O mistério do efeito placebo
Ele é um instrumento essencial da medicina. Pode ter efeitos surpreendentes sobre o organismo – inclusive em animais. É conhecido há mais de 200 anos; e, até hoje, ninguém sabe ao certo como funciona. Mas estudos revolucionários estão começando a descobrir.
OO café, segundo dados do IBGE, é o alimento mais popular do Brasil: 78,1% das pessoas têm o hábito de consumi-lo (superando até o arroz, com 76,1%, e o feijão, com 60%). Mais de 1 bilhão de pessoas, no mundo, tomam café todos os dias. Amamos essa bebida pelo cheiro e pelo gosto, mas também pela sensação que ela produz: você fica mais alerta e disposto, sem se cansar, por várias horas após tomar uma xícara.
A explicação está na cafeína, a substância ativa presente no café. Ela penetra no cérebro e se conecta aos receptores de adenosina, impedindo a ação desse neurotransmissor inibitório – e nos deixando ligadões. Mas parte desse efeito, na verdade, não é bem o que parece ser.
Isso foi demonstrado num estudo (1) publicado em junho por cientistas de sete universidades e instituições de pesquisa de Portugal e da Espanha. Eles reuniram um grupo de 47 voluntários, que passaram por exames de ressonância magnética do cérebro antes e depois de tomar café – ou 100 ml de água quente misturada com cafeína.
Os cientistas constataram que tanto o café quanto a água cafeinada reduziam a atividade da “rede de modo padrão”, um conjunto de regiões cerebrais que é acionado quando estamos descansando, sem pensar em nada. Normal; é a ação estimulante da cafeína.
Mas também houve uma descoberta surpreendente. O café aumentava a atividade do giro occipital médio, área ligada ao processamento visual, e da rede executiva central, envolvida na atenção, na memória e no raciocínio. Só que a água – que continha 85 mg de cafeína, a mesma quantidade do cafezinho servido – não provocava esses efeitos.
“Isso aponta para uma sensação imaginária (…) que não parece depender dos efeitos neuroquímicos da cafeína”, escrevem os autores. Ou seja: boa parte do que sentimos após tomar café não é causado pela bebida em si, mas pela expectativa que temos dela. Efeito placebo.
Ele faz parte da natureza humana, e também está na raiz da medicina moderna. Para que um medicamento seja considerado eficaz, ele deve demonstrar que é superior ao placebo – ou seja, os pacientes que o tomaram devem melhorar mais do que aqueles que engoliram comprimidos falsos.
São os estudos do tipo “duplo-cego”, em que os voluntários não sabem se estão recebendo remédio ou placebo, e os médicos também não (daí o “duplo” do nome). Isso só é revelado ao término da experiência, para não comprometer os resultados. Mas o efeito placebo é tão poderoso que, mesmo com todo esse cuidado, ele acaba influindo.
Em 2021, cientistas dinamarqueses analisaram 186 estudos, com 15.765 pacientes, que haviam medido a eficácia de remédios e tratamentos contra diversas doenças (2). Todos obedeceram ao esquema duplo-cego.
Os pesquisadores compararam vários estudos diferentes sobre as mesmas doenças, e com isso conseguiram calcular a influência de elementos externos, não farmacológicos, sobre as tentativas de tratar cada uma. Resultado: 54% da eficácia dos medicamentos podia ser atribuída a “fatores contextuais”, relacionados às expectativas do paciente. Efeito placebo.
E a intensidade disso variava. Quando os estudos reuniam voluntários mais jovens, ou mais mulheres do que homens, o placebo ficava mais forte. Por outro lado, quando o estudo testava o tratamento de uma doença crônica, o efeito era mais fraco – talvez porque os pacientes, que já sofriam com aquele problema há um bom tempo, acreditassem menos na cura.
Já quando os voluntários não eram informados de que o estudo era duplo-cego, o efeito placebo era especialmente intenso: como ninguém sabia que podia estar recebendo pílulas falsas, todos tinham maior esperança.
