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O mercado da ignorância

"Onde o cientista vê uma pergunta complexa que demandará anos de pesquisa metódica, o charlatão enxerga uma oportunidade imediata de ganho."

Por André Bacchi
26 out 2025, 18h01

O texto a seguir foi publicado originalmente em 10 de outubro na Revista Questão de Ciência. Vale a visita ao site.

“Quando entramos no trem em Charlottetown e as estradas vermelhas surgiram à nossa frente, perguntei à senhora Spencer o que as tornava vermelhas, e ela me disse que não sabia e que, por piedade, não lhe fizesse mais perguntas. Ela disse que eu já devia ter feito umas mil perguntas a ela. E eu presumo que seja verdade também, mas como uma pessoa pode saber das coisas sem fazer perguntas?”

Esta passagem de Anne de Green Gables, escrita por Lucy Maud Montgomery em 1908, captura algo interessante sobre a natureza da curiosidade humana. A jovem Anne não consegue conter seu fascínio pelo mundo ao seu redor. E quando a senhora Spencer, exausta pelas perguntas incessantes, implora por silêncio, Anne articula uma questão que deveria dialogar com qualquer pessoa minimamente interessada em compreender o mundo: como podemos saber das coisas sem fazer perguntas?

Há muito de científico no espanto de Anne. Sua curiosidade nasce da admiração diante do desconhecido. O impulso que a faz perguntar por que as estradas são vermelhas não é muito diferente, em essência, daquele que moveu Galileu a observar o movimento dos corpos celestes ou Darwin a seguir as trilhas dos tentilhões nas ilhas Galápagos. Anne acolhe o mistério como um convite, e essa disposição para perguntar (e não apenas para acreditar) é o núcleo do pensamento científico.

Mas existe uma diferença entre a curiosidade de Anne e algo que vemos com frequência hoje: a pressa em preencher o vazio do não saber. Anne não pergunta porque precisa preencher um vazio angustiante com uma resposta qualquer. Ela pergunta porque o mundo é interessante demais para permanecer inexplorado. É uma alegria e não um tormento.

Na sequência, Anne expressa isso com ainda mais clareza: “Não é esplêndido pensar em todas as coisas que há por descobrir? Isso simplesmente me deixa feliz por estar viva… O mundo é interessante demais. Não seria tão interessante assim se já soubéssemos tudo, não é mesmo?”.

Para Anne, não saber não é uma fraqueza a ser escondida ou preenchida às pressas com qualquer coisa. É uma característica estrutural da experiência humana que torna a vida interessante. E essa é exatamente a postura que distingue a curiosidade científica genuína da ansiedade explorada pelos vendedores de certezas falsas.

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O mistério vira mercadoria

Nos mapas medievais, cartógrafos costumavam escrever Hic sunt dracones (aqui há dragões) nas regiões ainda inexploradas. Era uma forma quase poética de admitir a ignorância: “não sabemos o que existe aqui”. Ironicamente, essas marcas de humildade intelectual tornaram-se, séculos depois, mais famosas do que muitas das terras que os exploradores mapearam.

Hoje, não precisamos mais temer dragões em terras distantes, mas o “território inexplorado” migrou para outros domínios: os mecanismos da mente, as doenças complexas, a origem da vida e os limites da física. E, como nos mapas antigos, essas lacunas exercem um fascínio irresistível. A diferença é que, atualmente, duas posturas distintas disputam o direito de interpretar essas regiões: a postura científica e a postura do charlatão.

Para o cientista, a ignorância é o ponto de partida para uma boa pergunta. Cada “não sabemos ainda” é um convite para a investigação rigorosa. A ignorância científica é, portanto, produtiva: gera hipóteses testáveis e, no fim, expande nossa compreensão do Universo.

