O homem decifrado
Os franceses tomam a dianteira do Projeto Genoma, um esforço mundial para localizar cada um dos cem mil genes responsáveis pelo funcionamento do corpo humano. Cerca de 5% desse monumental empreendimento está pronto.
Flávio Dieguez, Gisela Heymann e Sônia Goldfeder
O segredos da vida, de acordo com a genética, se produzem a uma prosaica combinação de quatro substâncias chamadas adenina, citosina, e timina, abreviadas pelas letras A, C, G, T. Com elas se constroem os genes que por sua vez, organizam a montagem de milhões de outras substâncias para dar forma aos organismos vivos — qualquer tipo de animal, planta ou micróbio existente no planeta. Daí o entusiasmado que cerca o Projeto Genoma, um esforço mundial para ler cada “letra”dos 50 000 ou 100 000 genes do homem. Cerca de 5% desse monumental empreendimento está pronto, o que é pouco, argumentam alguns cientistas. Em casos, porém, o ritmo de leitura está se acelerando de modo surpreendente, e pode alterar as expectativas a curto prazo.
Incrustados na pequena cidade de Evry, na periferia de Paris, os 3600 metros quadrados do prédio do Genethon abrigam alguns dos mais estranhos robôs já construídos. Sua função é imitar a técnica e os conhecimentos de um químico, e analisar pedaços de genes humanos anteriormente inseridos no núcleo de células de levedura — microorganismos aparentados ao fermento de pão. Multiplicadas velozmente em grandes tanques especiais, as leveduras engrossam o caldo de genes até que o minúsculo volume de cada fragmento possa ser manipulado com precisão. Com ajuda dessas máquinas inteligentes, apenas doze pessoas fazem trabalho de uma centena de profissionais.
E fazem bem feito: no início deste ano, o Genethon surpreendeu geneticistas do mundo inteiro com o anúncio de que 25% de todos os genes humanos haviam sido localizados. Isso é cinco vezes mais do que o total de genes já decifrados, e celebrizou o atual diretor do Genethon, Daniel Cohen, que aos 41 anos, está subvertendo toda a estrutura do projeto Genoma, a mais emocionante aventura científica do século. “O que temos a mais que os outros são nossas máquinas”, afirmou ele em entrevista exclusiva a SUPERINTERESSANTE, no início de junho. Mas não é bem assim. Antes de mais nada, seu laboratório tornou-se modelar devido ao método original de levantar seus próprios financiamentos junto à população. Ao que tudo indica, existe sólido apoio para maciças campanhas públicas desse tipo, das quais participam artistas, esportistas e cientistas de renome. Tanto que elas permitiram pagar a constução do sofisticado laboratório e hoje cobrem 70% do orçamento anual do Genethon. Contribuem nada menos que 2,5 milhões de famílias, o que equivalente a um quinto da população francesa. Outro detalhe importante é que o laboratório centraliza todo a trabalho nacional, enquanto nos Estados Unidos, por exemplo, o esforço se reparte entre inúmeras instituições.
Foram essas condições preliminares que levaram ao desempenho singular dos franceses, que agora têm, talvez as mais modernas instalações do mundo na área de genética, e certamente as únicas capazes de decifrar genes em escala industrial. É preciso cautela ao avaliar os resultados, pois o fato de se terem localizados os genes não significa que todas a suas letras foram lidas. A simples localização, porém, já constitui uma proeza, especialmente quando é feita em massa. Para se ter uma idéia, a quantidade de material genético existente em cada célula humana é da ordem de 3,5 bilionésimos de gramas (3,5 divididos por 1 bilhão), embora seja o equivalente a 5 ou 6 milhões de genes. E isso é só o começo da confusão, pois além de existirem em minúsculas proporções, os genes se encontram nas células emaranhados em pacotes densos, com meio milionésimo de milímetro de diâmetro cada um, chamados cromossomos.
O homem possui 23 cromossomos (cada um deles com um par), mas esse número varia bastante de espécie para espécie. Até 70% da massa dos cromossomos consiste em proteínas protetoras (as históricas e anti-históricas) e a maior dos outros 30% representa ARN, substância usada para fazer cópias dos genes que entram em ação no organismo ( a cópia visa proteger o original). Enfim, na pequena fração restante, encontra-se a matéria-prima dos genes — o ADN, ou ácido desoxirribonucléico. Mapear os genes significa descobrir a forma de cada pedaço de ADN existente nas células de um ser vivo. Uma vantagem é que tais pedaços são sempre os mesmos — são justamente as moléculas relativamente pequenas denominadas adenina, citosina, guanina, timina.