A medicina convive com o efeito placebo, e se utiliza dele, há séculos. Mas só recentemente começou a enxergar como ele funciona. E chegou a uma conclusão surpreendente: o placebo não é meramente psicológico. Ele desencadeia processos fisiológicos que realmente alteram o corpo – e talvez também possam influir, de forma concreta, em doenças.
A origem do efeito placebo
A expressão “placebo” vem do latim placere, e significa “agradar”. “É um efeito psicológico ou fisiológico benéfico, de uma intervenção médica que carece de atividade específica para a condição a ser tratada”, define a neurologista Karen Muñana, que é pesquisadora da Universidade Estadual da Carolina do Norte e autora de estudos sobre o efeito placebo.
O primeiro a investigá-lo de forma científica foi o médico britânico John Haygarth, que em 1799 resolveu fazer uma experiência. Estava na moda utilizar ponteiras de metal, caríssimas, que supostamente seriam capazes de tirar as doenças do corpo. Eram os “extratores Perkins”, recomendados por médicos sérios da época.
Haygarth não acreditava naquilo, e teve uma sacada: construiu ponteiras idênticas às Perkins, só que feitas de madeira, e começou a testar. O resultado foi que ambas “funcionaram” da mesma forma, com os pacientes relatando a mesma melhora. Haygarth escreveu um livro sobre o caso – que classificou com a expressão “efeito placebo”.
Décadas mais tarde, o médico americano Austin Flint deu o próximo passo. Ele teve a seguinte ideia: e se um grupo de pacientes tomasse um remédio falso, placebo, enquanto outro recebesse um medicamento tradicional? Em 1863, Flint fez o teste, comparando um tratamento da época para reumatismo (uma solução de ópio, aplicada diretamente sobre as articulações) com o que chamou de “remédio placeboico” – ele usou tintura de quássia, uma planta, “muito largamente diluída”.
O resultado(3), publicado no American Journal of the Medical Sciences, foi que o remédio e o placebo tinham o mesmo efeito. Logo, o tratamento era ineficaz. A descoberta foi um dos pontos altos da carreira de Flint, que se tornaria presidente da Associação Médica Americana. Mas ele não acertou na mosca.
Isso porque Flint usou dados de experimentos diferentes, realizados em dois momentos distintos – o que pode distorcer as coisas, e não permite que os resultados sejam diretamente comparados.
Foi só bem depois, em 1944, que o placebo finalmente se tornaria a base dos estudos clínicos na forma atual – e traria a medicina para a era moderna. Naquele ano, o Conselho Britânico de Pesquisa Médica realizou o primeiro “teste cego randomizado”, que mais tarde ficaria conhecido como duplo-cego.
Ele aconteceu na Finlândia, para testar um novo antibiótico chamado patulina, que seria capaz de combater resfriados. Dois grupos receberam o medicamento; outros dois, placebo. Além disso, a distribuição dos voluntários (quem iria tomar o quê) foi aleatória – daí o “randomizado” do nome.
O trabalho não identificou nenhum benefício visível da patulina, que acabou sendo descartada. Na época, o trabalho foi publicado em um jornal médico finlandês de baixo alcance, e não repercutiu muito.
O placebo só chamou mesmo a atenção em 1948, quando um estudo feito pelo Medical Research Council, do governo inglês, usou pílulas falsas para avaliar a eficácia da estreptomicina, um antibiótico, contra a tuberculose. O remédio passou no teste – e o estudo sacramentou o poder do placebo como instrumento científico.
O método traz consigo um dilema ético: ao fornecer pílulas falsas para metade dos voluntários, os cientistas estão deixando de tratá-los. Por isso, há regras para o uso de placebo em estudos clínicos. Elas foram sintetizadas na Declaração de Helsinki, publicada em 1964 pela Associação Médica Mundial, e aperfeiçoadas em 2002.
