E se a humanidade colonizasse Marte?
Baterias nucleares, vida confinada, água extraída dos polos: para turismo ou mineração, as primeiras colônias fariam a Antártica parecer confortável.
“Nosso planeta é um ponto solitário na imensa escuridão cósmica que nos engolfa. (…) A Terra é o único mundo conhecido até agora a abrigar vida. Não há nenhum lugar, ao menos no futuro próximo, para o qual nossa espécie possa migrar.” Esse é um trecho do ensaio Pálido Ponto Azul, um famoso texto de Carl Sagan. Em um vídeo de 2019, o empresário Elon Musk lê e dá risada. “Isso não é verdade. Temos Marte.” A questão é: temos mesmo?
Nas próximas décadas ou séculos, provavelmente será viável do ponto de vista tecnológico estabelecer bases de pesquisa no Planeta Vermelho. Elas serão algo equivalente ao que acontece na Antártida hoje: o continente abriga laboratórios de diversos países, mas não é casa de ninguém.
Uma colonização propriamente dita, com gente morando e fazendo família in loco, exige algum interesse econômico (como a mineração), além da curiosidade científica. Seria difícil financiar o custo exorbitante de estabelecer uma população em Marte sem algum lucro que justificasse. Outra hipótese é uma mudança forçada: ocupar outro planeta porque tornamos o nosso inabitável, como temia Sagan.
Em qualquer caso, a questão central é o quanto poderíamos preparar o terreno para nossa chegada. Fala-se muito em terraformação: tornar Marte habitável na marra, criando uma atmosfera artificial com auxílio de bactérias geneticamente modificadas. Essa só seria uma meta plausível com a tecnologia de um futuro muito distante, e não se aplica à ideia de fugir da Terra por causa de um colapso ambiental. Afinal, se fôssemos capazes de injetar uma atmosfera em um planeta que perdeu a sua há bilhões de anos, com certeza já teríamos dado um jeito de reverter o aquecimento global por aqui. Aí não haveria por que fugir.
O mais provável, então, é que a presença humana no nosso vizinho planetário nasça mesmo é do interesse científico e turístico – e que, de início, o planeta permaneça inóspito e caro de se habitar (só para dar uma ideia, cada tripulante da Estação Espacial Internacional custa US$ 600 milhões por ano).
O quão inóspito? Marte é um inferno gelado. Na linha do equador, no verão, as máximas batem 20 °C, mas a temperatura média do planeta é de 81 °C negativos. O ar marciano é extremamente rarefeito – equivale a uma altitude de 33 mil metros aqui na Terra. São 0,006 atm de pressão atmosférica. Isso equivale a 6 milésimos daquela da superfície do nosso pálido ponto azul.
Nessas condições, a temperatura de ebulição da água praticamente se iguala ao ponto de fusão (no qual o gelo derrete). Ou seja: esqueça o estado líquido: nossa amiga H2O pula direto do estado sólido para o gasoso. Como o corpo humano consiste em, no mínimo, 60% água, um sapiens sem trajes em Marte ferve por dentro. Mal dá tempo de sufocar pela falta de oxigênio. Ou de destruir seu DNA com a radiação solar sem filtros.
O jeito seria viver exclusivamente entre quatro paredes. A água teria que vir congelada dos polos – que ficam a mais de 5 mil km do equador, onde os colonizadores optariam por viver para aproveitar o calorzinho mixuruca. Uma logística difícil, mas não impossível. Outra meta plausível é dar uma de Matt Damon e plantar comida em Marte. O planeta recebe 59% da luz solar que chega à Terra – e o solo, a Nasa já averiguou, contém nutrientes. Num ambiente pressurizado, com uma mãozinha de iluminação artificial, dá para fazer.
O problema é energia. Para o mínimo: manter pressão e temperatura terráqueas no interior dos ambientes; transportar, descongelar e tratar a água; produzir O2 e eliminar CO2. E aqui temos um problemão. Tudo indica que Marte não tem reservas de carvão, gás natural ou petróleo. Esses recursos não renováveis se formaram na Terra como resultado do lento acúmulo de matéria orgânica no solo e no leito dos oceanos. Ou seja: existem porque nosso planeta sustenta vida baseada em carbono há bilhões de anos. E mesmo que Marte tenha sido um oásis pululante no passado, hoje não há oxigênio para queimar quaisquer combustíveis fósseis.
