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A culpa é do estagiário. Só que não.

A lei que deveria garantir uma atividade complementar aos estudantes tem buracos, como a falta de benefícios adequados e uma fraca fiscalização. Entenda por que ela precisa de uma reforma.

Por Manuela Mourão
17 nov 2025, 14h00

Eu já quis ser bióloga marinha, internacionalista, advogada e, claro, jornalista. O que nunca me ocorreu é que, para todos esses cargos, eu teria que ser uma coisa antes: estagiária.

Nem uma trabalhadora por completo, nem só uma estudante. Alguma coisa no meio disso. O estágio é uma experiência peculiar, e cada um tem uma história diferente, com realidades que variam de bolsas generosas a valores simbólicos, de jornadas presenciais a regimes remotos, com ou sem benefícios.

Essas divergências têm uma origem comum: a Lei do Estágio, de 2008, que o definiu como uma atividade educativa ligada a determinado curso. Estudantes já trabalhavam antes em modelos similares, é claro – mas foi a primeira vez que estabeleceram-se os limites e as responsabilidades entre a empresa, o aluno e a instituição de ensino.

A lei dividiu os estágios em duas categorias: obrigatório (uma disciplina prática, muitas vezes na própria faculdade e sem remuneração) e não obrigatório, em geral feito numa empresa, que deve garantir bolsa, recesso remunerado e auxílio-transporte. A jornada é de até seis horas diárias e 30 horas semanais. O contrato pode durar, no máximo, dois anos.

Tudo isso, na teoria, visa garantir o equilíbrio entre estudo e trabalho, impedir a exploração e evitar o vínculo empregatício – afinal, o estágio não se enquadra na CLT. Na prática, não é bem assim.

“Se observarmos como o estágio realmente se desenvolve no dia a dia, todos os elementos típicos de um emprego estão presentes: a pessoalidade [o contrato diz respeito a uma única pessoa física], a habitualidade [é uma atividade constante] e a subordinação”, diz Júlia Lenzi Silva, professora doutora do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP.

Além disso, a Lei do Estágio é uma “lei órfã” em termos de fiscalização: não está claro quem deve garantir o seu cumprimento. Nem o Ministério do Trabalho nem o da Educação dispõem de estrutura voltada para fazer isso de forma ativa.

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Então, temos: uma legislação pouco específica, desatualizada e sem braço para fiscalização. Vamos entender as consequências desse desarranjo.

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No Brasil, 20 milhões de alunos* podem estagiar. Mas não tem vaga para todo mundo. Hoje, existem 877 mil estagiários no País, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (1).

Para muitos, estagiar não é só uma opção, mas uma necessidade. De acordo com o CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola), em 2024, 68% dos estagiários contribuíam de alguma forma nas despesas domésticas, 48% viviam em famílias com renda de até R$ 2.824 e 10% eram os principais responsáveis pelo sustento da casa (2).

A remuneração, contudo, está aquém do ideal. Em 2024, o valor médio nacional da bolsa-auxílio foi de apenas R$ 1.257,96 (3) – quase R$ 300 a menos que o salário mínimo.

Colabora para a dependência em relação ao estágio a falta de políticas robustas de permanência estudantil, que não acompanharam a expansão do Ensino Superior brasileiro nas últimas décadas: “O estágio garante mão de obra barata às empresas e, ao mesmo tempo, viabiliza a sobrevivência de alunos sem bolsas institucionais”, diz Silva.

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Além da questão econômica, a atual configuração dos estágios também não garante que os objetivos pedagógicos serão atingidos.

Em teoria, caberia às instituições de ensino acompanhar de perto as condições dos estágios. Cada estudante teria um orientador para incentivá-lo a vivenciar diferentes experiências profissionais, evitando vínculos prolongados com uma única empresa. Na prática, os professores “criam relatórios quase fictícios, muitas vezes feitos com modelos prontos ou até com ajuda de IA”, afirma Silva.

 

 

Sem o apoio necessário, é comum que muitos desconheçam todos os seus direitos. Foi só depois de um ano de estágio na Super que descobri que é possível encurtar a jornada de trabalho durante a semana de provas.

Mas não é só o fim do semestre da faculdade que fica em segundo plano. Em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo, no qual só metade dos estagiários costuma ser efetivada (4), há quem tope fazer horas extras, assumir funções de cargos superiores e aceitar bolsas pequenas – tudo em prol da promessa da CLT própria (ou de um pejotinha com alguns benefícios).

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O verdadeiro propósito

É claro que existem coisas boas e nem todo estágio é sinônimo de exploração. Há muito valor em ser estagiário com vontade de aprender, participar de grandes projetos e desenvolver habilidades que ampliam o repertório profissional. Esse é, afinal, o verdadeiro propósito da coisa: ter caráter formativo.

O problema começa quando essa relação se inverte, e as empresas passam a depender da força de trabalho dos estagiários para funcionar. A grande ilusão está justamente em não reconhecer o estágio pelo que ele muitas vezes é: emprego, com todas as responsabilidades, mas sem os mesmos direitos.

No cenário ideal, seria preciso integrar universidades, empresas e o poder público em um sistema de acompanhamento e transparência – algo como uma plataforma nacional de controle de estágios, como o aplicativo do Gov.br para a Carteira de Trabalho.

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Recentemente, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da USP propuseram uma atualização da Lei do Estágio. Ela estabelece um piso equivalente a um salário mínimo nacional. Além disso, pede por vale-refeição e vale-transporte obrigatórios, o fim de jornadas aos finais de semana, cotas raciais (além das que já existem para pessoas com deficiência) e a criação de um órgão fiscalizador no Ministério Público do Trabalho.

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Outra ideia, em tramitação no Senado, busca garantir um 13º e o direito de justificar faltas, além de assegurar uma organização coletiva dos estagiários.

Seriam ótimos primeiros passos, claro. Mas é preciso pensar além. “Sem políticas de permanência estudantil, reforma trabalhista e fiscalização efetiva, continuaremos apenas regulando a precarização”, argumenta Silva.

Já faz tempo que estágio não se resume a pegar café. Uma greve dos 877 mil brasileiros que trabalham dessa forma faria a economia travar da noite para o dia. Se nos tornamos tão indispensáveis assim, nada mais justo do que uma legislação à altura.

*A lei vale para estudantes do Ensino Médio, Ensino Superior, Ensino Técnico, Educação Especial e da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Fontes (1) relatório “Empregabilidade Jovem Brasil 2024”; (2) reportagem “CIEE: 10% dos estagiários são responsáveis pelo sustento da família”; (3) Nube; (4) Estatísticas Abres. Agradecimentos Helenice Accioly, gerente de Recrutamento e Seleção do Nube; Seme Arone Jr, presidente da Associação Brasileira de Estágios.

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