O mito do racismo reverso
Equiparar hostilidade contra brancos a uma tradição de terror contra os negros e privação de seus direitos é negacionismo da lógica.
Um artigo na seção de Opinião da Folha de S. Paulo, do dia 15 de janeiro, reacendeu o debate acerca de um mito que já deveria estar na lata de lixo da história há muito tempo. O antropólogo Antonio Risério, autor de obras como As Sinhás Pretas da Bahia (que dá ênfase à trajetória de negras escravistas), assinou um texto no jornal com o título: “Racismo de negros contra brancos ganha força com identidarismo”.
Ao longo do artigo, que aponta um suposto projeto supremacista em movimentos negros, Risério elenca uma série de atos pontuais de violência, seja de indivíduos ou grupos negros, contra brancos, judeus e asiáticos. Também recupera histórias de lideranças negras que flertaram com o autoritarismo em momentos diferentes do passado. E assim justifica sua ideia de que há um perigoso racismo por parte dos negros que está ganhando envergadura como “discurso de esquerda”.
O artigo, como o próprio autor deveria prever ao escrevê-lo, gerou uma grande polêmica nas redes sociais, com ataques de intelectuais (negros e brancos), de ativistas e de qualquer um que não seja cego à realidade de para que lado os ventos do racismo estrutural sempre sopraram. Também houve, obviamente, quem defendesse a tese e o teórico.
Essa disparidade de posicionamentos se explica porque dar sua opinião sobre qualquer assunto está na essência das redes sociais, é de graça e ao alcance de qualquer um. Se a opinião faz algum sentido, já é outra história.
Racismo é via de mão única
Há, sim, negros preconceituosos. Há também negros violentos, sem dúvida. A violência e a hostilidade direcionada contra quem é diferente de nós não é uma característica que vem com a cor da pele, claro. Faz parte do que o Homo sapiens tem de humano e imperfeito. O racismo, entretanto, é algo que vai muito além disso. Está ligado a uma tradição de poder e privilégio, que sempre beneficiou o homem branco. Nunca o negro.
Um oceano de estudos deixa muito às claras quem sofre e quem não sofre racismo. E aí não é questão de opinião. São fatos provados pela ciência.
Um estudo de 2009 liderado pela socióloga Devah Pager colocou brancos e negros para se candidatar a 340 anúncios de trabalho em Nova York. Esses candidatos fake foram a entrevistas de emprego vestidos com as mesmas roupas, com o mesmo discurso ensaiado pela pesquisadora e com currículos idênticos. Resultado: os negros receberam metade das ligações de empregadores interessados.
Outro estudo, de 2015, publicado no Journal of Applied Psychology, revelou que professores têm uma tendência maior de ignorar e-mails enviados por estudantes negros. Outro ainda, de 2017, publicado no American Economic Journal: Applied Economics, apontou que anfitriões do Airbnb tendem a recusar mais hóspedes negros.
Pager, a do nosso primeiro estudo mencionado, fez uma análise de duas dúzias de pesquisas relacionando vagas de emprego e cor da pele dos candidatos. Nenhum dos estudos mostrou qualquer tendência de discriminação contra brancos.
Revisionismo nonsense
Parece que é sempre necessário repetir o óbvio, mas as ações identitárias que Risério critica, e aponta como combustível desse “racismo ao contrário”, só existem por causa da necessidade de afirmação de grupos que sempre foram oprimidos. A ideia de uma “Parada do Orgulho Hétero” é ridícula porque heterossexuais não são assassinados, espancados ou expulsos de casa por sua identidade de gênero. Não há uma lei “João da Penha” porque homens não são vítimas de violência doméstica por serem machos.
Mas os críticos do Dia da Consciência Negra compartilham desse nonsense. Como se brancos precisassem de um dia no ano para exaltar sua identidade e pedir tratamento igual. Como se fossem revistados em lojas de shopping por causa da cor clara de sua pele.
Falar em racismo reverso, num país que nunca abandonou a mentalidade de seu passado escravocrata, é uma afronta à população negra, que ainda sofre com o terror de um racismo estrutural provado em estatísticas e nas balas perdidas do noticiário do dia a dia. É também uma forma de contribuir para que a desigualdade e o ódio racial se perpetuem na nossa sociedade.