Já para o picareta, a mesma dúvida representa um mercado a explorar. Onde o cientista vê uma pergunta complexa que demandará anos de pesquisa metódica, o charlatão enxerga uma oportunidade imediata de ganho. A ignorância, para ele, não é um problema a ser resolvido através de investigação sistemática, mas um nicho a ser explorado. Quanto mais misteriosa e inacessível for uma questão para a ciência, mais atraente ela se torna como produto.

Parasitismo discursivo

Esse fenômeno pode ser descrito como uma forma de “parasitismo discursivo” em que aproveitadores se alimentam das lacunas honestamente admitidas pela ciência, transformando incertezas legítimas em certezas fabricadas. O parasitismo opera em dupla inversão: onde a ciência admite não saber, vende certezas; onde a ciência demonstrou saber, fabrica dúvidas.

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Na primeira frente, identifica-se uma área em que a ciência ainda não tem respostas definitivas: a consciência, mecanismos exatos de algumas doenças, questões sobre origens da vida. A lacuna, em vez de ser respeitada como território de investigação em andamento, é apresentada como “prova” da “insuficiência do método científico”. Por fim, oferece-se uma alternativa que promete resolver tudo de forma simples e imediata, sem a necessidade de estudos rigorosos, revisão por pares ou replicação de resultados.

Na segunda frente, a estratégia se inverte. Quando a ciência consegue estabelecer consensos, os mesmos agentes que vendiam certezas na ausência de conhecimento agora fabricam dúvidas onde há conhecimento consolidado.

A indústria do tabaco ofereceu o manual definitivo dessa inversão. Nos anos 1950, quando evidências sobre os malefícios do cigarro começaram a se acumular em estudos epidemiológicos robustos e replicados, a estratégia não foi negar completamente os dados (seria indefensável), mas questionar metodicamente sua validade. “A ciência ainda não provou definitivamente”, “há controvérsias entre especialistas”, “mais pesquisas são necessárias”. Documentos internos revelaram posteriormente que o objetivo explícito era fabricar dúvida onde já havia consenso científico bem estabelecido.

Essa tática de manufatura da controvérsia se espalhou para outras áreas onde o conhecimento científico ameaça interesses econômicos ou ideológicos: mudanças climáticas, evolução, segurança de vacinas.

O resultado é uma assimetria conveniente: onde deveriam admitir ignorância, apresentam certezas inabaláveis. Onde deveriam reconhecer consensos científicos sólidos, semeiam dúvidas.

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Pisando em ovos

O que assistimos nestes casos não é apenas a uma competição intelectual entre explicações concorrentes. É uma disputa muito mais séria entre aqueles que trabalham para expandir o conhecimento verificável e aqueles que precisam mantê-lo limitado (ou manter a percepção pública de que ele é limitado) para sobreviver economicamente.

Cientistas trabalham, paradoxalmente, para se tornarem desnecessários em suas áreas específicas de investigação. Cada problema resolvido é um mistério a menos, uma pergunta que não precisará ser refeita da mesma forma. O sucesso científico se mede, em última análise, pela redução progressiva da ignorância humana. Já o modelo de negócio dos charlatões depende estruturalmente da manutenção perpétua da dúvida e da desconfiança nas respostas que a ciência oferece.

Além disso, a comunicação científica enfrenta um dilema estrutural que lembra a situação da senhora Spencer no trem para Charlottetown. Se os pesquisadores forem cautelosos demais em suas declarações públicas, utilizando todas as ressalvas metodológicas apropriadas, soarão evasivos ou arrogantes, como se estivessem escondendo algo. Se forem muito diretos sobre limitações e incertezas (como exige a honestidade intelectual), abrem espaço para apropriações indevidas por parte de oportunistas. É um jogo em que as regras sistematicamente favorecem o adversário.

A mídia também tem sua parcela de responsabilidade nessa dinâmica. A necessidade de manchetes chamativas e a busca por “equilíbrio” jornalístico “imparcial” resultam, com frequência, em coberturas que tratam consensos científicos estabelecidos e opiniões minoritárias sem fundamento metodológico como equivalentes. Quando um jornal publica uma matéria sobre mudanças climáticas e sente necessidade de “ouvir o outro lado”, mesmo que esse outro lado represente uma fração mínima da comunidade científica (ou nem isso), está contribuindo ativamente para a impressão de que há uma controvérsia genuína onde não existe.

