O fim da superpopulação
As pessoas estão tendo cada vez menos filhos. Em 124 países, o índice de natalidade já caiu abaixo do mínimo necessário para manter a população estável. Ao longo deste século, o número de habitantes da Terra pode diminuir até 25%. Entenda as consequências de um mundo menos lotado.
EEm abril de 1968, um grupo de cientistas de dez países, liderados por pesquisadores do MIT, se juntou para estudar o futuro da humanidade. O grande assunto da época era o crescimento populacional: naquela década, a taxa média de natalidade havia ultrapassado a marca de cinco filhos por mulher, a maior já registrada.
O grupo, que ficou conhecido como Clube de Roma (a primeira reunião aconteceu na capital italiana), passou quatro anos debruçado sobre essa e outras questões, e em 1972 transformou as conclusões em livro: Os Limites do Crescimento.
“Atualmente, cerca de 97% da produção de energia da humanidade vem de combustíveis fósseis. Quando esses combustíveis são queimados, eles liberam, entre outras substâncias, dióxido de carbono (CO2) na atmosfera”, adverte a obra, numa época em que ninguém falava nisso. “Não é sabido quanto CO2 ou poluição térmica pode ser liberada sem causar mudanças irreversíveis no clima da Terra.”
O livro usava dados históricos e modelos matemáticos para mostrar como, além de aumentar as emissões de CO2 e esquentar a atmosfera, o forte crescimento da população – que acontecia devido à alta natalidade combinada à “redução, muito bem sucedida, na taxa de mortalidade global”– poderia ter outras consequências catastróficas, como o esgotamento dos recursos naturais.
E apresentava duas possíveis soluções: ou a humanidade diminuía voluntariamente seu ritmo de crescimento, ou o próprio planeta acabaria fazendo isso, reduzindo a população por meio de um colapso ambiental.
Os Limites do Crescimento teve enorme repercussão – foi traduzido para dezenas de idiomas, e vendeu mais de 30 milhões de exemplares pelo mundo –, mas suas advertências não foram ouvidas. A população global, que em 1972 era de 3,8 bilhões, mais do que dobrou: em 15 de novembro de 2022, a Terra cruzou a marca de 8 bilhões de habitantes.
Hoje, o aquecimento global e outros problemas ambientais são temas dominantes – e urgentes. Todo ano, a ong americana Global Footprint Network calcula o chamado Dia da Sobrecarga da Terra, a data em que ultrapassamos a capacidade do planeta de reequilibrar seus sistemas ecológicos e regenerar recursos naturais.
Esse indicador é calculado desde 1971; naquele ano, a humanidade atravessou o limite em dezembro. Já em 2023, isso aconteceu no dia 2 de agosto. Isso significa que, no ano passado, usamos 75% mais recursos do que o planeta pode suportar(1).
Mas, ao mesmo tempo, há algo diferente acontecendo. Nada menos do que 124 países estão com natalidade inferior a 2,1 filhos por mulher. Essa é a chamada “taxa de reposição”, que segundo a ONU é a necessária para manter a população estável (2 pessoas novas substituem os pais, e o 0,1 adicional compensa o número de indivíduos que não geram descendentes).
A maioria dos países, incluindo os de maior população, estão com taxas bem abaixo disso. A da China, por exemplo, está em 1,09 filho por mulher, uma das mais baixas do mundo atualmente – e que levou o país a sofrer a primeira queda populacional em seis décadas. Se o ritmo atual for mantido, ele chegará a 2100 com 587 milhões de pessoas – menos da metade de hoje(2).
O governo chinês pretende dar incentivos financeiros para estimular as famílias a terem filhos, uma ação já adotada pela Coreia do Sul, onde a taxa de natalidade está em mísero 0,78 filho por mulher. O país, que desde 1983 não alcança a taxa de reposição, pode encolher 94% até o final deste século [veja no infográfico abaixo].
A cada dois anos, o Japão fica com 1 milhão de pessoas a menos – e o primeiro ministro disse que o país deixará de “funcionar como uma sociedade” se isso continuar. Na Alemanha e na Espanha, a taxa de natalidade está abaixo de 1,5 há duas décadas. Ou seja: cada nova geração é 25% menor que a anterior.
