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Espaço sideral: o novo campo de batalha

A humanidade finalmente realizou o primeiro ato de guerra espacial. Veja qual foi – e entenda por que, após décadas de aparente calmaria, as superpotências voltam a encarar a órbita terrestre como um lugar de enfrentamento.

Por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 15 fev 2024, 11h58 - Publicado em 14 fev 2024, 10h02

EEm 31 de outubro de 2023, o conflito no Oriente Médio começava sua quarta semana, totalizando 1.400 mortos em Israel e 8.430 na Palestina. O noticiário do dia foi dominado pelo bombardeio ao campo de refugiados de Jabalia, em Gaza, que matou 195 pessoas e feriu mais de 700. Segundo o Exército de Israel, autor do ataque, o objetivo era eliminar um comandante do Hamas, que estaria escondido ali.

A ONU condenou a ação – que, “dado o grande número de vítimas civis e a escala da destruição”, “pode constituir crime de guerra”. Naquele mesmo dia, um míssil Qadr (“destino”, em árabe), de fabricação iraniana, foi disparado do Iêmen em direção a Israel.

O projétil voou cerca de 1.600 km, atravessando o mar Vermelho, e aparentemente tinha como alvo a cidade de Eilat. Mas, antes de chegar lá, foi abatido por um míssil interceptador Arrow 2. Não foi o primeiro evento do tipo: Israel possui vários sistemas de defesa como esse, que já foram bastante acionados.

Só que o caso do dia 31 teve um detalhe inédito. A interceptação ocorreu acima da chamada Linha de Kármán, a 100 km de altitude, que foi instituída nos anos 1960 – e marca o início do espaço sideral. Isso significa que, pela primeira vez, a humanidade realizou um ato de guerra no espaço. 

Esse marco histórico, que passou meio despercebido, foi o culminar de uma série de ameaças e manobras executadas ao longo dos últimos anos. Em outubro, o ministério de relações exteriores da Rússia disse que satélites americanos poderiam “se tornar alvos de um ataque retaliatório” caso continuassem a atuar na Guerra da Ucrânia.

Os EUA, que em 2019 fundaram a Space Force (ramo das forças armadas dedicado a ações no espaço, com orçamento anual de US$ 30 bilhões), disseram que responderiam à altura.

Mas sua maior preocupação é a China. “Eles estão testando satélites que podem ser transformados em armas”, declarou em novembro o general B. Chance Saltzman, diretor da Space Force, em depoimento ao Congresso dos EUA.

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Os americanos preveem vários tipos de ataque contra sua rede de satélites [veja no quadro abaixo], e têm encarado com suspeita as missões lunares chinesas. Especula-se que a sonda Chang’e 4, que em 2019 pousou no lado oculto da Lua, poderia ter propósitos além da pesquisa científica.

Isso porque sua missão incluiu um satélite, o Queqiao, que poderia ser usado para interferir num sistema crítico de defesa dos EUA (mais sobre isso daqui a pouco).

Os americanos reagiram a isso com a construção de um novo radar espacial: assinaram um contrato de US$ 341 milhões com a Northrop Grumman (fabricante do bombardeiro stealth B-2) para desenvolver um sistema capaz de vigiar o “espaço profundo”, que inclui a órbita dos satélites geoestacionários, a 36 mil km de altitude.

Também revelaram, pela primeira vez, a real função do misterioso Boeing X-37B, um miniônibus espacial autônomo capaz de permanecer no espaço por períodos muito extensos (sua missão mais longa, concluída em novembro de 2022, durou 908 dias).

Em outubro de 2023, a Space Force organizou um evento para apresentar sua primeira pintura, que foi elaborada pelo artista Rick Herter. Ela se chama “Interceptação a Grande Altura”, e mostra um X-37B (que tem 1/5 do tamanho dos antigos ônibus espaciais tripulados) perto de dois satélites, um dos quais é hostil.

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“As portas de carga estão se abrindo, conforme o avião espacial se prepara para defender o satélite amigo”, descreveu a Space Force. Como isso aconteceria, e qual arma seria usada para atacar o inimigo, ela não diz. Mas agora, após anos de especulações, o propósito do X-37B ficou mais claro. Em 28 de dezembro, ele foi ao espaço para mais uma missão, sem data para voltar.

Já seu similar chinês, o Shenlong (“dragão divino”), permanece enigmático: em 18 de dezembro, quatro dias após começar sua terceira missão, ele liberou seis pequenas cargas na órbita terrestre – identificadas por astrônomos ocidentais como “objetos A, B, C, D, E e F”. Elas descrevem trajetórias diferentes, mas têm uma característica em comum: os objetos A, D e E transmitem sinais, e podem ser satélites secretos.

