a Moderna).
Em setembro, foi a vez da Replicate Biosciences, que surgiu com a proposta de criar um “RNA autorreplicante” (srRNA). Como seu nome indica, ele seria capaz de se reproduzir no organismo. Ele é feito com o RNA de um vírus, através de um processo interessante.
A Replicate diz ter criado uma técnica que remove a maior parte do código genético desse vírus (que a empresa não diz qual é) e conserva apenas as instruções que o RNA usa para se reproduzir. É como se você pegasse um carro e tirasse a carroceria, os pneus e todas as demais peças, deixando apenas o motor. A ideia é injetar esse “motor” no corpo humano – junto com instruções para que ele fabrique determinadas proteínas.
Como o RNA autorreplicante ficaria se multiplicando sozinho no corpo, poderia curar doenças crônicas ou câncer com apenas uma aplicação. Mas, como você deve estar pensando, há riscos consideráveis envolvidos nisso: depois de introduzir o RNA replicante no corpo, não há como pará-lo. Essa tecnologia precisará ser exaustivamente testada antes de chegar ao uso em humanos. Isso se chegar.
Mas um outro tipo, mais modesto, já chegou: é o “RNA silenciador”, ou siRNA. Ele existe naturalmente no corpo e funciona como freio para o RNA mensageiro, fazendo com que ele pare de gerar proteínas.
Em 2018, estreou o primeiro remédio que usa essa tecnologia: ele se chama Onpattro (patisiran), foi criado pela empresa americana Alnylam e trata a amiloidose, uma doença genética fatal causada pela produção de uma proteína defeituosa. O medicamento contém siRNA modificado, que interrompe esse processo.
No ano seguinte surgiu o Givvlari (givosiran), contra a porfíria (uma doença de pele grave), e em 2020 o Oxlumo (lumasiran), contra a hiperoxalúria (condição genética que causa excesso de cálcio e pode afetar os rins). Os três são da Alnylam, e caríssimos: em média US$ 500 mil por ano de tratamento.
Eles custam caro porque tratam doenças raras, que poucas pessoas têm (e o fabricante não consegue diluir o custo do investimento vendendo muitas doses). Mas o siRNA também poderá chegar a bem mais gente. No final do ano passado, a FDA americana aprovou o Leqvio (inclisiran), que foi criado pela multinacional Novartis e usa RNA silenciador para combater o colesterol “ruim”.
O paciente toma uma injeção desse medicamento a cada seis meses, e ele freia a produção de uma proteína chamada PCSK9. Com isso, o corpo começa a decompor o colesterol – reduzindo os níveis dele no sangue em até 52%. O remédio custa US$ 10 mil por ano, e é indicado para casos em que o colesterol não responde aos tratamentos convencionais.
Ele pode ser o primeiro passo em direção a um futuro em que os medicamentos baseados em RNA chegam a milhões de pessoas e reinventam a medicina – salvando tantas vidas quanto as vacinas da Covid.
Um cenário que Katalin Karikó não tinha como prever, mas podia pressentir, quando emigrou para continuar suas pesquisas com mRNA. Ela traça um paralelo disso com um esporte: o remo. Sua filha Susan, que nasceu na Hungria em 1982 e atravessou o Atlântico com os pais em 1985, é remadora. Venceu medalhas olímpicas pelos EUA em 2008 e 2012. “Os atletas de remo não veem a linha de chegada com clareza, eles apenas pressentem a que distância estão dela”, declarou a mãe. “Às vezes, a ciência também é assim.”
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Fontes
(1) Suppression of RNA Recognition by Toll-like Receptors: The Impact of Nucleoside Modification and the Evolutionary Origin of RNA. K Karikó, D Weissman e outros, 2005. (2) Decay Rates of Human mRNAs: Correlation With Functional Characteristics and Sequence Attributes. E Yang e outros, 2003. (3) A Developing mRNA-vaccine technologies. T Schlake e outros, 2012.
(4) Reverse-transcribed SARS-CoV-2 RNA can integrate into the genome of cultured human cells and can be expressed in patient-derived tissues. R Young e outros, 2021. (5) Host-Virus Chimeric Events in SARS-CoV-2-Infected Cells Are Infrequent and Artifactual. B Yan e outros, 2021.
(6) mRNA transfection of cultured eukaryotic cells and embryos using cationic liposomes. RW Malone, 1989.
(7) Personalized Cancer Vaccine Clinical Trial to Expand Following Promising Early Results. Universidade do Arizona, 2020.