O placebo só pode ser empregado se os pacientes que o receberem não ficarem sujeitos a qualquer risco adicional de danos graves, ou irreversíveis, como resultado da falta de tratamento.
De lá para cá, ele se tornou parte indispensável das pesquisas médicas. Foi usado em estudos sobre diversas doenças – e demonstrou eficácia contra coisas tão diferentes quanto acne, asma, resfriado, alergia, úlcera, ansiedade e dores de cabeça.
Geralmente utilizam-se comprimidos de açúcar ou injeções de soro fisiológico. Mas qualquer procedimento médico de mentirinha, que simule uma intervenção real, também pode ser considerado placebo. Existe até cirurgia placebo.
Em 2002, cientistas da Baylor College of Medicine, em Houston, publicaram um estudo investigando a eficácia dessa prática para tratar a osteoartrite do joelho. Submeter alguém a uma falsa cirurgia pode parecer loucura ou curandeirismo, mas é ciência: o trabalho (4) foi publicado no New England Journal of Medicine, um dos periódicos científicos mais respeitados do mundo.
O estudo reuniu 165 pacientes com osteoartrite, dos quais 60 passaram por uma simulação de cirurgia (os demais foram submetidos a artroscopia ou lavagem articular, duas técnicas tradicionais). Na operação placebo, os pacientes receberam três incisões na pele, no mesmo tamanho que seria feito em uma cirurgia real.
“Uma solução salina foi borrifada para simular os sons da lavagem [articular]”, relata o estudo. Os pacientes foram mantidos na mesa de cirurgia pelo mesmo tempo que seria necessário na cirurgia de verdade, e o pós-operatório também foi idêntico ao real.
“Os pacientes passaram a noite após o procedimento no hospital, e foram atendidos por enfermeiras que desconheciam a atribuição do grupo [uso da cirurgia placebo].” A falsa operação se mostrou tão eficaz quanto as cirurgias tradicionais: dois anos após o procedimento, os pacientes relatavam a mesma melhora.
Um fenômeno similar, mas ainda mais impressionante, aconteceu com o americano Mike Pauletich. Em 2004, quando estava com 42 anos, ele começou a sofrer os primeiros sintomas de Parkinson. Passou a ter dificuldade para escovar os dentes e lançar bolas com a mesma agilidade – ele era o técnico de um time de beisebol infantil no qual seu filho jogava.
Foi ao médico e ouviu um prognóstico aterrorizante: em dez anos, ele estaria numa cadeira de rodas, sem conseguir nem se alimentar sozinho. Sua saúde continuou se deteriorando até que, em 2011, Pauletich ficou sabendo de uma empresa chamada Ceregene, que estava desenvolvendo um novo e radical tratamento contra o Parkinson: injetar no cérebro um vírus geneticamente modificado para carregar neuturina, uma substância essencial para os neurônios que produzem dopamina (cuja falta causa o Parkinson).
Ainda não tinha dado certo – a empresa vinha tentando há cinco anos, sem sucesso –, mas a Ceregene estava preparando uma nova tentativa.
Então Pauletich se submeteu a uma cirurgia no cérebro – falsa. Ele não sabia, mas estava no grupo de controle, placebo. Passou por todos os preparativos para o procedimento e chegou a receber uma incisão, minúscula, no crânio.
O procedimento foi realizado por médicos da Universidade Stanford. Durante dois anos, os resultados foram monitorados, nos dois grupos. Em 2013, veio a notícia: o tratamento da Ceregene novamente havia fracassado. Só que Pauletich estava muito melhor.
Ele, que em 2011 já tinha dificuldade para falar devido ao avanço do Parkinson, agora havia recuperado boa parte da agilidade nos movimentos e nas expressões faciais. Foi melhorando cada vez mais: começou a fazer exercícios, ganhou força física e correu um triatlo. Estava curado.
“Uma piada comum entre os cientistas é que o maior avanço na medicina do Parkinson, na última década, foi a cirurgia simulada”, conta o jornalista americano Erik Vance no livro Suggestible You (“Você sugestionável”, não lançado no Brasil), que relata esse caso. Outros pacientes de Parkinson receberam a falsa cirurgia, no teste da Ceregene. Não melhoraram como Pauletich.