Colagem com a terra, lua, satélites genéricos, satélites da Starlink, Boeing X-37, o Shenlong (ônibus espacial chinês) e o ASM-135 ASAT.
A disputa militar do espaço inclui elementos aparentemente civis, como a rede Starlink, além de mísseis e veículos de ataque. (Caroline Aranha/Fotos: Getty Images, Wikimedia Commons e Reprodução/Superinteressante)

Em suma: há bastante coisa de natureza não-civil, e em alguns casos abertamente militar, sendo feita na órbita da Terra. Após décadas de aparente tranquilidade no espaço, as superpotências voltaram a enxergá-lo como um lugar de enfrentamento – porque, agora, novas tecnologias estão levando a isso.

Ataques em órbita

“União Soviética lança satélite ao espaço; ele está circulando o globo a 28 mil km/h; esfera é detectada em 4 passagens sobre os EUA.” Essa foi a manchete, em letras garrafais, do New York Times de 5 de outubro de 1957, no dia seguinte à URSS colocar o Sputnik 1 em órbita.

“Os satélites não terão serventia militar em um futuro próximo”, diz a reportagem, pois “não podem ser usados para jogar bombas atômicas ou qualquer outra coisa na Terra”. Mas “podem fornecer informações valiosas para o estudo dos mísseis balísticos intercontinentais”.

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Embora não representasse uma ameaça imediata, o Sputnik 1 causou preocupação nos EUA – que poucos meses depois, em julho de 1958, fundariam a Nasa. “O espaço foi militarizado desde o começo”, afirma John J. Klein, professor de políticas espaciais na
Georgetown University, em Washington DC.

“Nós usamos satélites para verificar o cumprimento de tratados [de desarmamento nuclear], e para observar o movimento de tropas”, diz ele, que foi oficial de aviação da Marinha por 22 anos e é autor de dois livros sobre estratégia militar no espaço.

Os satélites facilitaram muito a espionagem aérea, revolucionaram as comunicações civis e militares, e permitiram o desenvolvimento da rede GPS e similares (como a Glonass russa e a BeiDou chinesa), que hoje são essenciais para direcionar ataques em terra.

Mas eles também têm outra função crítica, que menos gente conhece: o sistema de early warning (“aviso precoce”), que detecta o lançamento de mísseis em qualquer parte do planeta.

Os mísseis balísticos – como o Qadr disparado pelo Iêmen, e diversos outros, incluindo nucleares, presentes no arsenal de vários países – têm esse nome porque usam a força da gravidade para atingir o alvo.

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Eles sobem a grandes altitudes, de centenas ou milhares de quilômetros, bem dentro do espaço. Aí fazem uma curva, desligam os motores e começam a cair. A atração gravitacional da Terra acelera o projétil a velocidades altíssimas, de até 25 mil km/h – tornando-o muito difícil, ou impossível, de interceptar. 

O único jeito de fazer isso é quando o míssil ainda está subindo ou voando “reto”, antes de começar a cair, porque aí sua velocidade é muito menor (foi o que o sistema israelense fez com o míssil iemenita).

Mas, para tanto, é necessário detectar rapidamente o lançamento – e é aí que os satélites entram. Eles fazem isso monitorando a emissão de raios infravermelhos (calor) que é gerada no disparo de um míssil.   

Os americanos utilizam uma rede, a Space-Based Infrared System (SBIRS), que é formada por 12 satélites, posicionados em órbitas variadas. Se outro país atacasse um ou vários deles, poderia reduzir ou eliminar a capacidade de os EUA detectarem mísseis.

Em 2019, o Pentágono afirmou que a missão lunar chinesa Chang’e 4 poderia ter esse objetivo. Isso porque ela incluiu um satélite, o Queqiao, que foi posicionado de forma estranha: ele fica sobre o lado oculto da Lua e está em um dos chamados “pontos de Lagrange”, órbitas nas quais há equilíbrio gravitacional entre a Terra e o Sol.

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Isso significa que o satélite não precisa gastar combustível para manter sua posição – e pode permanecer indefinidamente no espaço. Segundo os EUA, o Queqiao pode ser o primeiro elemento de uma rede capaz de atacar satélites americanos.

Mas e se a frota americana fosse maior? Muito maior? “Veja a Starlink, por exemplo. Se você tem 10 mil satélites, você pode tirar [abater] um e ainda sobram 9.999”, afirma Klein. Segundo ele, a rede Starlink “possui capacidades de uso dual”, ou seja, pode ter aplicações civis e militares.

Isso significa que, além de mandar sinais de internet para a sua casa, também pode ser usada por tropas – como as ucranianas, que utilizam receptores Starlink para transmitir comunicações militares em sua guerra contra a Rússia. Mas a coisa vai bem além disso.

Em 2020 a Starlink assinou um contrato, com o Departamento de Defesa americano, para lançar uma constelação de satélites com sensores infravermelhos e a função de detectar mísseis.

Também não é impossível que, secretamente, alguns dos 5.289 satélites Starlink que já estão em órbita estejam sendo operados não (só) para internet, mas para outros fins. A empresa pretende ter 12 mil satélites, com uma possível expansão para 42 mil.