Essas unidades são coletivamente batizadas de nucleotídeos. Colados uns aos outros, os quatro tipos de nucleotídeos se repetem inúmeras vezes até formar a longuíssima molécula de ADN enrosca nos cromossomos. No homem, por exemplo, a fieira reúne 3,5 bilhões de nucleotídeos. Quando se que saber o que faz um gene, deve-se descobrir exatamente quantos nucleotídeos ele possui e em que ordem estão dispostos. Não é fácil empreender a análise completa desses micropersonagens das células. Em última instância, elucubram os cientistas, os nucleotídeos humanos começaram a ser criados há 3 bilhões de anos, no corpo dos primeiros microorganismos de uma única célula. Já então, essas pequenas moléculas se agrupavam na forma de genes para controlar o crescimento dos microorganismos, durante a fase reprodutiva e, depois disso, para organizar o seu funcionamento. À medida que os genes se transformam, o mesmo aconteceu com as formas vivas.Ler os genes, portanto, não ajudará somente a conhecer as doenças hereditárias, como pode parecer: será como abrir o livro da própria história da vida e da evolução do homem.
Os primeiros genomas inteiramente mapeados pertenciam a microorganismos como os vírus MS2 e SV40, donos, no máximo, de 6 000 nucleotídeos. No homem, uma avaliação conservadora do mapeamento realizado até agora dá conta de quase 2 500 genes, contra apenas 500 localizados há três anos. O número atual representa cerca de 5% sobre um total de 48 000 genes (embora o homem tenha nucleotídeos suficientes para montar 6 milhões de genes, a maior parte são simples peças auxiliares). Nessa lista, é claro, não estão incluídos os genes localizados pelo Genethon, nem a avaliação otimista de Daniel Cohen, de que até o fim do ano fará o mapa de 90% dos cromossomos.
A proeza de Cohen foi colocar uma espécie de marca química em cada gene. Assim, embora não saiba como são os genes, é capaz de dizer com exatidão onde eles se encontram num cromossomo. “É como o mapa de uma cidade com suas ruas.” Pronto esse primeiro rastreamento, pode-se começar a procurar detalhes como casas e monumentos que interessam. Ou seja, determinar a seqüência de nucleotídeos dos genes mais importantes. Essa será a referência básica para descobrir os defeitos que levam às doenças genéticas. Tais efeitos são, grosso modo, nucleotídeos fora do lugar. Todo o funcionamento de um gene pode mudar por erro num único nucleotídeo entre milhares.
Se esse programa de trabalho funcionar bem, prevê Cohen, talvez seja possível conhecer todas as doenças hereditárias num prazo de vinte anos; e em mais trinta se terá aprendido a curá-las. Antes disso, no entanto, se espera encontrar um mar de informações relevantes, ainda que incompletas, sobre os males. Esse tipo de investigação é prioritário na maioria dos laboratórios, já que muitos desses dados parciais podem se transformar em produtos comerciais valiosos.
Um exemplo são os testes clínicos às vezes, um pequeno grupo de nucleotídeos pode ser usado para denunciar um defeito, e diagnosticar uma doença, mesmo que o gene em questão não seja bem conhecido. Auspiciosa, tal possibilidade tem causado enorme confusão, em meio à qual se diminuiu um ilustre diretor da Organização do Genoma Humano (HUGO, na sigla inglesa), que administra o esforço mundial de pesquisa. Co-descobridor da estrutura básica do DNA, na década de 50, James Watson deixou a chefia do Projeto nos Estados Unidos, em abril passado, acreditando ser impossível resolver os problemas existentes. O mais grave é o fato de muitos fragmentos de DNA estarem sendo patenteados.
Banco de dados é usado por quase 4000 cientistas
Assim, caso essas seqüências venham a ter valor médico, poderão ser vendidas. Normalmente, isso não teria importância, mas a espinha dorsal do Projeto é a troca de informações entre os laboratórios como meio de acumular conhecimentos. Não foi outra a razão de se ter criado um banco de dados oficial, o Genoma Database, que desde setembro de 1990 pode ser acessado diretamente por qualquer cientistas, via computador (há cerca de 4000 cadastros). Esses sistema pode ser prejudicial se as seqüências se tornarem segredo comercial, alegam muitos cientistas. Cohen, por exemplo, faz questão de manter seus dados à disposição de todos, sem restrição.