“Milagres” como esse à parte, o uso de placebo é essencial para a validação de novos tratamentos. É muito difícil imaginar a medicina moderna sem ele. Ao mesmo tempo, só recentemente a ciência começou a desvendar o mais importante: como o efeito placebo age no organismo, afinal?
Como o placebo funciona
O efeito placebo vem da crença no tratamento. Mas, ao mesmo tempo, a coisa não é tão simples – porque o placebo pode funcionar mesmo se for descoberto, e a pessoa souber que não está sendo tratada de verdade. Isso foi demonstrado pela primeira vez em 2022, por uma experiência da Universidade de Basileia, na Suíça.
Primeiro os cientistas pediram que os voluntários, 112 ao todo, escrevessem um texto relatando uma situação na qual haviam feito algo ruim. O objetivo era induzir sentimentos de ansiedade e vergonha. Depois as pessoas foram divididas em três grupos. O primeiro não recebeu nada. O segundo tomou um falso calmante. O terceiro também – só que foi informado disso, e sabia que estava recebendo placebo.
Em seguida, os pesquisadores aplicaram testes padronizados para medir o grau de ansiedade dos voluntários (o resultado foi comparado ao de outro teste, feito imediatamente antes do estudo). Como esperado, o placebo funcionou, reduziu a ansiedade. E o placebo declarado também: quem sabia que estava tomando um remédio fake também se acalmou – a pílula fez 50% do efeito do placebo normal (5).
Isso mostra que as causas do efeito placebo podem ser mais complexas do que parecem. Uma possibilidade, levantada em artigos recentes, é que ele surja de associações subconscientes entre a experiência de ser tratado e a recuperação da saúde.
“Trata-se de um efeito contextual, ou seja, uma resposta espontânea que é impulsionada por muitos fatores, incluindo as credenciais, a integridade e a empatia do profissional de saúde”, afirma Robin Christensen, médico do Hospital da Universidade de Copenhague (Dinamarca) e autor de estudos sobre placebo.
Ou seja: quanto mais a pessoa acredita que vai melhorar, por uma série de razões, mais ela tem chance de conseguir. “A expectativa de obter um tratamento eficaz está relacionada à autossugestão”, diz Christensen.
Outros vão além, e consideram o placebo um fenômeno psicossocial, ou seja, coletivo e dependente de fatores culturais. “O efeito placebo é a resposta psicológica a todo o ritual do ato terapêutico”, resume o médico Fabrizio Benedetti, pesquisador da Universidade de Turim e especialista no tema.
É por isso, por exemplo, que há estudos mostrando que pílulas coloridas funcionam melhor que as brancas, e medicamentos mais caros ou considerados mais modernos tendem a ser reportados como mais eficientes (6). Porque o efeito placebo não é apenas a expectativa pessoal de se curar; também depende de outras coisas, como a crença no progresso científico ou a ideia de que coisas boas custam caro.
O efeito placebo é tão poderoso que funciona até em animais. “Observamos uma resposta positiva em cães, com a diminuição da frequência de convulsões”, diz a neurologista Karen Muñana, da Universidade Estadual da Carolina do Norte.
Ela chegou a essa conclusão analisando cães que sofriam de epilepsia e foram submetidos a um dos seguintes tratamentos (7): implante no cérebro, modificações na dieta ou um novo remédio antiepilético. Em cada um dos três testes, houve um “grupo de controle”, formado por cães que também tinham epilepsia, mas receberam placebo.
O falso tratamento teve eficácia de 26% a 46%.
Segundo Muñana, isso também pode estar relacionado a outros fatores, como a melhora natural da epilepsia (que às vezes acontece) ou a um maior cuidado dos tutores com os cães que estavam sendo tratados – ainda que com placebo. Cientistas da Universidade de Wisconsin, que também publicaram um estudo sobre o placebo em cães (8), fazem a mesma ressalva.
