A engenharia dos sonhos
É possível inserir elementos nos sonhos de uma pessoa – e descobrir o que ela está vendo. Também dá para reforçar o aprendizado, atenuar pesadelos e até influenciar decisões de consumo enquanto dormimos. Conheça os estudos que começam a desvendar o que acontece nos sonhos.
SSabe quando você está na cama, já quase pegando no sono, mas ainda desperto? Está relaxado e meio grogue, mas continua consciente. Vê e sente o que está acontecendo. Mas, aí, algo incrível acontece: após alguns minutos (em noites de insônia, muitos minutos) você simplesmente apaga. Não percebe nada, nem guarda qualquer lembrança de como ou quando adormeceu.
O sono é a parte mais misteriosa da vida. E os sonhos são seu momento mais fantástico – em que coisas incrivelmente reais se misturam com as visões mais malucas, que intrigam a humanidade desde o início dos tempos. A mitologia grega tem uma divindade só para eles: Morfeu, o deus dos sonhos – filho de Hipnos, o deus do sono, e sobrinho de Tânatos, o deus da morte. Dormir é morrer, por algumas horas. Sonhar é viver, em outro mundo.
E a ciência está descobrindo como interferir nesse mundo. Essa história começa em 2017, quando um grupo de pesquisadores americanos, suíços e italianos fez uma descoberta revolucionária. Usando uma máquina de eletroencefalograma (EEG), eles monitoraram as ondas cerebrais de sete voluntários enquanto dormiam (1).
Com essa informação, era possível saber em qual das fases do sono cada pessoa estava [veja infográfico abaixo]. Até aí, nada de mais. Como previsto, os sonhos aconteciam durante a fase REM (sigla para “movimento rápido dos olhos”, em inglês).
Mas os cientistas notaram algo diferente. Eles perceberam que, às vezes, os voluntários apresentavam padrões de atividade cerebral típicos dos sonhos também durante as fases não-REM – nas quais a gente supostamente não sonha. Resolveram acordar as pessoas, naquele momento, e perguntar se elas estavam sonhando. Sim, estavam.
E, o mais intrigante, era um tipo diferente de sonho. Enquanto na fase REM os voluntários tinham sonhos complexos, com situações cheias de detalhes, os sonhos não-REM eram muito mais simples. “Eu vi a imagem de um Buda.” “Framboesas, um pote de framboesas.” “Uma pessoa esperando num carro, talvez fosse eu.” Eram microssonhos.
O passo seguinte veio em 2019, quando pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) criaram um sistema para tentar inserir elementos nesses sonhos não-REM. Ele se chama Dormio e é composto por um aparelho de eletroencefalograma, uma luva com sensores, um computador e uma caixa de som [veja infográfico abaixo].
A geringonça detecta quando a pessoa dormiu, e aí toca algumas vezes uma mensagem de áudio, previamente gravada. “Árvores. Sonhe com árvores”, por exemplo. Os cientistas esperavam alguns minutos, e acordavam os voluntários para perguntar se estavam sonhando, e com o quê.
O sistema foi testado 136 vezes. Em 67% dos casos, a indução funcionou – a pessoa estava sonhando com árvores. Você deve estar pensando: isso não pode ter acontecido naturalmente, por coincidência? Não. Longe disso. Os cientistas também testaram um segundo grupo de voluntários, que não receberam a sugestão onírica. Apenas 1,4% sonhou com árvores.
“O Dormio funciona, e pode ser utilizado para estimular a criatividade e facilitar o aprendizado”, afirma Robert Stickgold, professor de psiquiatria da Universidade Harvard e especialista em neurologia do sono. “A técnica atualiza as estratégias utilizadas por grandes mentes criativas.”
De fato, são conhecidos os casos de muitos gênios, incluindo o pintor Salvador Dalí, o escritor Edgar Allan Poe e os inventores Thomas Edison e Nikola Tesla, que usavam um método parecido ao criado pelo MIT.
Eles tinham o hábito de cochilar segurando um objeto, como uma chave ou uma bolinha de metal, nas mãos. Quando adormeciam e o corpo relaxava, a mão se abria e o objeto caía no chão, fazendo barulho. Isso servia para que eles acordassem – e se lembrassem de seus sonhos, que às vezes traziam novas ideias e sacadas sobre problemas nos quais estavam trabalhando.
