O mistério da vida
Os cientistas ainda não conseguiram chegar a um consenso sobre a origem da vida. Mas descobertas estão trazendo revelações surpreendentes sobre o assunto
Quem passa diariamente pela avenida Paulista, uma das mais movimentadas de São Paulo e do país, já deve ter notado. Bem ali, no mínimo espaço que restou entre os granitos do meio-fio, brotam diariamente pequenas plantas que ameaçam esparramar-se pela avenida, aproveitando falhas na pavimentação. E não é só lá que a vida irrompe num ambiente aparentemente hostil. Na Quinta Avenida de Nova York, símbolo da civilização de concreto, uma flor conseguiu recentemente desabrochar em meio à fúria do tráfego, da indiferença humana e da poluição. Improvável, não?
Imagine agora outro cenário: a inóspita região do fundo dos oceanos, um mundo de águas ferventes e envenenadas por compostos sulfúricos, o cádmio e o arsênico liberados pelo magma, o coquetel de metais liqüefeitos que jorra das camadas profundas do planeta. Enfim, um verdadeiro inferno com temperatura acima dos 400 graus centígrados, calor suficiente para extinguir em pouco tempo a fauna e a flora de toda a superfície terrestre. Mas acredite: mesmo aí, é possível encontrar colônias de estranhos micróbios que se alimentam de substâncias altamente tóxicas, seres que estão na tênue linha que separa a vida da não-vida. No outro extremo do termômetro, nas águas gélidas das regiões polares, amostras de gelo retiradas do fundo do lago Vostok, na Antártida, também revelaram a presença de inúmeros microrganismos, derrubando assim o antigo consenso dos cientistas de que nenhum tipo de vida poderia prosperar em local tão frio e carente de nutrientes.
A vida, enfim, é mais resistente do que se imaginava. Mesmo assim, é provável que nem sempre tenha havido vida no Universo. Em algum momento, isso que chamamos de vida surgiu.
Mesmo parecendo tão natural, os cientistas ainda estão longe de chegar a um consenso quando o assunto é a origem da vida. Afinal, séculos de pesquisas não foram suficientes para que alguém conseguisse reproduzir, em todos os seus detalhes, as condições reais da Terra primitiva. “A mais complicada máquina inventada pelo homem não passa de brinquedo diante do mais simples organismo”, escreveu o biólogo americano e prêmio Nobel de medicina George Wald. “A maior dificuldade está na minuciosa ajustagem de uma molécula na outra, proeza que não está ao alcance de nenhum químico.”
O que é vida? Descrita nos dicionários como “um conjunto de propriedades graças às quais animais e plantas se mantêm em atividade”, as definições da vida até hoje sempre foram genéricas. Na linguagem da maioria dos cientistas, a melhor definição de vida continua sendo a de um sistema químico auto-sustentado capaz de uma evolução darwiniana, por mutação aleatória. Traduzindo: uma combinação de substâncias que, em algum momento, conseguiu uma forma particular de se replicar, mudar e evoluir dando origem a todas as espécies vivas – como previu no século 19 o naturalista inglês Charles Darwin. “Mas essa explicação é também limitada”, diz o pesquisador Arnaldo Naves de Brito, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas (SP), atualmente envolvido em um estudo avançado sobre a formação dos “tijolos da vida”, como são chamados os compostos orgânicos mais simples.
“É possível que tenha existido uma vida celular primitiva, baseada em proteínas, que ainda não tinha desenvolvido uma forma de replicação dos seres vivos atuais, baseada em ácidos nucleicos”, diz Arnaldo. Segundo o pesquisador, essas células não teriam sido capazes de uma evolução darwiniana. Para embaralhar ainda mais as velhas definições, a descoberta de seres extremamente simples encontrados em reentrâncias de rochas, em pequenas bolhas de água quente cinco vezes mais salgada que a do mar e em poças de ácidos e metais pesados, inclusive com radiações, revelaram também que esses seres existem há pelo menos 4 bilhões de anos.
Descobertas como essa podem mudar radicalmente tudo o que sabemos até agora sobre a vida, seu início e sua razão de ser. Da mesma forma que a teoria da relatividade colocou de cabeça para baixo nossos conceitos de tempo e de espaço, essas pesquisas podem mudar a velha definição de vida. É o caso de uma nova teoria formulada pelos pesquisadores William Martin, da Universidade Heinrich-Heine, de Düsseldorf, na Alemanha, e Michael Russel, do Centro de Estudos Ambientais de Glasgow, na Escócia. Segundo eles, os seres vivos tiveram o seu ponto de partida em “sistemas inorgânicos”, configurados como pequenos compartimentos de rochas com ferro e sulfito (sal que contém enxofre e sem oxigênio). Até aqui, acreditava-se que a vida teria se iniciado de reações químicas precipitadas pelo calor do sol e por tempestades elétricas na atmosfera primitiva, ainda pobre em oxigênio.