Em ratos, o efeito placebo é mais claro. Nos anos 1990, cientistas americanos mostraram que era possível associar um determinado cheiro à morfina, e depois conseguir o mesmo efeito desse analgésico simplesmente expondo os camundongos àquele odor (9).
Em 2005, um grupo de cientistas alemães bolou uma experiência (10) para tentar identificar o mecanismo cerebral envolvido no efeito placebo. Eles injetaram ciclosporina, um medicamento imunossupressor, em ratos – e condicionaram os animais a associar aquilo a um líquido doce, que eles podiam beber logo após a injeção.
Deu certo: mais tarde, só o líquido (sem a ciclosporina) passou a ter o mesmo efeito imunossupressor do remédio. Efeito placebo puro. E, mais do que isso, subconsciente (os ratos não tinham como saber que a ciclosporina desliga o sistema imunológico).
Aí os cientistas danificaram propositalmente a amígdala, o hipotálamo ou o córtex insular de outros ratos, que então foram submetidos ao mesmo processo de condicionamento. E isso impediu o surgimento do efeito placebo – indicando que essas três regiões são essenciais para a formação dele.
Estudos em humanos também encontraram indícios neurológicos do fenômeno. Em 2002, cientistas da Universidade da Califórnia (Los Angeles) estudaram pacientes que sofriam de depressão, uma doença cujo tratamento é especialmente sujeito ao efeito placebo – 25% a 60% dos pacientes, dependendo do teste, melhoram após receber comprimidos falsos (11).
Os pesquisadores queriam entender as razões disso. Reuniram 51 voluntários, e deram antidepressivos para alguns deles ao longo de oito semanas (os demais tomaram placebo). Todos foram submetidos a exames de eletroencefalograma antes e depois do tratamento (12).
Como esperado, o placebo funcionou: 43,7% das pessoas que haviam sido tratadas com ele melhoraram da depressão (o que foi medido usando testes padronizados). Nas outras, não houve efeito. Aí veio a parte mais interessante. Os cientistas compararam os cérebros desses dois subgrupos: de quem tinha respondido, e quem não tinha respondido, ao placebo.
Nas pessoas em que ele fizera efeito, havia maior atividade de certas regiões cerebrais [veja no infográfico abaixo]. E elas não eram as mesmas regiões estimuladas pelos antidepressivos. O estudo mostrou, pela primeira vez, que o placebo provoca uma ação real no cérebro humano – e ela é diferente da gerada por remédios de verdade.
Trabalhos mais recentes foram confirmando e aprofundando essas descobertas. Em 2016, um grupo de pesquisadores da Universidade Northwestern resolveu investigar os mecanismos cerebrais relacionados ao placebo em pacientes com osteoartrite no joelho – sim, a mesma doença que inspirou “cirurgias placebo”.
O trabalho (13) registrou que, entre os voluntários que ingeriram placebo, 47% se sentiram melhor. Normal. O interessante foi: exames de ressonância magnética mostraram que essas pessoas tinham cérebros anatomicamente diferentes, com maior quantidade de conexões em três áreas [veja no infográfico acima].
Em 2008, cientistas suecos encontraram o primeiro indício de que a propensão pessoal ao efeito placebo tem base genética (14). Cento e oito voluntários que sofriam de fobia social tiveram o DNA analisado e fizeram tomografia do cérebro. Uns foram tratados com antidepressivos, outros com pílulas de açúcar.
Os cientistas descobriram que as pessoas que tomaram placebo e responderam a ele tinham mutações no gene TPH2 e na região genética 5-HTTLPR – relacionadas à produção e eliminação de serotonina no cérebro.
De lá para cá foram identificados 11 genes, ligados à serotonina, à dopamina e aos receptores opioides e endocanabinoides do cérebro, que influenciam a resposta ao placebo (15). Provavelmente há outros, relacionados a diversas doenças. Um estudo da Universidade Harvard apontou que, em pessoas que têm síndrome do intestino irritável, o placebo funciona melhor se o paciente tiver certa mutação no gene COMT, ligado ao processamento da dopamina (16).