“Essas técnicas se apoiam no conceito de incubação de sonhos, largamente utilizado desde a Antiguidade para propiciar sonhos específicos de interesse do sonhador”, explica Sidarta Ribeiro, neurocientista da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor de Oráculo da Noite: A história e a Ciência do Sonho. “Tanto no Egito, na Grécia e em Roma antigas quanto entre populações indígenas atualmente existentes no Brasil, a incubação de sonhos era e continua sendo uma atividade extremamente relevante”, afirma.
Mas há duas diferenças cruciais. A primeira é que o Dormio funciona melhor. Um terceiro grupo de voluntários, que foi instruído pelos cientistas do MIT a pensar em árvores enquanto estava adormecendo, só conseguiu sonhar com elas em 52% das vezes (bem abaixo dos 67% conseguidos pelo sistema). A segunda, e mais importante, é que ele funciona sozinho, não requer esforço da pessoa – pois toca as mensagens quando ela já adormeceu.
Essa possibilidade, de inserir “automaticamente” elementos nos sonhos da população, atiçou o interesse de um setor econômico que inunda a vida moderna e faz de tudo para nos influenciar enquanto estamos acordados: a publicidade.
Sonhando com marcas
Em 2018, o Burger King contratou uma clínica de sono na Flórida para realizar um teste com 100 voluntários, distribuídos ao longo de dez noites. Eles comiam o Nightmare King, um sanduíche com pão verde e aspecto esquisito que a lanchonete havia criado para o Halloween americano, e passavam a noite na clínica. Segundo os médicos que coordenaram a experiência, o índice de pesadelos após comer o lanche foi 3,5 vezes maior do que o normal. Talvez as pessoas só estivessem com má digestão. Bobagem.
Mas, poucos anos depois, as incursões publicitárias sobre os sonhos deram um passo enorme. Em 2021 a Coors, segunda maior produtora de cerveja dos EUA, ficou sabendo dos resultados das pesquisas do MIT, e procurou a universidade para um projeto conjunto, no qual ela tentaria plantar sua propaganda nos sonhos de voluntários.
O MIT não topou, e aí a empresa decidiu fazer por conta própria. Entrou em contato com Deirdre Barrett, psicóloga da Universidade Harvard e especialista em sonhos, e pediu sua ajuda. A empresa diz que tentou “incubar” os sonhos de 18 voluntários, dos quais cinco sonharam com cerveja. 27% de eficácia. Bem abaixo do conseguido pelo MIT, mas mesmo assim considerável. Barrett acabou escrevendo um texto no qual critica o projeto, e afirma que a Coors não seguiu suas instruções.
No final de 2020, a Microsoft desenvolveu um projeto similar para o lançamento do console de videogame Xbox Series X. Como o slogan do produto era power your dreams (“alimente seus sonhos”), ela resolveu tentar inserir elementos dos games nos sonhos de cinco voluntários. O método usado foi parecido com o do MIT. A empresa não divulgou resultados detalhados: somente um vídeo, no qual dá a entender que funcionou.
Em 2018, cientistas chineses conseguiram fazer algo mais profundo: influenciaram as decisões de compra de 92 voluntários enquanto eles dormiam (2).
Nessa experiência, realizada pelas universidades de Pequim e Hong Kong, as pessoas primeiro tinham que escolher suas marcas preferidas de balas, salgadinhos e chocolates, numa lista com 60 opções.
Em seguida, elas tiravam um cochilo rápido, de 90 minutos. Assim que pegavam no sono, os pesquisadores tocavam mensagens de áudio com os nomes de outras marcas.
Mais tarde, quando os voluntários acordavam, os cientistas pediam a eles que selecionassem suas guloseimas preferidas. Resultado: 60% das pessoas escolheram marcas das quais nem gostavam, mas que haviam sido mencionadas enquanto elas dormiam.
Uma experiência semelhante comprovou que é possível reduzir o consumo de cigarros via manipulação de sonhos. Em 2014, um grupo de cientistas do Instituto Weizmann, em Israel, colocou dois grupos de fumantes para dormir (3).