Hoje, segundo a ONU, duas a cada três pessoas vivem em países de baixa fecundidade. Até a Índia, que em maio de 2023 superou a China e se tornou o país mais populoso do mundo, já caiu abaixo da taxa de reposição: em 2022, o país registrou taxa de fertilidade de 2,0 filhos por mulher.
No Brasil, a taxa está em 1,65 (era de 6,12 em 1950, 4,04 em 1980 e 1,81 em 2010). Neste ritmo, nossa população vai alcançar o pico em 2045, com 229,6 milhões de pessoas. Mas, em 2100, terá caído para 180 milhões, segundo cálculos (3) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A África é o único continente que continua em explosão demográfica. Em 1960, sua população era de 257 milhões – menos que a metade da Europa. Hoje, ela é de 1,4 bilhão, o dobro do continente europeu. E deve alcançar 2,5 bilhões por volta de 2050. Mas o resto do planeta está tendo bem menos filhos.
No ano passado, o Clube de Roma publicou um novo estudo (4), que projeta cenários totalmente diferentes daqueles dos anos 1960. Agora, os cientistas do grupo (que foi ampliado, numa iniciativa batizada de Earth4All) afirmam que, no cenário considerado mais “otimista”, a população global cairá para 6,1 bilhões em 2100.
Ainda é muita gente: a mesma quantidade de pessoas que o planeta tinha em 1999. Mas bem menos do que hoje. A ONU, mais conservadora, ainda acredita que a população vai se estabilizar em torno de 10 bilhões; ao mesmo tempo, também já trabalha com outro cenário, de 7 bilhões.
A redução populacional vai transformar o mundo. Mas, antes de entrar nisso, vale explorar uma questão que parece até simples, mas revela respostas surpreendentes: por que, afinal, as taxas de natalidade estão caindo tanto?
O dinheiro e as políticas
O primeiro fator é econômico: ter filhos, e cuidar deles, custa dinheiro. Nos anos 1970, o economista americano Gary Becker, da Universidade de Chicago, publicou uma série de trabalhos científicos (5) mostrando que o desenvolvimento dos países, e consequente aumento nos padrões de vida, tendem a resultar em taxas de natalidade mais baixas.
O ingresso das mulheres no mercado de trabalho (o que reduz seu tempo para ter filhos) e a evolução dos sistemas educacionais (com escolas mais caras, nas quais as crianças passam mais tempo) tornam financeiramente mais custoso gerar descendentes.
Hoje isso pode parecer óbvio, mas até então não era – tanto que Becker recebeu o Prêmio Nobel de Economia, em 1992, por sua análise das famílias e do comportamento humano. Estava certo: ao longo da segunda metade do século 20, houve redução dos indicadores de fertilidade nas nações que enriqueceram.
É totalmente diferente do cenário anterior, que prevaleceu na maior parte da história humana, em que ter muitos descendentes significava contar com mais mão de obra para a agricultura de subsistência ou empregos nas cidades, que ajudavam a sustentar a família. Hoje, os filhos não são mais encarados pela família como potencial força de trabalho; eles dão trabalho.
Essa mudança de paradigma tornou mais comum, de certo tempo para cá, ver homens e mulheres falando abertamente que não desejam ter filhos – uma posição que costumava ser mal vista pela sociedade. O estigma em torno dela está desaparecendo, e a sociedade vem deixando de romantizar a maternidade e a paternidade.
Pelo contrário, até: talvez você já tenha lido notícias sobre estudos que supostamente apontam uma queda no bem-estar dos casais após ter filhos. Essa questão é mais complexa do que parece. O maior estudo já realizado sobre o tema apontou que ter filho aumenta a felicidade do casal.
Em 2014, pesquisadores da London School of Economics e da Universidade de Western Ontario (Canadá) analisaram (6) os dados de duas grandes pesquisas, em que os governos da Alemanha e do Reino Unido acompanharam mais de 7 mil famílias ao longo de uma década.