O processo teria produzido moléculas simples – principalmente aminoácidos – que constituíram a “sopa primordial” dos oceanos e lagos onde, mais tarde, seriam sintetizadas as proteínas, gorduras e carboidratos dos primeiros seres unicelulares. As moléculas orgânicas, portanto, teriam precedido a formação celular. Mas a teoria de Martin e Russel inverte essa ordem, considerando que “células inorgânicas” antecederam as moléculas orgânicas e incubaram a vida, como sugerem os sistemas de ferro e sulfito. “Confinados nesses compartimentos, os compostos sulfúricos brotados da crosta do fundo do mar tornaram-se concentrados e assim puderam acelerar as reações químicas que produziram moléculas complexas, como as proteínas e o material genético,” diz Martin. O cientista agora se esforça para recriar essas condições em laboratório.
Uma das implicações dessa nova tese, se ela estiver correta, é o aumento da probabilidade da existência de vida em outros planetas – já que, até então, as temperaturas extremas e a abundância de gases tóxicos eram vistas como empecilhos para o surgimento da vida em outras regiões do cosmo. Mas a descoberta dos seres conhecidos como archaea estão mudando isso. A existência dessas criaturas microscópicas foi confirmada, na década passada, durante prospecções realizadas em rochas vulcânicas do estado de Idaho, nos Estados Unidos, e em minas da África do Sul, a mais de 2 400 metros de profundidade. Os archaea compõem um reino biológico próprio, diferente do das bactérias, classificadas como seres procariontes (organismos formados por uma única célula sem membrana nuclear), e das demais formas vivas, incluindo fungos, plantas e humanos, classificadas como eucariontes (formados por uma ou muitas células providas de membrana nuclear).
Por mais estranho que possa parecer, esses seres inóspitos se alimentam de hidrogênio, compostos sulfúricos, manganês e outros metais pesados, dispensando totalmente a fotossíntese e a luz solar como fonte de energia. “Os archaea prepararam a base da vida, oxidando derivados de enxofre, metano, ferro e outros metais”, diz John Baross, da Escola de Oceanografia da Universidade de Washington. Sua descoberta abalou antigas hipóteses, entre as quais a suposição de Charles Darwin e outros pesquisadores de que o ponto de partida da vida se deu na superfície de mares e lagos ricos em nutrientes.
A idéia de que a vida brota da matéria inanimada não é exatamente uma novidade. A diferença é que a nova concepção de geração espontânea por evolução parte de um raciocínio bem diverso das fantasias que sustentaram, por mais de 2 200 anos, uma tosca teoria sobre a origem dos seres vivos. De Aristóteles, na Grécia antiga, até a primeira metade do século 19, imaginou-se que animais complexos, como moscas, sapos e ratos, podiam ser gerados no meio do lixo, da matéria orgânica em decomposição e da lama. No século 17, o naturalista belga Jan Baptiste van Helmont chegou mesmo a difundir na Europa uma receita para a produção de ratos e escorpiões a partir de uma camisa suada, germe de trigo e queijo. A idéia começou a ruir quando, na mesma época, o italiano Francesco Redi demonstrou em uma experiência simples que larvas de moscas só surgiam em carne podre quando esta ficava exposta a moscas adultas, que ali depositavam seus ovos.
A carne acomodada em frascos tampados com gaze jamais geravam larvas, que nesse caso apareciam sobre a gaze, onde moscas adultas tinham pousado. Os estudos do químico francês Louis Pasteur sobre bactérias, que deram início à microbiologia, sepultaram a velha crença por volta de 1860.
A moderna teoria da geração espontânea começou com algumas pistas levantadas ainda no século 19, quando algumas substâncias orgânicas, como a uréia, foram sintetizadas pela primeira vez em laboratório. Então, logo surgiu a pergunta óbvia: se pudéssemos reproduzir as condições ambientais da Terra primitiva, não seria possível fabricar moléculas orgânicas complexas, como o fez a natureza? A constatação de que todos os seres vivos possuem os mesmos blocos construtores – açúcares simples, gorduras, 20 tipos de aminoácidos, quatro nucleotídeos de DNA e quatro de RNA – atiçou definitivamente essa idéia, fundamental na hipótese apresentada pelo bioquímico russo Aleksandr Oparin no seu livro A Origem da Vida, escrito em 1936.