O primeiro grupo foi deixado em paz. Mas o outro foi submetido, enquanto estava sonhando, a uma sucessão de cheiros de cigarro e ovos podres. A ideia era associar uma coisa a outra.
No dia seguinte, os cientistas entrevistaram os voluntários que tinham respirado o mau cheiro. Nenhum deles mencionou os ovos podres. Mesmo assim, sem saber explicar o motivo, todos reduziram seu consumo de cigarros – na semana seguinte, fumaram em média 30% menos.
Então os pesquisadores refizeram o teste: só que durante o dia, com pessoas acordadas. O efeito foi zero. Ninguém passou a fumar menos só porque foi submetido a cheiro de ovo podre enquanto acendia um cigarro. Isso só acontecia via indução onírica.
As técnicas de manipulação de sonhos realmente podem ser poderosas. Por isso, as tentativas de explorá-las comercialmente preocupam os cientistas. No ano passado, um grupo de 40 pesquisadores da área publicou um manifesto (4) pedindo que a exploração comercial dos sonhos seja proibida. Eles querem que as técnicas fiquem restritas a usos benéficos, como reforçar coisas que as pessoas aprenderam durante o dia (mais sobre isso daqui a pouco).
“Os anunciantes sabem que a técnica funciona”, diz Antonio Zadra, psicólogo da Universidade de Montreal, especialista em sono e um dos autores do documento. “Imagine quanto eles estariam dispostos a pagar para projetar imagens sugestivas, meia hora por dia, utilizando um smartphone, um smartwatch, um assistente virtual ou qualquer outro dispositivo conectado que esteja junto ao corpo ou no quarto.” A tecnologia necessária para plantar mensagens publicitárias nos sonhos já existe – e está presente em gadgets que fazem parte do dia a dia.
A indução onírica poderia começar prometendo coisas positivas: um aplicativo de idiomas pediria a sua permissão, por exemplo, para tocar mensagens enquanto você dorme para ajudar você a aprender uma nova língua.
Mas como saber o que ele realmente tocou, já que você estava dormindo? “Imagine se, no meio do sono, você recebe mensagens de cunho político. Não vai lembrar no dia seguinte, mas pode começar a se sentir propenso a votar em determinado candidato”, imagina Zadra. “As informações são codificadas nos sonhos de uma maneira muito mais poderosa do que quando estamos acordados”, afirma.
Segundo ele, a sociedade já deveria estar debatendo a criação de leis para garantir a inviolabilidade dos sonhos. “Não quero que meus netos precisem pagar para ter sonhos livres de anúncios”, diz. “A incubação de conteúdos publicitários nos sonhos me parece uma aberração, uma invasão desmedida do inconsciente por conteúdos banais”, concorda o neurocientista Sidarta Ribeiro, da UFRN.
Conforme a ciência avança, e começa a desvendar os sonhos, fica cada vez mais importante protegê-los de eventuais invasões. Porque, além de induzir alguém a sonhar com determinadas coisas, há estudos mostrando que é possível ir além, e se comunicar com uma pessoa enquanto ela dorme – ou até enxergar, em tempo real, o que ela vê durante um sonho.
Os sonhos lúcidos
Normalmente, você não controla o que faz durante os sonhos, porque não tem consciência de que está sonhando. As situações simplesmente acontecem, e o seu “eu” presente no sonho vai reagindo a elas de uma forma mais ou menos automática. Mas existe uma técnica que permite despertar dentro dos sonhos, e assumir o controle deles: os sonhos lúcidos.
Uma pequena parcela das pessoas tem esse tipo de sonho naturalmente, mas também é possível induzi-lo com uma técnica simples, composta por três etapas.
1) Quando você acordar, antes mesmo de abrir os olhos ou pensar qualquer coisa, imediatamente tente se lembrar do que estava sonhando. Assim que lembrar, escreva. 2) Mentalize, ao longo do dia, coisas legais que você faria se despertasse dentro de um sonho. 3) Faça “checagens de realidade”. Pare o que está fazendo, algumas vezes por dia, e pergunte a si mesmo: “isto é real, ou estou sonhando?”.
Se você fizer essas três coisas todos os dias, poderá começar a ter sonhos lúcidos após uma ou duas semanas. A frase “isto é real, ou estou sonhando?” vai aparecer dentro de um sonho – e, nesse momento, você despertará dentro dele.