É por isso que o placebo funciona em parte das pessoas, mas não em todas. Ele é genético. E fisiológico também: altera os níveis de 74 proteínas do sangue, que atuam sobre diversos órgãos.
Essa foi a conclusão de um estudo bastante engenhoso (17), realizado em 2020 por um grupo de sete universidades e instituições alemãs. Noventa participantes foram colocados, um de cada vez, numa cabine com grandes listras verticais, que se deslocavam na horizontal [veja no infográfico acima].
Isso provoca náuseas porque confunde o cérebro. A imagem que chega pelos olhos sugere que o corpo está em movimento; mas os sinais vindos do sistema vestibular, no ouvido interno, apontam que o corpo está parado. Essa discrepância provoca tontura e enjoo – é por causa dela que os capacetes de realidade virtual podem causar esses sintomas.
No segundo dia da experiência, antes de encarar novamente a “cabine do vômito”, metade dos voluntários recebeu um falso tratamento: um gadget que liberava descargas elétricas de baixa intensidade no pulso. Os cientistas disseram que aquilo iria ajudar a evitar a náusea. Era mentira: o aparelhinho nem estava ligado.
Todos os participantes tiveram amostras de sangue colhidas antes e depois da experiência. Nas pessoas submetidas ao gadget placebo, 74 proteínas estavam com níveis mais altos ou mais baixos. E a coisa ia bem além do sistema digestivo, envolvido diretamente na náusea: também havia alterações em proteínas ligadas ao sistema imunológico e até ao comportamento social [veja no infográfico].
O placebo não age apenas sobre a mente. Também pode influenciar, de forma concreta, o corpo.
“É um sistema neurobiológico de autorregulação”, acredita o biólogo Ted Kaptchuk, diretor do programa de estudos sobre placebo da Universidade Harvard. “O cérebro está sempre amplificando ou diminuindo sensações, percepções e sintomas. E o contexto da cura o estimula a reduzir os sintomas”, diz.
Acreditar na cura é tão importante quanto a própria cura – especialmente em situações muito graves ou doenças incuráveis. Em 1957, num caso (18) que se tornaria célebre, o psicólogo Bruno Klopfer, da Universidade da Califórnia (Los Angeles), acompanhou um paciente identificado apenas como “Sr. Wright”. Ele estava morrendo de câncer nos nódulos linfáticos, e já esgotara as opções de tratamento disponíveis na época.
Com uma exceção: uma nova droga antitumoral, chamada Krebiozen. Três dias após receber a primeira injeção, o Sr. Wright estava irreconhecível. Ele, que antes mal conseguia respirar, agora perambulava pelo quarto contando piadas. Exames indicaram que seus tumores haviam diminuído muito. Dez dias depois, ele teve alta do hospital.
Mas, nos meses seguintes, o Sr. Wright começou a ficar preocupado depois de ler artigos, na imprensa, dizendo que o Krebiozen havia fracassado em testes clínicos. Ele tornou a piorar e voltou ao hospital. Onde os médicos, num gesto de compaixão e ousadia, resolveram enganá-lo: disseram ao Sr. Wright que a farmacêutica havia desenvolvido uma nova versão do remédio, que seria testada nele. Mentira. A injeção não continha remédio nenhum, nem mesmo o tal Krebiozen.
O Sr. Wright novamente melhorou, até mais do que na primeira vez, e teve alta. Viveu saudável por vários meses até que, novamente, se deparou com notícias sobre o malogro do remédio (que de fato era ineficaz).
Desta vez, a fé do Sr. Wright não resistiu – e ele teve uma piora fulminante, morrendo poucos dias depois. Sobreviveria mais tempo se continuasse acreditando no remédio? Não dá para saber. Talvez não. Mas é fato que, sem o efeito placebo, o Sr. Wright jamais teria se levantado da cama e tido alta do hospital pela primeira vez. Sucumbiria logo de cara.