De acordo com Oparin, aminoácidos e outros compostos foram produzidos numa atmosfera composta de amônia, metano, hidrogênio e vapor d’água, em reações catalisadas por radiações ultravioleta e descargas elétricas das tempestades. Tais moléculas, inicialmente precipitadas sobre rochas ardentes, foram depois arrastadas pela chuva para os mares, onde o choque contínuo entre elas deu origem a moléculas maiores (os coacervados) que, por sua vez, em algum momento do processo, teriam alcançado a organização necessária para replicar-se. As primeiras moléculas não se dissolveram na água porque, com raríssimas exceções, as moléculas de vida formam colóides, substâncias de lenta dissolução e dispersão devido a um fenômeno de natureza elétrica. Parte da teoria de Oparin foi testada em laboratório, em 1953.
Na época, o químico americano Stanley Miller, então estudante na Universidade de Chicago, recriou a provável atmosfera primitiva e, após bombardear a mistura de gases durante uma semana com fortes descargas elétricas, conseguiu produzir aminoácidos. Experiências seguintes testaram também os efeitos do calor e dos raios ultravioleta, mas a sucessão de descobertas e teorias das últimas décadas mostrou que a atmosfera original não era exatamente igual à imaginada por Oparin (não havia nela amônia nem metano) e a teoria da “sopa primordial” voltou a ser apenas mais uma entre as diversas pesquisas para se entender a origem da vida – apesar de seu peso científico considerável.
O curioso é que algumas pesquisas estão realçando o papel de um elemento citado como essencial na formação da vida na Terra, segundo o relato mitológico bíblico da criação: o barro. A argila seria a chave do mistério de como compostos orgânicos simples saltaram para a condição de material genético auto-replicante, afirma o químico Graham Cairns-Smith, da Universidade de Glasgow. Na verdade, segundo ele, o barro teria sido a primeira substância genética, que ele chama de cristal-gene. Como se sabe, cristais, inclusive os de barro, são auto-replicantes. E se a auto-replicação é um traço fundamental dos seres vivos, então dá para admitir que a vida pode ter recebido um empurrãozinho daquelas substâncias inorgânicas para obter suas primeiras cópias. Outros biólogos acham que a argila foi o meio onde se formaram moléculas de RNA (o ácido ribonucleico, que transcreve e traduz a informação genética), durante reações que permitiram o aparecimento de ligações simples entre aminoácidos.
Suspeita-se que o RNA foi o primeiro elo da vida que precedeu o DNA (ácido desoxirribonucleico), por ser ele dotado de uma importante atividade catalítica: é possível obter fitas de RNA idêntico a partir de um molde de RNA e de nucleotídeos. Os genes nus dos primórdios da vida teriam depois se fixado em estruturas maiores, como os coacervados de Oparin.
Para os cientistas Robert Williams, da Universidade Oxford, na Inglaterra, e João José Fraústo da Silva, da Universidade Técnica de Lisboa, a química do planeta teria forçado a vida a evoluir ao longo de uma progressão previsível. Uma série de reações, chamadas redutivas, levou as células primitivas a extrair hidrogênio da água, liberando o oxigênio e tornando o ambiente mais oxidante, enquanto a amônia se transformava em nitrogênio e metais eram liberados de seus sulfitos. Com isso, tais células se adaptaram ao uso de elementos oxidados e evoluíram para acumular energia por meio da fixação do nitrogênio, com o uso do oxigênio, desenvolvendo, enfim, a capacidade de fotossíntese.
Foi a reação da vida ao ambiente oxidado que conduziu o processo de formação de animais e plantas superiores, dizem Williams e Silva. O peróxido de hidrogênio, por exemplo, levou ao surgimento da lignina – substância rica em oxigênio que é o principal constituinte da madeira – e o cobre oxidado dos sulfitos de cobre foi usado pelas células para gerar ligações entre proteínas como o colágeno e a quitina, que contribuem para manter os nervos e as células dos músculos em seus lugares. “O acaso pode até conduzir o desenvolvimento das espécies, mas não conduz a evolução em geral”, diz Williams. “O que a vida joga fora se torna a coisa que força o passo seguinte em seu desenvolvimento.”