A técnica funciona mesmo, como nós comprovamos na pŕatica (veja na reportagem “Sonhos: como controlar os seus”, publicada em abril de 2018 e disponível no site da Super).
Em 2020, um grupo de cientistas de universidades dos EUA, da França, da Alemanha e da Holanda decidiu explorar o fenômeno dos sonhos lúcidos, cujas bases neurológicas ainda não são plenamente compreendidas – ele parece estar relacionado a uma anormalidade nas ondas cerebrais, que passam a trabalhar a 40 Hertz (uma frequência bem mais alta do que nos sonhos normais), e à atividade aumentada do córtex frontopolar e do hipocampo, duas regiões cerebrais relacionadas à chamada “metacognição” (a habilidade que temos de observar e controlar nossos pensamentos).
Na experiência (5), os pesquisadores observaram 36 pessoas que eram capazes de ter sonhos lúcidos, e foram convidadas a dormir no laboratório. Eles combinaram que, quando a pessoa despertasse dentro de um sonho, deveria fazer uma sequência específica de movimentos com os olhos (fechados) para sinalizar isso.
Aí os cientistas verificavam as ondas cerebrais do voluntário, para ter certeza de que ele realmente estava sonhando, e começavam a fazer perguntas simples, do tipo “quanto é 8 menos 6?”, “você estuda biologia?” ou “você sabe falar espanhol?”. A pessoa deveria responder com movimentos dos olhos e dos músculos do rosto, seguindo um código previamente combinado.
Os cientistas repetiram o teste 158 vezes. Em 29, funcionou. Os voluntários deram as respostas corretas – e, ao acordar, eles se lembravam de tudo, inclusive das questões. “No meu sonho, eu estava numa festa, e ouvi vocês fazendo as perguntas. A voz vinha de fora, como o narrador de um filme”, contou um deles. “Eu não sabia como responder a última delas, se eu falo espanhol, porque eu sei um pouco, mas não sou fluente. Resolvi responder ‘não’, e voltei para a festa”, relatou ele. “Eu estava no carro, e aí ouvi a operação matemática. Fiquei orgulhoso porque consegui resolvê-la. Eu sabia que estava sonhando. A voz parecia vir do rádio do carro”, disse outro.
O estudo provou que é possível se comunicar com algumas pessoas enquanto elas estão sonhando (a maioria dos testes bem-sucedidos foi com um grupo de seis pessoas, que tinha mais experiência com sonhos lúcidos). Não funciona com todo mundo. Mas outra técnica, que usa sensores de eletroencefalograma e uma máquina de ressonância magnética, sim – e permite enxergar o que a pessoa está vendo durante os sonhos.
Ela foi demonstrada pela primeira vez em 2013 pela equipe do neurocientista japonês Yukiyasu Kamitani, da Universidade de Quioto (6). Eles pediram que voluntários pensassem em determinadas coisas, como “homem”, “mulher”, “carro” ou “computador”. Com isso, os pesquisadores conseguiram identificar e gravar a “assinatura” elétrica e neuronal daqueles pensamentos e de alguns outros, formando um glossário com 20 termos.
Em seguida, a pessoa ia dormir dentro da máquina de ressonância – e os cientistas conseguiam saber, monitorando sua atividade cerebral, se ela estava vendo algum daqueles 20 elementos no sonho. Para confirmar, os pesquisadores acordavam a pessoa e perguntavam com o quê ela estava sonhando. Resultado: a técnica funcionava, e a máquina conseguia extrair as imagens com 75% a 80% de acerto.
Como o objetivo do estudo japonês era apenas comprovar a viabilidade do método, os cientistas só mapearam aqueles 20 elementos. Mas, em tese, seria possível catalogar muitos outros – e enxergar os sonhos com maior riqueza de detalhes. Kamitani não fez isso, mas continuou as pesquisas sobre sonhos e sono: seu trabalho mais recente, de 2021, investiga os mecanismos neurológicos envolvidos no ato de acordar (7).
Mesmo com todos os avanços, continuamos longe de entender tudo o que acontece dentro de nossas cabeças quando dormimos. “Não entendemos plenamente a função biológica dos sonhos, porque não entendemos a função biológica da consciência”, observa Zadra, da Universidade de Montreal. Mas há uma pista. “Os sonhos parecem ser importantes para a consolidação das memórias e a regulação das emoções”, diz.