Concluíram que, nos primeiros dois anos após o nascimento, o nível de satisfação dos pais é maior do que antes de ter o filho. Daí para a frente, ele começa a recuar um pouco – e, quando a criança alcança a faixa dos 10 anos, a felicidade do casal é semelhante à de antes da gravidez. Ou seja, ela volta ao estado inicial. Não cai.
Segundo o estudo, pais e mães com idade um pouco mais avançada, ou que possuam mais escolaridade, são os que mais ganham felicidade após ter o primeiro filho. Outro detalhe é que, embora ter os dois primeiros filhos aumente a felicidade, ter um terceiro não.
Só que tudo isso também depende do contexto social. Um estudo da Universidade do Texas (7), que comparou dados de 22 países, apontou que o grau de satisfação de quem tem filho, na comparação com quem não tem, varia bastante de lugar para lugar.
E identificou uma tendência: em locais onde as mulheres não precisam abandonar suas carreiras, os índices de satisfação e natalidade tendem a aumentar.
“Em alguns países, nos quais as políticas de apoio social às famílias são fracas, como nos EUA, os pais de crianças pequenas são menos felizes do que aqueles que não têm filhos”, afirma Thomas Hansen, psicólogo do Instituto Norueguês de Pesquisa Social e autor de estudos sobre o tema. “Nesses países, a felicidade sofre um forte declínio nos primeiros anos após ter filhos.”
“Muitos casais discordam sobre ter filhos. Mas, em países onde os pais participam menos dos cuidados infantis, esse desacordo é maior, e as taxas de fertilidade são mais baixas”, escreve o economista alemão Matthias Doepke, professor da Universidade Northwestern e da London School of Economics, em artigo (8) a respeito.
Ele destaca um ponto: o número de crianças por família aumentou em países que melhoraram a infraestrutura de creches, ou permitiram que os homens assumissem parte do tempo dedicado a cuidar dos filhos.
Na Dinamarca, por exemplo, a fertilidade aumentou de 1,38 filho por mulher, em 1983, para 1,72 em 2021.
Durante esse período, o país investiu pesado numa rede de atendimento para a primeira infância e também criou leis para estimular a natalidade: após o nascimento de cada filho, o casal tem direito a 52 semanas de licença do trabalho, das quais 32 podem ser divididas entre o pai e a mãe da criança, como ambos acharem melhor.
O governo também oferece um incentivo às famílias, que pode chegar a US$ 2.500 anuais por filho. É parecido com o que acontece na Hungria, onde o Estado decidiu isentar de imposto de renda as famílias que tiverem quatro ou mais filhos – graças a essa e outras medidas, a taxa de natalidade no país subiu de 1,24 para 1,56 criança por mulher.
Mas, em ambos os casos, continua longe da taxa de reposição (2,1). Entra em cena outro possível fator: a biologia. Dados da ONU (9) apontam que 17,5% dos adultos, no mundo, tentam mas não conseguem ter filhos.
O trabalho não avaliou a infertilidade ao longo do tempo, ou seja, não é possível saber se ela está aumentando – mas afirma que se tornou um problema global.
Isso tem uma razão clara: a fertilidade declina com o tempo e (por vários motivos, incluindo a vida profissional) os casais têm adiado suas tentativas de ter filhos. Procedimentos como o congelamento de óvulos e a fertilização in vitro, que aumentam as chances de engravidar, vêm se tornando mais comuns. Mas eles são caros, fora do alcance da maioria da população.
Outro aspecto fisiológico que costuma ser mencionado é a suposta queda nos níveis de espermatozoides dos homens. Essa tese vem de um estudo específico (10), que foi publicado em 2017 por cientistas de cinco países (EUA, Dinamarca, Israel, Espanha e Brasil) e revisou dados dos últimos 50 anos.
Sua conclusão foi que, nesse período, a contagem média de espermatozoides teria diminuído em 59%. A descoberta teve grande repercussão e surgiram várias teses para tentar explicar o fenômeno, como poluição do ar, dieta ou o contato com plásticos e produtos químicos.
Mas também existe a possibilidade de que a tal queda seja um mito. Em 2021, um grupo de pesquisadores da Universidade Harvard e do MIT revisou (11) o estudo anterior, e concluiu o seguinte: ele exagera os possíveis efeitos reprodutivos da suposta queda dos espermatozoides, e também contém “fraquezas e inconsistências”, como dar mais peso estatístico a homens que buscaram tratamento para ter filhos.