Quem faz pesquisa de ponta, seja na microbiologia ou na física, não esconde a surpresa diante da precisão matemática dos processos e das convergências que contribuíram para o aparecimento da vida na Terra e, ao que tudo indica, no Universo. É o caso do físico e astrônomo inglês Martin Rees, um dos defensores da tese do multiverso, segundo a qual o nosso é apenas um em uma série incalculável de universos existentes em diferentes dimensões de espaço e tempo. Para Rees, a vida, tal como a conhecemos, só se tornou possível graças à ínfima diferença de 0,001% respeitada pela natureza desde as explosões primordiais do cosmo. Na combustão das estrelas, afirma o astrônomo, quando o hidrogênio e o hélio se fundem, só 0,007 da massa do hélio é transformada em energia – e é isso o que permite a química da vida.
Se fossem transformados 0,006 da massa, os dois prótons e dois nêutrons que constituem o núcleo desse elemento, fundamental à formação de planetas e seres vivos, não se uniriam e o Universo não saberia o que fazer apenas com o hidrogênio. Já se o volume da massa transformada fosse um pouquinho maior – apenas 0,008 – a fusão entre o hélio e o hidrogênio seria tão rápida que nenhum átomo de hidrogênio teria resistido às explosões da época do Big Bang e o aparecimento de sistemas solares e da vida também seria inviabilizado.
Outro capricho da natureza a favor da vida é o alvo atual de Arnaldo Naves de Brito, no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron. O cientista brasileiro quer explicar por que todas as moléculas vivas são “canhotas”, classificação decorrente da chamada quiralidade –- o fato de as moléculas de carbono que constituem os aminoácidos apresentarem-se em duas versões espelhadas. Para entender o que isso significa, basta olhar para as duas palmas das mãos. Elas são praticamente idênticas, exceto pelo detalhe de os polegares apontarem para lados opostos e os demais dedos de uma mão obedecerem a uma formação invertida em relação aos da outra. O enigma é que na Terra primitiva (e também nas experiências de laboratório) os aminoácidos apareceram nas duas formas espelhadas, a canhota e a destra, mas só uma delas é utilizada na composição dos seres vivos.
“A origem da vida está intimamente ligada à origem da homoquiralidade molecular, ou seja, ao fato de toda a vida no planeta conter somente aminoácidos canhotos”, diz Arnaldo. Vários estudiosos do fenômeno, incluindo o pesquisador, acreditam que o único mecanismo viável para o surgimento da homoquiralidade seria a incidência de um tipo especial de luz – a luz circularmente polarizada (LCP) – que gera um processo de fotólise assimétrica, com destruição preferencial das moléculas “destras”. Formas de LCP alcançam a Terra todos os dias, no nascer e no pôr-do-sol, e estão presentes na luz síncrotron, espécie de radiação ultravioleta canhota proveniente da explosão de supernovas.
Qualquer que venha a ser o desfecho para questões como essas, provavelmente ainda por muito tempo uma pergunta continuará no ar à espera de uma resposta entre tantas suposições: por que há vida? Qual o seu propósito? Talvez aquilo que chamamos vida seja o resultado da permanente busca de equilíbrio da natureza, conjeturam o biólogo americano Eric Schneider e seu companheiro na pesquisa de ecossistemas James Kay, um engenheiro de sistemas. Mas não seria a vida algo escancaradamente fora de equilíbrio? Nossas moléculas não se agitam permanentemente nas ondas de calor dos processos químicos? É verdade, mas os seres vivos não são sistemas fechados e interagem com o resto do Universo, buscando a estabilidade. A vida usa qualquer mecanismo à sua disposição para mover-se em direção ao equilíbrio, afirmam Schneider e Kay. E isso inclui a criação de sistemas mais complexos, como plantas e animais superiores.
Faz sentido?
Pode ser que sim. No entanto, em um campo de estudo naturalmente polêmico, onde dificilmente se encontram duas cabeças pensando na mesma direção, só o tempo pode apontar quem está com a razão. Até lá, cenas singelas como as plantas brotando na avenida Paulista e a flor solitária da Quinta Avenida continuarão sendo bons pretextos para que nos lembremos da imponência da vida e de sua enternecedora e misteriosa beleza.
Para saber mais
Things Come to Life
Henry Harris, Oxford University Press, Nova York, 2002
The Origin of Life
Aleksandr Oparin, Dover, 1953