Ele está se referindo a duas das teorias: a tese da simulação de ameaças e a tese da reconsolidação de memórias. A primeira afirma que os sonhos são uma espécie de treinamento para situações reais – e é por isso que os pesadelos existem e são tão comuns.
A segunda propõe que sonhar é o resultado, ou um efeito colateral, de um processo natural de eliminação e reforço de memórias que o cérebro realiza durante a noite (quando ele desfaz algumas conexões semipermanentes entre neurônios, apagando memórias consideradas menos importantes, e reforça outras).
Nos últimos anos, alguns estudos levantaram indícios que sustentam as duas hipóteses. Os sonhos podem até ser delirantes, mas não têm nada de aleatório.
Memórias do outro lado
Se você está preocupado com uma prova ou reunião, terá boas chances de sonhar com aquilo na noite anterior – provavelmente na forma de pesadelo. Isso é desagradável, mas também pode ter um lado benéfico. Em 2019, cientistas das universidades de Genebra e Wisconsin demonstraram (8) que os pesadelos agem sobre duas regiões cerebrais relacionadas ao medo, e isso tem o poder de nos deixar menos assustados enquanto estamos acordados.
Os pesquisadores monitoraram a atividade cerebral de 18 voluntários enquanto dormiam. Também acordaram as pessoas para perguntar com o quê elas estavam sonhando. Cruzando as informações, os cientistas notaram que os sonhos considerados assustadores estimulavam duas áreas do cérebro: o lobo insular e o córtex cingulado.
Parecia existir uma relação entre aquilo e os pesadelos. Então, num segundo teste, 89 voluntários acordados foram colocados na frente de imagens assustadoras – enquanto sua atividade cerebral era monitorada. Eles também responderam a um questionário sobre seus sonhos.
Resultado: quem costumava ter mais pesadelos apresentou menos atividade no lobo insular e no córtex cingulado ao se deparar com estímulos assustadores. Os pesadelos estavam funcionando como uma espécie de treinamento, tornando as pessoas mais calmas e preparadas para encarar o medo quando estavam acordadas.
Para o psiquiatra Robert Stickgold, da Universidade Harvard, isso pode ser uma adaptação evolutiva, que tornou nossos ancestrais mais capazes de lidar com ameaças. “Se eu pego um caminho alternativo dirigindo para o trabalho, e o meu carro quase bate num buraco, o sonho não vai produzir um replay dessa memória. Ele vai produzir uma reação emocional àquilo”, diz.
“Se eu estou preocupado com uma prova de geografia, por exemplo, os sonhos vão apontar outras possibilidades, como aquele medo ser resultado de baixa autoestima, ou admiração por uma colega que vai melhor em geografia, ou o fato de que me sinto mais seguro quando a prova é de matemática”, acrescenta Zadra. Ou seja: o pesadelo serve para simular uma ameaça, e ao mesmo tempo nos deixar mais calmos quando efetivamente nos deparamos com ela.
Nada disso, claro, anula o lado ruim dos pesadelos. Há pessoas que sofrem com eles, porque são frequentes ou intensos demais. Esse problema tem até uma definição clínica: é o “transtorno de ansiedade onírica”, ou “transtorno de pesadelos”, caracterizado pelo excesso deles durante a fase REM do sono.
“Pessoas que têm pesadelos recorrentes também podem se beneficiar da tentativa de influenciar os sonhos, seja incubando conteúdos não assustadores, seja adentrando o sonho lúcido, em que o sonhador passa a controlar o desenrolar dos acontecimentos”, diz Sidarta Ribeiro, da UFRN.
Numa experiência (9) feita este ano pela Universidade de Genebra com 36 portadores do transtorno de ansiedade onírica, cientistas usaram uma técnica chamada reativação dirigida de memórias (TMR). É o seguinte. Primeiro, cada pessoa passava por uma sessão de terapia na qual lembrava do seu pesadelo mais comum e tentava reinterpretá-lo, eliminando o vínculo daquilo com a sensação de medo.
