Gene neandertal pode tornar algumas pessoas mais sensíveis à dor
Você acha que sente mais dor que o normal? Pode ser que você faça parte do seleto grupo de humanos que herdou uma mutação dos nossos parentes extintos.
Você tem a impressão de que sente mais dor que o resto das pessoas? Talvez não seja apenas impressão, e sim uma péssima herança de seus ancestrais já extintos. Um novo estudo publicado na revista Current Biology identificou que uma mutação em um gene nos neandertais, hominídeos que coexistiam com os Homo sapiens há milhares de anos, aumenta a sensibilidade à dor em quem ainda carrega a característica em seu material genético.
Extintos há cerca de 40 mil anos por razões não tão claras, os neandertais deixaram suas marcas na genética da humanidade ao procriar com os Homo sapiens. Hoje, sabemos que alguns genes de origem neandertal influenciam em diversas características nos humanos, até mesmo a gravidade dos casos de covid-19, como segeriu um estudo recente. Atualmente, cientistas possuem alguns genomas de neandertais sequenciados em alta qualidade, o que permite identificar mutações únicas que possam ter sido herdadas por humanos modernos.
Foi com essa base de dados que cientistas do Instituto Max Planck, na Alemanha, descobriram a mutação relacionada à dor. Na verdade, são três alterações distintas no gene SCN9A, responsável por codificar a proteína NaV1.7, cuja função, por sua vez, é gerar o sinal elétrico inicial que será enviado para a medula espinhal e depois para cérebro, onde é interpretado como uma sensação desagradável de dor.
A descoberta foi feita analisando o genoma completo de três amostras de DNA neandertal encontradas em cavernas na Rússia e na Croácia (esses hominídeos viviam na Europa e na Ásia). Todas as três amostras apresentavam a variante duplicada do gene, o que indica que a característica era generalizada entre a espécie. Mas a mesma mutação é bastante rara em humanos: só 0,4% dos participantes do UK Biobank (um enorme banco de dados genéticos de mais de 500 mil britânicos) apresentavam uma cópia do gene nessa forma, e nenhum tinha duas cópias. As pessoas com essa variante, não por acaso, relatavam sentir mais dor que a média entre todos os pesquisados.
Para entender como o mecanismo funciona a nível molecular, os cientistas expressaram essa mesma mutação em células animais e humanas em laboratório. Não é novidade nenhuma que a proteína NaV1.7, codificada pelo gene em questão, está ligada ao processo de dor: a proteína é um canal de sódio, responsável por transportar íons que darão início a uma sinal elétrico. Mais especificamente, ela age nos nervos do nosso corpo, regulando quando iniciar um sinal de dor bem como sua intensidade. Pessoas com mutações extremamente raras que desabilitam essa proteína podem desenvolver uma condição em que não sentem dor, enquanto outras alterações no seu funcionamento podem levar à um quadro de dor crônica.
No experimento, a equipe comprovou que as células que tinham o gene mutado expressavam uma maior atividade da proteína NaV1.7 – ou seja, mais sinais de dor sendo enviados em uma intensidade maior. Isso explica porque seres humanos com esse gene também são mais sensíveis à dor do que o normal.
Vale lembrar, porém, que a dor é um fenômeno bastante complexo, que não se resume na atividade da proteína NaV1.7. Ela só dá o pontapé inicial: o sinal elétrico ainda é enviado pela medula e chega ao cérebro, onde é interpretado, e todo esse caminho tem suas nuances moleculares que influenciam na sensação final. Por isso mesmo a equipe se mostrou cautelosa e não afirmou categoricamente que os neandertais sentiam mais dor que os humanos – afinal, não sabemos os detalhes de todo o processo da dor nos nossos parentes extintos. O que podemos afirmar é que o “gatilho” para a sensação, que é a ativação da proteína NaV1.7, acontecia mais facilmente neles (e ainda acontece em quem carrega o gene) do que acontece nos Homo sapiens comuns.