Morcegos carregam dezenas de vírus, mas são imunes a eles. Por quê?
O coronavírus, como muitos antes dele, pode ter vindo de morcegos. Tais animais são casas ideais para micróbios, e a explicação está em seu sistema imune.
Não existe um coronavírus só. Existem vários. O nome não se refere a um vírus específico, mas a um grupo de vírus que têm características em comum e foram responsáveis por várias crises de saúde pública nas últimas décadas – o surto chinês atual é só o exemplo mais recente.
Entre 2002 e 2003, a síndrome respiratória aguda grave (que ficou conhecida pela sigla SARS) também teve epicentro na China. Foram 8 mil infectados e 800 mortos em 17 países. Era um coronavírus, parente próximo do responsável pela crise atual. Anos depois, em 2012, a Arábia Saudita parou graças à MERS (dessa vez, a sigla significava síndrome respiratória do Oriente Médio). De novo, a culpa era de um coronavírus; houve 2,5 mil vítimas, 850 fatais.
Doenças epidêmicas virais como estas costumam ser zoonoses, isto é: os agentes causadores – como vírus, bactérias, protozoários, fungos etc. – originalmente parasitavam outros animais. O advento da pecuária há aproximadamente 10 mil anos aumentou a proximidade física entre seres humanos e os bichos que nos forneciam comida, leite, ovos e companhia. Vacas, cães e galinhas carregam seus próprios micróbios, que frequentemente aprendem a infectar também o Homo sapiens. De 1.415 patógenos conhecidos, 61% foram emprestados de outras espécies.
Uma dessas espécies são os morcegos. Eles definitivamente não são mascotes, e só em raros contextos culturais se tornam comida, mas a silhueta de suas asas recortadas e dentes afiados se embrenhou firmemente no imaginário popular. A maior parte das crianças pensa que todo morcego bebe sangue; na realidade, só três dentre as mais de mil espécies são vampiras de vocação (e, para derrubar outro preconceito, só um em cada 200 espécimes é infectado pelo vírus da raiva).
A fama gótica é injusta. Os morcegos são nossos aliados em muitas atividades, e são um dos objetos de estudo mais fascinantes da biologia. Nas palavras de James Gorman no New York Times, eles “comem insetos transmissores de doenças às toneladas, e são essenciais na polinização de muitas frutas, como bananas, abacates e mangas. Além disso, são um grupo incrivelmente diverso, que perfaz cerca de um quarto do total de espécies de mamíferos”.
Os morcegos, porém, são repositórios pululantes de vírus. Ebola, Nipah, Melaka, MERS e SARS todos pegam carona neles sem afetá-los. Ainda não há provas, mas é bem provável que o coronavírus atual também tenha chegado à nossa espécie pegando carona em morcegos. Isso é possível porque o sistema imunológico desses animais tolera tais agentes infecciosos com bem mais parcimônia que o nosso e o dos demais mamíferos.
Em um artigo publicado em fevereiro de 2019 na Escola de Medicina Duke-NUS, em Singapura, um grupo com dezenas de pesquisadores identificou que a proteína NLRP3, nos morcegos, é produzida pelas células em pequena quantidade e em uma versão menos sensível que a carregada por nós. Essa proteína é uma das responsáveis por desencadear a resposta inflamatória dos mamíferos a micróbios que adentram o corpo.
Vírus não são propriamente seres vivos. É mais correto defini-los como conjuntos complexos de moléculas capazes de produzir cópias de si mesmas usando o maquinário do hospedeiro (leia mais sobre isso neste texto). Normalmente, quando um vírus sequestra nossas células, ele ativa uma resposta inflamatória violenta.
Proteínas de sinalização chamadas citocinas atraem os sentinelas do sistema imunológico para o local da invasão; o fluxo de sangue por lá aumenta para permitir que nossa polícia microscópica atenda ao chamado mais rápido, gerando vermelhidão e inchaço. Se tal procedimento é mais relaxado nos morcegos, é porque a capacidade de pegar leve com os vírus, bactérias e afins os ajuda a sobreviver – o que soa contraditório. Por que um sistema imune pregiçoso seria melhor que um pavio curto?
Temos algumas hipóteses para responder a essa pergunta. Em outro artigo, este de 2018, pesquisadores do Instituto Wuhan de Virologia, na China, explicam que os morcegos têm necessidades energéticas muito mais altas que as dos demais mamíferos. Voar, afinal, queima muitas calorias. Isso os forçou a evoluir uma bioquímica diferente para aumentar a eficácia do processamento de combustível no interior de suas células, gerando subprodutos que não são verificados no metabolismo de um ser humano, gato ou cão.
Tais subprodutos são tóxicos e danificam o DNA desses animais. Pedacinhos da molécula que guarda o material genético acabam sendo liberados no interior do organismo e chamam a atenção do sistema imunológico como se fossem – veja só, que coisa doida – vírus. Se as células de defesa do morcego ficassem em prontidão constante, ele passaria o tempo todo atiçando reações inflamatórias contra pedaços de si mesmo. Um eterno alarme falso.
Isso é algo desgastante para o corpo. De fato, muitos dos sintomas que você tem quando está doente são seu corpo tentando combater a doença, e não a doença em si. Um morcego que passasse o tempo todo em alerta máximo morreria atacado pelo próprio sistema imunológico, o que não é lá muito bom para a seleção natural.
Assim, os morcegos dedicam atenção apenas parcial aos vírus, mantendo-os sob controle sem lançar ataques de larga escala. Isso permite que eles se tornem reservatórios ideias para esses parasitas. Abrigos seguros a partir do qual eles podem pular para outros organismos.
Isso significa que devemos lutar contra morcegos? De jeito nenhum. Como já dito, eles são animais essenciais não só para várias atividades humanas como também para a manutenção de incontáveis ecossistemas. Errados estamos nós, que destruímos os habitats desses bichos – e, veja só, até comemos eles quando oportuno. Sabe-se que faz tempo que zoonoses frequentemente têm origem em morcegos. Resta tomar precauções.