Só que, em metade dos casos, os cientistas tocavam um determinado som durante a sessão – e esse som era repetido enquanto a pessoa dormia e sonhava, na casa dela. Resultado: na primeira semana após o tratamento, o grupo que recebeu a TMR teve 2,3 vezes menos pesadelos do que o outro (que só fez a terapia). E esse efeito persistiu: três meses depois, eles estavam tendo 2,7 vezes menos pesadelos que o outro grupo.
Também é possível manipular os sonhos para fortalecer a capacidade de aprendizado. Isso foi demonstrado pela primeira vez em 2010, por um estudo pioneiro da Universidade Northwestern. Os voluntários viam 50 imagens exibidas numa tela, com um som associado a cada uma. Em seguida, eles iam dormir.
Metade das pessoas ouviu novamente aqueles sons enquanto dormia, e se saiu melhor num teste de memorização: se recordou de mais imagens, e lembrou com mais precisão da posição de cada uma na tela. É como se a exposição àqueles sons condicionantes, durante o sono, estivesse reforçando as memórias associadas a eles (no caso, as imagens exibidas durante o teste).
Nos anos seguintes, os psicólogos da Northwestern repetiram e aperfeiçoaram a técnica. Numa de suas experiências mais recentes, em 2019, eles usaram nada menos do que 12 tipos de teste, que avaliavam o raciocínio verbal e espacial (como completar palavras ou formar uma figura movendo apenas dois palitos de fósforo, por exemplo). Os voluntários expostos a sons condicionantes enquanto dormiam conseguiram resolver 55% mais testes do que os outros.
Os sonhos realmente parecem ter efeito sobre nosso aprendizado. E não só em experiências de laboratório; também acontece naturalmente, todas as noites. “Quando você treina guitarra por horas e não consegue tocar um solo direito, mas no dia seguinte acerta de primeira, esse feito é resultado do processamento de memórias realizado durante os sonhos”, diz o psiquiatra Stickgold, de Harvard. Sonhar permite ao cérebro testar hipóteses e conexões, e estabelecer aquelas que vão permanecer – e as que serão descartadas.
Devemos em parte aos sonhos a evolução intelectual da espécie – desde quando não fazíamos a menor ideia do que eles representavam. “Sonhar há de ter sido profundamente perturbador na maior parte do 1,168 bilhão de noites que nos separam de nossas tataravós mais antigas, como a pequena Lucy, fóssil de uma Australopithecus afarensis que viveu há 3,2 milhões de anos no que hoje é a Etiópia”, escreve Sidarta Ribeiro em O Oráculo da Noite. “Quão misteriosa e mágica não terá sido a noite na Idade da Pedra?”, indaga ele.
Os homens das cavernas certamente tinham sonhos bem diferentes dos nossos. Mas a essência era a mesma: uma mistura caótica e arrebatadora de fantasia, perigo, coragem, prazer, medo, alegria e todas as outras coisas que a mente humana pode sentir.
Talvez seja mais sensato respeitar essa estrutura natural, e ter cautela antes de tentar influenciar o que acontece enquanto dormimos. Porque sonhos e pesadelos têm sua razão de ser. Com certeza, não é ajudar a vender hambúrguer.
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Fontes (1) The neural correlates of dreaming. F Siclari e outros, 2017. (2) Promoting subjective preferences in simple economic choices during nap. Sizhi Ai e outros, 2018. (3) Olfactory Aversive Conditioning during Sleep Reduces Cigarette-Smoking Behavior. A Arzi e outros, 2014. (4) Advertising in Dreams is Coming: Now What? R Stickgold e outros, 2021.
(5) Real-Time Dialogue between Experimenters and Dreamers During REM Sleep. K Konkoly e outros, 2020/21. (6) Neural Decoding of Visual Imagery During Sleep. Y Kamitani e outros, 2013. (7) fMRI lag structure during waking up from early sleep stages. S Alcaide e outros, 2021. (8) Fear in dreams and in wakefulness: Evidence for day/night affective homeostasis. V Sterpenich e outros, 2019.
(9) Combined treatment of nightmares with targeted memory reactivation and imagery rehearsal therapy: a randomized controlled trial. S Schwartz e outros, 2022. (10) Targeted Memory Reactivation During Sleep Improves Problem Solving. K Sanders e outros, 2019