Quando a população masculina em geral é considerada, afirmam os pesquisadores, a contagem de espermatozoides está “bem dentro do nível ‘normal’ definido pela OMS, que é de 15 a 259 milhões por ml”.
A redução global nas taxas de natalidade tem várias possíveis explicações, mas a contribuição de cada uma permanece um mistério. Já o outro lado da moeda vai ficando cada vez mais claro. O encolhimento da população terá grandes consequências para o futuro do mundo – tanto as boas quanto as ruins.
Um mundo menos lotado
Combater o aquecimento global não é só uma questão de vontade e esforço: também há um problema de escala envolvido. Isso porque, mesmo com todo o crescimento das fontes renováveis nos últimos anos, 80% de toda a energia consumida pela humanidade ainda é de origem fóssil (12).
Algumas nações, como o Brasil e a França, já têm matrizes energéticas bem limpas; mas os demais, incluindo os países que mais consomem energia no mundo, ainda são totalmente dependentes da queima de carvão e gás. Descarbonizar tudo isso (ou uma parte grande o suficiente para frear o aquecimento global), com as tecnologias existentes hoje, será bem difícil.
Mas, se a população diminuir, o consumo de energia também vai cair – e isso pode ajudar a resolver o problema. Em 2017, cientistas do Canadá e da Suécia calcularam (13) que, nos países desenvolvidos, ter um filho a menos reduz a emissão de CO2 de uma pessoa em 58,6 toneladas por ano.
É muito mais do que abandonar o carro (o que “economiza” 2,4 toneladas de CO2 por ano), evitar viagens de avião (1,6 tonelada a menos para cada voo transatlântico que você deixa de pegar) ou parar de comer carne (0,8 tonelada de economia por pessoa, a cada ano).
Esses cálculos se referem aos países desenvolvidos, que são os principais responsáveis pelo aquecimento global. A diferença é bem grande: o 1% mais rico da população global emite mais que o dobro de carbono produzido pelos 50% mais pobres (14).
Isso significa que, segundo as contas da ONU (15), para alcançar os objetivos do Acordo de Paris (e manter o aquecimento global em no máximo 1,5 grau), a parcela mais rica da humanidade precisaria reduzir suas emissões em 30 vezes. Já a metade mais pobre do mundo poderia até aumentar em 3 vezes suas emissões atuais, caso consiga se desenvolver e adquirir maior poder aquisitivo.
Os países mais ricos são justamente os que vêm tendo maior queda de natalidade. Isso significa que, mesmo se a população da África seguir na contramão do resto do mundo e continuar aumentando, a inversão demográfica poderá ajudar as emissões globais de CO2 a caírem.
E menos gente, seja em nações ricas ou pobres, também significará menor demanda por água, alimentos e recursos naturais – o que deve ajudar a frear a tendência de esgotamento dessas coisas.
Que fique claro: nada disso significa que a humanidade possa abandonar seus esforços ambientais, e simplesmente esperar a população cair. Se nada for feito, e continuarmos explorando o planeta como se não houvesse amanhã, ele poderá reagir antes desse “esfriamento demográfico” – e de maneira agressiva, com fortes ondas de calor e o aumento de fenômenos climáticos extremos.
Mas é fato que a redução populacional costuma resultar numa recuperação do meio ambiente. Isso já aconteceu, ainda que de forma abrupta e violenta.
Um estudo da University College London (16) avaliou os padrões de uso da terra nas Américas à medida que a ocupação europeia avançou, ao longo dos séculos 15 e 16. Estimou que a população local, que era de 60 milhões, ou aproximadamente 10% do total global da época, despencou para cerca de 6 milhões em apenas cem anos.
O massacre dos povos nativos reduziu o uso de terras para agricultura, da parte dos indígenas, em aproximadamente 56 milhões de hectares, o equivalente à área da França atual. Esses territórios foram ocupados por florestas. Resultado: o fenômeno aumentou a área de mata a ponto de contribuir de forma significativa para a redução da temperatura média do planeta.