Mais grave ainda: essa desconfiança fabricada não distingue entre áreas do conhecimento. Se as pessoas são convencidas de que os cientistas estão fundamentalmente errados sobre vacinas, por que confiariam neles sobre mudanças climáticas? Se a medicina é apresentada como corrupta e incompetente, por que acreditar em recomendações sobre saúde pública durante uma pandemia?

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A alegria resistente

Anne não se conforma em calar sua curiosidade, mas também não quer “dominar o mundo” com suas descobertas. Quer apenas compreendê-lo, com humildade e entusiasmo. O pensamento científico, quando autêntico, nasce justamente dessa alegria em não saber tudo. Uma alegria que reconhece os limites atuais do conhecimento não como fracassos vergonhosos, mas como convites para investigação sistemática e colaborativa.

Diante do cenário que descrevi, como a comunidade científica deveria responder? A tentação é se fechar ainda mais, protegendo-se das distorções através do isolamento em publicações especializadas e linguagem técnica impenetrável. Mas essa estratégia é contraproducente, pois alimenta a percepção de arrogância e elitismo que os charlatões exploram.

A resposta deve ser mais transparência a respeito do processo científico, não menos. Cientistas precisam aprender a comunicar não apenas suas descobertas consolidadas, mas também suas incertezas, explicando por que a dúvida científica – aquela que exige evidências adicionais e testes rigorosos – é diferente da ignorância explorada comercialmente, e como o método científico lida com as limitações inevitáveis do conhecimento.

Isso requer uma mudança cultural significativa, inclusive na academia. Comunicação pública não pode continuar sendo vista como uma atividade menor, secundária ou até prejudicial à “seriedade” do trabalho científico. Pesquisadores que conseguem traduzir conhecimento técnico complexo para linguagem acessível sem sacrificar precisão deveriam ser recompensados em suas carreiras, não marginalizados.

Também é fundamental expor sistematicamente os interesses econômicos concretos por trás dos ataques organizados à ciência. Quando alguém questiona persistentemente a eficácia de vacinas estabelecidas, é necessário perguntar: que alternativa essa pessoa ou organização está vendendo? Quem financia essas campanhas de desinformação? Que produtos ou serviços se beneficiam da desconfiança fabricada?

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Considerações finais

O paradoxo de nossa época é que vivemos simultaneamente no ápice histórico do conhecimento científico acumulado e em uma era de desconfiança crescente na ciência como forma de conhecimento. Nunca soubemos tanto sobre o funcionamento do Universo, desde as partículas subatômicas até a estrutura cosmológica em larga escala. Ao mesmo tempo, nunca foi tão fácil encontrar “alternativas” comercializáveis para qualquer consenso científico.

Essa aparente contradição se resolve quando compreendemos que não estamos diante de um debate intelectual honesto sobre epistemologia ou métodos de investigação, mas de uma disputa econômica e política.

Anne de Green Gables nos lembra que o mundo é interessante demais, que há perguntas demais a serem feitas, mistérios demais a serem explorados com honestidade intelectual. E que, no fim, a verdadeira alegria não está em ter todas as respostas imediatamente disponíveis, mas em manter viva a curiosidade que nos permite fazer perguntas melhores. O mundo precisa de mais Annes – e de menos pessoas dispostas a vender certezas falsas diante da dúvida. Que não nos tornemos uma senhora Spencer, exausta no trem, implorando apenas por silêncio diante do mistério.

André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros “Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades” e “50 Casos Clínicos em Farmacologia” (Sanar), “Porque sim não é resposta!” (EdUFABC), “Tarot Cético: Cartomancia Racional” (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?…e o que não é. (Editora Contexto).

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