China e Rússia ainda não dominam a tecnologia dos satélites de órbita baixa (LEO), como os Starlink. Elas estão montando redes próprias, mas isso deve levar alguns anos. Até lá, seus sistemas antimísseis continuarão operando no modelo antigo, que depende de poucos satélites – e pode ser vulnerável a ataques no espaço.

O desenvolvimento de armas antissatélite, as ASATs, é tão antigo quanto os próprios satélites. Em tese, a opção mais simples é disparar um laser da Terra, para cegar ou danificar o alvo.

Em maio de 2023, a empresa americana BlackSky, que opera satélites de vigilância militar, divulgou imagens de uma base militar em Korla, no noroeste da China, mostrando o que parecem ser dois grandes canhões laser – que estariam sendo acionados contra satélites espiões ocidentais. EUA e Rússia também possuem armas do tipo.

O problema do laser, por assim dizer, é que você só consegue usá-lo quando o alvo está passando sobre o seu território. Uma possível solução seria colocar armas laser em órbita, a bordo de satélites de ataque.

Americanos e russos tentam desenvolver essa tecnologia desde os anos 1980, quando os EUA anunciaram o Strategic Defense Initiative (SDI), projeto que criaria uma rede de satélites armados – e foi apelidado de “Star Wars”. A tecnologia nunca funcionou, e o SDI foi encerrado em 1993. Oficialmente, pelo menos.

Em 2023, o jornal britânico Financial Times teve acesso a um documento da CIA, a agência de inteligência americana, que acusa a China de estar estudando métodos eletrônicos para “neutralizar, explorar ou sequestrar” satélites. Isso poderia ser feito da Terra ou, de forma mais insidiosa, com os chamados satélites perseguidores, que se aproximam dos alvos.

Os EUA também têm interesse nessa tecnologia. A True Anomaly, startup fundada por um major da Força Aérea dos EUA, recebeu quase US$ 150 milhões da Space Force e de investidores privados.

A empresa, cujo nome faz referência a um dado astronômico (“anomalia verdadeira” é um dos ângulos que determinam a trajetória de um corpo celeste), pretende lançar este ano os dois primeiros Jackal (“chacal”), satélites de “perseguição orbital” projetados para seguir alvos no espaço.

 

Infográfico mostrando 6 métodos de ataques entre satélites.
(Arte/Superinteressante)

 

Hoje, o meio mais eficaz de ataque espacial ainda é o “cinético”: disparar mísseis da Terra. China, Índia, Rússia e EUA já fizeram diversas demonstrações, contra seus próprios satélites, para testar o método, que é relativamente barato.

Mas ele tem um grande porém. Se você destrói fisicamente um satélite (seja acertando-o com um míssil ou enviando outro satélite para colidir com o alvo), ele se fragmenta – e isso pode ter consequências terríveis.

O primeiro teste cinético realizado pela China, em 11 de janeiro de 2007, gerou pelo menos 2.087 pedaços de detritos espaciais – sozinho, ele aumentou em 20% a quantidade de lixo em órbita na época(1).

Isso já é ruim, mas o pior é o efeito dominó que pode acontecer depois. Cada pedaço pode acertar outros satélites, gerando mais detritos, até eventualmente inutilizar a órbita terrestre – que ficaria tomada por um cinturão de destroços.

É a chamada Síndrome de Kessler, teorizada em 1978 pelo astrofísico americano Donald J. Kessler, da Nasa. Ela prevê que, com a atividade humana na órbita terrestre, a quantidade de detritos vai crescendo (seja por ataques ou pela desintegração natural dos satélites) até que, em determinado momento, ela dispara: passa a aumentar exponencialmente, porque os destroços começam a gerar mais destroços. Com isso, até os satélites do país que iniciou o ataque acabariam destruídos.

Colagem da terra cercada por diversos destroços espaciais, representando a Síndrome de Kessler.
Representação gráfica da chamada Síndrome de Kessler, que foi teorizada por um físico da Nasa – e poderia inutilizar a órbita da Terra. (Caroline Aranha/Fotos: Getty Images/Superinteressante)

A síndrome é um conceito teórico, que nunca foi testado na prática (ainda bem) e não é consenso entre os cientistas. Como ela não é uma certeza, não elimina a possibilidade de ataques – como a doutrina da Destruição Mútua Assegurada tem feito com as armas nucleares nas últimas oito décadas (se uma superpotência usar bombas atômicas contra outra, sofrerá uma retaliação igualmente aniquiladora; por isso, nenhuma delas ousa fazer isso).

“Vamos ver um ataque cinético no espaço? Eu não sei. Mas acho que os EUA e outras potências espaciais precisam estar preparadas”, diz Klein. Se um dia isso acontecer,  o espaço – hoje tão vazio e aparentemente pacífico – se tornará outro. E a humanidade terá encontrado mais um lugar, e novos meios, para fazer a guerra.

***

Fonte 1. Analysis of the 2007 Chinese ASAT Test and the Impact of its Debris on the Space Environment. TS Kelso, 2007.

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