O século 16, não por acaso, foi marcado por uma Pequena Idade do Gelo, com queda da temperatura global. No século 21, isso não vai acontecer; mas a população também deve cair, agora por vias pacíficas.
Porém, ao contrário do que você pode pensar enquanto encara uma fila gigantesca ou sofre num ônibus lotado, a redução populacional não é só alegria; ela também pode ter consequências danosas.
Esses efeitos se espalham por diferentes aspectos da vida, mas têm um nexo central: o impacto sobre a economia. Com menos gente nascendo, a idade média da população vai aumentar – e haverá menos trabalhadores para contribuir com a previdência e pagar as aposentadorias dos idosos.
No Brasil, por exemplo, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) hoje gasta anualmente R$ 276,9 bilhões a mais do que arrecada, o equivalente a 2,6% do PIB. Isso não indica, necessariamente, um desequilíbrio financeiro (porque a conta inclui aposentadorias rurais e de “subsistência”, que dão 1 salário mínimo por mês a quem nunca contribuiu).
O problema é a trajetória. Em 2060, segundo estimativa do Tesouro Nacional (17), o déficit previdenciário terá saltado para 5,9% do PIB. E, em 2100, alcançará 10,2% do PIB – um nível que pode ser difícil de administrar.
Cedo ou tarde, todas as nações vão enfrentar esse problema. Até a China, cuja economia deve se tornar a maior do mundo na década de 2040.
A Academia Nacional de Ciências Sociais do país publicou dados mostrando que a previdência chinesa entrará em déficit no ano de 2035, com a situação piorando rápido. Se nada for feito, a partir de 2050 o rombo anual será de 11 trilhões de yuans (US$ 1,55 trilhão).
Uma possível solução seria alterar o modelo de previdência, que hoje na maioria dos países é de repartição (o dinheiro dos trabalhadores paga as pensões dos aposentados), para o de capitalização: a contribuição de cada pessoa é depositada numa conta, que só pertence a ela.
Isso resolve o problema demográfico. Mas haveria um custo de transição altíssimo (pois o Estado teria de pagar as aposentadorias correntes, sem arrecadar para isso).
E também pode acabar mal. No Chile, onde o sistema de capitalização foi imposto em 1981 pela ditadura Pinochet, a má gestão das contas individuais (que foram entregues pelo governo a empresas privadas, e tiveram baixo rendimento) espalhou miséria entre os aposentados – que hoje recebem, em média, 30% a 40% de um salário mínimo.
Em suma: não há uma saída simples para a redução – e consequente envelhecimento – populacional. Outro problema decorrente disso é que, com menos pessoas produzindo e consumindo, o padrão de vida pode cair.
O risco foi levantado em 2020 pelo economista Charles Jones, da Universidade Stanford, num artigo (18) que analisa a relação entre demografia e crescimento econômico. Ele argumenta que, em vez de a renda per capita continuar a avançar, o poder aquisitivo tenderia a estagnar e depois cair à medida que a população fosse desaparecendo.
Nesse cenário, já observado em países como o Japão, a baixa fertilidade caminha lado a lado com o aumento dos impostos previdenciários e dos gastos com saúde. A vida fica mais cara.
E isso alimenta um ciclo vicioso, em que as novas gerações ficam cada vez menos propensas a ter filhos – cenário que o demógrafo austríaco Wolfgang Lutz batizou (19) de “Armadilha da Baixa Fertilidade”.
Isso confirma o que John Maynard Keynes, um dos maiores economistas do século 20, previu durante uma palestra (20) concedida em 1937. Ele mesmo, pessoalmente, considerava que uma população menor era desejável. Mas alertou para uma série de efeitos econômicos ruins, incluindo a queda no padrão de vida.
E sugeriu, como solução, “políticas de aumento do consumo, através de uma distribuição mais equitativa dos rendimentos”. Alguns países estão começando a seguir esse caminho, dando incentivos em dinheiro para quem tiver mais filhos.
A redução populacional também tende a aumentar os desníveis sociais, já que a taxa de natalidade é maior nos países pobres. Segundo a ONU, 71% da humanidade vive em países onde a desigualdade cresceu nas últimas décadas (21).