Conforme a ciência começa a decifrar o enigma do placebo, duas coisas vão ficando mais claras. O poder, às vezes surpreendente, da esperança.
E a importância de permanecer humilde, com os olhos bem abertos, ante os mistérios do corpo humano.
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O efeito nocebo
Ele é o oposto do placebo – mas igualmente poderoso.
Se você achar que uma coisa vai fazer mal, pode fazer mesmo. Há estudos mostrando que o efeito nocebo (termo cunhado em 1961 pelo médico americano Walter Kennedy) é capaz de desencadear náuseas, dor de estômago, dor de cabeça e coceiras pelo corpo – ainda que o remédio ou tratamento não tenha, biologicamente, esse poder.
“O nocebo se deve à ansiedade antecipatória. Por exemplo, se disserem que a sua dor irá piorar nos próximos minutos, a sua ansiedade aumentará e você perceberá mais dor”, diz Fabrizio Benedetti, pesquisador da Universidade de Turim e autor de estudos a respeito. Num deles, os pacientes eram informados de que a injeção que iriam receber seria dolorida. Era mentira. Mas a injeção doía por causa disso (A). No ano passado, um estudo (B) da Harvard Medical School mostrou que o nocebo também afeta as vacinas da Covid: 35% das pessoas que receberam placebo (durante os testes clínicos das vacinas) relataram efeitos colaterais.
Fontes A. Conscious Expectation and Unconscious Conditioning in Analgesic, Motor, and Hormonal Placebo/Nocebo Responses. F Benedetti e outros, 2003. B. Frequency of Adverse Events in the Placebo Arms of COVID-19 Vaccine Trials. JW Haas, 2022.
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Fontes (1) Coffee consumption decreases the connectivity of the posterior Default Mode Network (DMN) at rest. M Picó-Perez e outros, 2023. (2) Placebo response and effect in randomized clinical trials: meta-research with focus on contextual effects. SH Hafliðadóttir e outros, 2021. (3) A contribution toward the natural history of articular rheumatism; consisting of a report of thirteen cases treated solely with palliative measures. A Flint, 1863. (4) A Controlled Trial of Arthroscopic Surgery for Osteoarthritis of the Knee. J Moseley e outros, 2002.
(5) Deceptive and open-label placebo effects in experimentally induced guilt. D Sezer e outros, 2022. (6) Commercial features of placebo and therapeutic efficacy. RL Waber e outros, 2008. (7) Placebo effect in canine epilepsy trials. KR Munana e outros, 2010. (8) Effect of analgesic therapy on clinical outcome measures in a randomized controlled trial using client-owned dogs with hip osteoarthritis. S Malek e outros, 2012. (9) Olfactory cues and morphine-induced conditioned analgesia in rats. JM Valone e outros, 1998. (10) Neural substrates for behaviorally conditioned immunosuppression in the rat. G Pacheco-Lopéz e outros, 2005.
(11) Placebos, drug effects, and study design: a clinician’s guide. FM Quitkin, 1999. (12) Changes in Brain Function of Depressed Subjects During Treatment With Placebo. A Leuchter e outros, 2002. (13) Brain Connectivity Predicts Placebo Response across Chronic Pain Clinical Trials. P Tétreault, 2016. (14) A Link between Serotonin-Related Gene Polymorphisms, Amygdala Activity, and Placebo-Induced Relief from Social Anxiety. T Furmark e outros, 2008. (15) Genetics and the placebo effect: the placebome. KT Hall e outros, 2015.
(16) Catechol-O-Methyltransferase val158met Polymorphism Predicts Placebo Effect in Irritable Bowel Syndrome. Kathryn T. Hall e outros, 2012. (17) Molecular classification of the placebo effect in nausea. Karin Meissner e outros, 2020. (18) Psychological variables in human cancer. B Klopfer, 1957.