Energia eólica não dá: a atmosfera rarefeita não tem muque para mover turbinas. Energia geotérmica também não: o subsolo de Marte é uma calmaria em relação ao da Terra, seria preciso cavar muito fundo para achar calor. Usinas hidroelétricas… Bem, nem precisa dizer. Energia solar? Talvez. É o que moveu cada rover não tripulado até hoje.
Mas aqui temos um problema de escala. A maior usina solar que existe, em Bhadla, na Índia, seria capaz de atender apenas 2% da demanda do Brasil. Ela ocupa 57 km², a mesma área da ilha de Manhattan. É inviável levar para Marte o tanto de matéria-prima necessária para construir uma infraestrutura dessas. Assim, a esperança seria energia atômica. Um reator pode caber num foguete e seu combustível dura um tempão: um submarino nuclear da classe Los Angeles, da Marinha americana, só precisa recarregar a cada 33 anos. De fato, a nova missão da Nasa, a Perseverance, usa uma bateria nuclear.
Em suma: estabelecer uma civilização viável em Marte, mesmo que na forma de uma pequena colônia, é um processo de décadas, que exigiria centenas de viagens. Os habitantes teriam uma vida precária – na Terra, a gente geralmente não morre se faltar luz. Lá para o século 22, salários exorbitantes talvez atraíssem funcionários aventureiros para trabalhar na recepção de turistas milionários.
Para tornar o cotidiano marciano mais atraente e similar ao terráqueo, o caminho mais plausível é a biologia sintética. Conforme estudam o DNA de extremófilos – micro-organismos com tolerância altíssima a radiação, calor, pressão etc. –, os geneticistas obtêm uma biblioteca de genes que permitem a sobrevivência em condições inóspitas e metabolismos que não dependem de oxigênio ou da luz solar.
Assim, torna-se possível montar, em laboratório, bactérias talhadas sob medida para viver e modificar Marte. A Terra, há uns 2 bilhões de anos, tinha pouco ou nenhum oxigênio na atmosfera – ele veio todo após a evolução da fotossíntese pelas primeiras cianobactérias. Na época, quase todos os micróbios que já estavam aqui (para os quais o oxigênio era tóxico, pois estavam habituados a outro ar) foram extintos. Ou seja: seres vivos são capazes de gerar transformações em escala planetária. Em tese, podemos usar isso a nosso favor.
Para uma civilização que dessaliniza água do mar e ocupou a Groenlândia, essa parece uma questão de “quando”, e não de “se”. Mas é um “quando” ambicioso.
E outros planetas? Que tal Vênus? Os problemas lá são opostos aos de Marte: a atmosfera – composta basicamente de dióxido de carbono com pitadas de outros gases tóxicos – é 92 vezes mais densa que a da Terra. Se, em Marte, a água se transforma de gelo em vapor, em Vênus ela é só vapor, mesmo: a temperatura média é de 464 ºC. Mais que qualquer forno doméstico, e o suficiente para derreter chumbo.
É um ambiente tão extremo que as sondas enviadas para a Estrela da Manhã duram menos de um dia. A recordista é a Venera 13, de 1981, que funcionou por 127 minutos até ser destruída por superaquecimento. Diante desse cenário apocalíptico, as propostas para a colonização de Vênus são mais exóticas que as marcianas. Há quem fale em viver em um balão gigante flutuando exatamente na faixa de altitude em que as condições atmosféricas são parecidas com as da Terra.
A uma distância bem grande da zona habitável, há as luas dos gigantes gasosos como opção ainda exótica. Em Europa e Ganimede, que orbitam Saturno, água não falta. De fato, elas provavlemente têm oceanos líquidos sob a crosta de gelo. O problema é que a pressão no interior dessas águas subterrâneas seria muito mais gostosa que a da atmosfera venusiana – enquanto a superfície acima da casca de gelo apresenta temperaturas de menos de 160 ºC, atmosfera ausente e gravidade menor que a Lua. Dificilmente uma escolha melhor que Marte.
Por enquanto, o jeito é seguir o conselho de Sagan. E cuidar do planeta que já está terraformado: a Terra.