“Fingir demência”, “surtado” e outras expressões capacitistas para banir do vocabulário
A língua carrega preconceitos enraizados na sociedade. Mas é possível mudar: entenda o que é capacitismo e como escrever (e falar) de forma mais inclusiva.
Nas entrelinhas do que (e como) falamos, está nossa visão de mundo. Afinal, as línguas se desenvolvem de acordo com o ambiente em que estão inseridas e com a cultura de seus falantes.
Até aí, tudo bem. O problema é que, por conta disso, aspectos nada louváveis das sociedades podem acabar aparecendo em uma série de palavras e expressões – que, às vezes, usamos sem perceber.
Um exemplo é o capacitismo: a discriminação e o preconceito contra pessoas com deficiência (PCD) física ou mental. A mentalidade capacitista pressupõe que esses indivíduos são necessariamente menos aptos a realizar tarefas do cotidiano ou incapazes de vivenciar determinadas experiências.
Isso se manifesta no oferecimento de tratamento desigual – desfavorável ou favorável demais. Sabe quando alguém despreza as PCD ou fala como se fossem indivíduos “especiais”, dignos de pena ou ajuda? Esses são comportamentos capacitistas a serem evitados – e não só porque ofendem essas pessoas (embora isso já seja motivo suficiente).
“O preconceito e o estigma colocam diversas barreiras no diagnóstico e tratamento de transtornos mentais”, diz o psiquiatra Thiago Rodrigo, professor colaborador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Isso porque essa mentalidade constrange e afasta do convívio social quem tem esses transtornos – ou mesmo pessoas próximas a eles – e dificulta a adesão ao tratamento.
Língua inclusiva
Além de dificultar o diagnóstico e o tratamento, o preconceito acaba banalizando algumas condições, por exemplo – pense como é comum ouvir por aí que “Fulano é bipolar” porque teve uma mudança de humor, ou que “Ciclano tem TOC” porque é perfeccionista.
A boa notícia é que podemos rever o uso de palavras e expressões nada gentis – afinal, a língua está sempre em transformação e pode ser mais inclusiva. “A educação em saúde e a mudança de vocabulário podem trazer uma mudança cultural e fazer com que essas pessoas se sintam mais acolhidas, além de mostrar que essas condições são normais”, explica Thiago, que é especialista em esquizofrenia.
A experiência dele e de outros profissionais serviu para criar o “Dicionário anticapacitista em saúde mental”, idealizado pela empresa farmacêutica Janssen em parceria com associações de pacientes esquizofrênicos e familiares. Confira abaixo alguns termos para riscar do seu vocabulário:
1. “Fingir demência”
É usado para dizer que alguém vai se fazer de desentendido em determinada situação. É uma expressão ruim porque a demência, marcada pela disfunção da memória e do discernimento, não é uma escolha – e não deve caracterizar o comportamento negativo de alguém. Troque por “fingir-se de desentendido”.
2. “Retardado”
Vem de “retardo mental”, expressão usada antigamente para se referir à deficiência intelectual, capacidade significativamente reduzida de compreender informações novas ou complexas e de aprender novas habilidades. O problema dessa palavra é sua utilização como insulto ou ofensa – o “retardado” é considerado alguém inferior. Troque por “sem noção”.
3. “Surtado”:
A palavra é usada comumente para se referir a mudanças de comportamento inesperadas ou desproporcionais à situação em que ocorrem. Acontece que isso não tem nada a ver com os surtos psicóticos que caracterizam, por exemplo, o diagnóstico de esquizofrenia, que incluem alucinações, delírios, pensamento ou comportamento desorganizados e dificuldade de comunicação. Troque por “descontrolado” ou “impulsivo”.
4. “Lunático”
Antigamente, pensava-se que os transtornos neurológicos e psiquiátricos eram causados por influência da Lua. Daí surgiu o termo “lunático” – que se refere a alguém perigoso ou imprevisível. Como essas condições não têm nada de místico, essa palavra promove uma associação errada que pode alimentar a desinformação, mesmo que o falante não se dê conta.
5. “Esquizofrênico”
Essa palavra também pode ser usada com sentido pejorativo. É utilizada para caracterizar, por exemplo, um dia conturbado e turbulento: “Tive um dia esquizofrênico no trabalho”. É uma má escolha na hora de se comunicar com alguém, porque também reforça o preconceito em relação a quadros de crises ou surtos psicóticos.
6. “Você parece normal”
Quando você diz que uma pessoa com transtornos mentais parece normal, deixa a entender que ela, na verdade, não é. Isso pode ser dito com uma boa intenção, mas está longe de ser elogio: reforça estereótipos e dá a entender que essas pessoas não podem ter uma vida saudável ou autônoma.
Você pode conferir outras expressões e conhecer a campanha “Ouçam nossas vozes”, que dá voz a pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, acessando o Dicionário Anticapacitista neste link.