“Descobertas não podem ser patenteadas. Por acaso a América foi patenteada por Colombo? Além disso, há uma questão moral: não podemos patentear pedaços do corpo humano.” O próprio presidente da HUGO, o inglês Walter Bodmer, acredita que a pesquisa pode ser prejudicada se fragmentos de função desconhecida forem patenteados. Apesar disso, inúmeras patentes têm sido concedidas, e os advogados do principal órgão americano de saúde pública, o NIH, argumenta que essa prática não foge às regras normais da sociedade americana. A questão, portanto, parece longe de se encerrar.
Mais recentemente uma outra preocupação começou a tomar forma: as informações genéticas poderiam se tornar fonte de discriminação? Seria possível, por exemplo, usar testes-diagnósticos para descobrir se uma pessoa está predisposta a uma doença e, com base nisso, negar-lhe emprego. Para que isso não aconteça, todos deveriam ter direito de se recusar a fazer testes, alertam alguns epdemiologistas. Há uma hipótese ainda mais sutil: o estado de saúde das pessoas tende a piorar quando descobrem que vão desenvolver, por exemplo, o mal de Huntington, que pode levar à demência e à paralisia.
Mesmo quando se sabe que essa doença não será grave, a tensão e a ansiedade dos futuros pacientes alcançam níveis máximos, mostra um estudo realizado na Inglaterra. Em entrevista à revista New Scientist, o sociólogo inglês Hilary Rose afirmou que a sociedade não está preparada para uma tecnologia que vai propiciar meios sem precedentes de revelar a vida futura dos indivíduos. Sua conclusão: “Temos que avançar devagar, pois ainda há muito que conversar e refletir”.
Cromossomo 21: primeiro a ser inteiramente lido
E o progresso mais rápidos se dá justamente nos genes associados a doença, como revela um balanço do geneticista Bertrand Jordan, do Centro de Imunologia do INSERM-CNRS francês. Recém-chegado de uma viagem aos Estados Unidos, Inglaterra e Japão — durante a qual visitou 80 dos 250 laboratórios ligados ao Projeto Genoma —, apresentou SUPERINTERESSANTE um resumo do que viu. Ele antecipou que o primeiro cromossomo inteiramente mapeado seria o 21, não só por ser pequeno, mas principalmente por que já se sabia que está associado a duas doenças importantes: mongolismo e mal de Alzheimer, Pelo mesmo motivo, o segundo cromossomo mais visado é o X. De fato, logo após assa entrevista, Daniel Cohen anunciou o mapeamento de 95% do cromossomo 21,20% do X e 50% do Y.
Jordan conta que há três anos nem se imaginava que esses mapas fossem possíveis; a velocidade com que estão sendo feitos, assim, se transformou numa grata surpresa. Por outro lado, se achava fácil obter seqüências completas de genes, mas dificilmente foram imensas. Só agora o trabalho está recomeçando, diz o cientista. E acrescenta que boa parte do mérito cabe aos americanos, que preparam o terreno com pesquisas sistemáticas nas últimas décadas. “Aprendemos mais biologia nos últimos quinze anos do que desde o começo do século.´
Isso, sem contar a possibilidade de avanços mais amplos — por exemplo, no campo da evolução humana. Saúda-se agora, especialmente, a chance de se decifrar a incrível variedade dos tipos humanos, dos orientais e africanos aos europeus e americanos. Os genes encontrados em diversas populações são quase desconhecidos. André Langaney, antropólogo do Museu do Homem, Paris cita como exemplo os antiqüíssimos aborígines australianos, os ionomami brasileiros e esquimós. Mas eles poderiam responder a muitas dúvidas persistentes sobre o aparecimento de tantos tipos diferentes no planeta. É o que espera Langaney: “em dez anos, haverá ótima base para o conhecimento da diversidade da nossa espécie”.
Flávio Dieguez, São Paulo; Gisele Heymann e Sônia Goldfeder, Paris.
Para saber mais:
(SUPER número 1, ano 1)
O livro da vida, edição integral
(SUPER número 6,ano 2)
(SUPER número 12, ano 7)
SUPER número 10, ano 8)