A renda média na América do Norte é 16 vezes maior do que na África Subsaariana – e esse cenário pode se agravar se a população africana continuar aumentando rápido.
As mudanças de natalidade também podem alterar a composição demográfica dos países – e do mundo como um todo. Em Israel, por exemplo, a taxa de natalidade entre judeus ortodoxos é de 6,6 filhos por mulher, contra 3,9 dos religiosos não-ortodoxos e 2,0 da população secular (22).
Ou seja, a tendência é que Israel se torne cada vez mais religioso nas próximas décadas – o que terá consequências políticas e geopolíticas, afetando diretamente o Oriente Médio.
Nos países de orientação muçulmana, o índice de natalidade também permanece acima da média global, e da taxa de reposição: 2,9 filhos por mulher. Já é bem menos do que os 4,3 registrados em 1990, mas significa que o Islã continuará a crescer.
Nenhuma outra fé mantém taxas tão elevadas, a ponto de o Pew Research Center prever (23) que, até 2060, a população muçulmana deverá aumentar 70%. Por essa trajetória, o mundo se tornará mais muçulmano do que cristão a partir de 2050.
Também haverá um inevitável aumento das ondas migratórias. E países ricos terão de aceitá-las, se não quiserem sofrer um colapso populacional [veja no quadro abaixo].
A humanidade começou o século 20 com 1,6 bilhão de pessoas. Terminou com quatro vezes mais, e seguiu acelerando. Mas a tendência se inverteu, e o século 21 poderá ser marcado por uma surpreendente redução populacional – será a primeira vez que isso acontece desde a Peste Negra, no século 14. Agora, sem uma tragédia; mas com diversas consequências.
Ninguém sabe ao certo quais são os limites do planeta, e qual seria a população ideal para que a sociedade viva bem, de forma próspera e sustentável, sem comprometer o meio ambiente. Mas um ponto parece certo: continuar crescendo explosivamente e sem limites, como nos últimos 100 anos, não é o caminho para um futuro viável.
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Fontes (1) Earth Overshoot Day – Update. Geneva Environment Network, 2023. (2) Shanghai Academy of Social Sciences. (3) Projeções populacionais por idade e sexo para o Brasil até 2100. G Bonifácio e R Guimarães, 2021. (4) People and Planet: 21st-century sustainable population scenarios and possible living standards within planetary boundaries. Earth4All, 2023.
(5) Sintetizados no livro A Treatise on the Family. G Becker, 1981. (6) Happiness: Before and After the Kids. Mikko Myrskylä e Rachel Margolis, 2014. (7) Parenthood and Happiness: Effects of Work-Family Reconciliation Policies in 22 OECD Countries. J Glass e outros, 2016. (8) The economics of fertility: a new era. M Doepke e outros, 2022.
(9) Infertility Prevalence Estimates, 1990–2021. OMS, 2023. (10) Temporal trends in sperm count: a systematic review and meta-regression analysis of samples collected globally in the 20th and 21st centuries. S Swan e outros, 2017. (11) The future of sperm: a biovariability framework for understanding global sperm count trends. M Boulicault e outros, 2021. (12) World Energy Outlook 2022. International Energy Agency. (13) The climate mitigation gap: education and government recommendations miss the most effective individual actions. S Wynes e K Nicholas, 2017.
(14) Confronting Carbon Inequality. Oxfam, 2020. (15) Emissions Gap Report 2020. ONU. (16) Earth system impacts of the European arrival and Great Dying in the Americas after 1492. A Koch e outros, 2019. (17) Relatório Contábil do Tesouro Nacional – RCTN 2022.
(18) The End of Economic Growth? Unintended Consequences of a Declining Population. C Jones, 2020. (19) The Low Fertility Trap Hypothesis. Forces that May Lead to Further Postponement and Fewer Births in Europe. W Lutz, 2006. (20) Some economic consequences of a declining population. JM Keynes, 1937. (21) Inequality – Bridging the Divide. ONU, 2020. (22) Jerusalem Institute for Policy Research, 2022. (23) The Changing Global Religious Landscape. Pew Research, 2017.