As flores do figo ficam lá dentro – e os polinizadores morrem em seu interior
Existe apenas uma espécie de vespa capaz de polinizar a planta, e todo seu ciclo de vida gira em torno do figo. Agora, agricultores paulistas planejam trazer esses insetos especialistas para impulsionar a produção nacional.
A convidada desta semana é Larissa Galante Elias, bióloga e pesquisadora na Decoy Smart Control.
A relação entre o figo e uma pequena espécie de vespa, a Blastophaga psenes, é tão exclusiva que parece que eles nasceram um para o outro. E é quase isso mesmo.
A vespa-do-figo é o único inseto capaz de polinizar o figo – ou seja, juntar o gameta masculino com o feminino para a reprodução da planta. Essa exclusividade é uma dor de cabeça para os produtores de figo no Brasil, porque a vespa B. psenes não existe por aqui.
As figueiras (Ficus carica) são nativas do Mediterrâneo e Oriente Médio e estão entre as primeiras plantas domesticadas pelo ser humano, há milhares de anos. O figo é bastante usado no Brasil para a produção de doces, geleias e enlatados. Mas por aqui não é tão comum produzir ou comer os deliciosos figos secos, como é tradição na Turquia.
A questão não é só cultural – ela tem a ver com o tipo de figueira que temos no país e na interação curiosa que a frutífera tem com a sua polinizadora, a vespa-do-figo.
Figos não são frutas comuns. Na verdade, nem frutas são, mas flores (ou, mais precisamente, florescências). Como na analogia feita na série documental inglesa The Queen of Trees (‘A Rainha das Árvores”, não disponível no Brasil), imagine que o figo é um jardim secreto, uma “cesta” fechada, repleta de milhares de minúsculas flores no seu interior. Cada jardim tem um portal de entrada, um buraquinho que comunica a cesta de flores com o exterior.
As figueiras, como outras plantas, precisam ser polinizadas para formar sementes. As pequeninas fêmeas da vespa B. psenes são as únicas com o formato adequado para acessar estreita entrada e levar o pólen (o gameta masculino) até as miniflores femininas, onde as sementes se formarão. Esses insetos têm por volta de 1mm de tamanho, vivem somente um dia e seu único objetivo na vida é encontrar um local para botar seus ovos: o figo.
Dentro da flor, ela põe seus ovos – e morre. Nesse processo, polinizou o figo. Quando a vespas filhotes nascem, o ciclo se repete: machos e fêmeas copulam lá dentro do figo mesmo, as fêmeas saem do figo carregadas de pólen e entram em um novo figo para colocar os seus ovos. Figueiras e vespas dependem totalmente uma da outra há dezenas de milhões de anos.
O leitor já deve estar se perguntando se comeu vespas todas as vezes em que comeu figos. Em geral, não. O figo comestível tem plantas de sexos separados. As plantas femininas produzem os figos que comemos. nesses figos, as flores são muito compridas e a vespa mãe, ao entrar no jardim, não consegue encontrar o lugar adequado para pôr seus ovos.
Nesse caso, não encontramos nenhum filhote, e corpo da solitária vespa mãe se degrada muito antes do alimento chegar à mesa. No entanto, nas flores as masculinas, as florescências são mais curtas e o inseto é capaz de pôr todos os ovos. Esses figos ficam repletos de jovens vespas, e geralmente não são considerados adequados para consumo humano.
Se não temos essa vespinha no Brasil, como temos figos? É que algumas variedades de figueiras, como as produzidas aqui, têm figos que não precisam ser polinizados. Porém, a ausência desse processo faz com que o alimento tenha menor teor de açúcar e sabor menos acentuado. Eles também duram menos depois da colheita, tendo menor tempo de prateleira. Essas características impedem que o figo nacional seja utilizado para a fabricação de subprodutos, como o figo seco. O que torna o figo nacional menos competitivo no mercado.
Na Califórnia, ficicultores do final do século 19 enfrentaram o mesmo problema. Para produzir um figo de qualidade superior, eles introduziram na região a vespa B. psenes e figueiras da variedade Smyrna (que precisa de polinização). Hoje, os EUA estão entre os dez maiores produtores mundiais.
Agora, os ficicultores da região de Valinhos (SP) querem copiar seus colegas californianos e pediram ajuda para pesquisadores da Embrapa Meio Ambiente, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA) do Estado de São Paulo, a Universidade de São Paulo e a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. O projeto ainda busca recursos para sua viabilização.
Antes dos produtores introduzir as novas espécies de planta e vespa no país, os pesquisadores precisam estudar se elas se adaptam ao nosso ambiente e, mais importante, qual é o impacto delas no ecossistema. Na época que os californianos levaram as vespas do Mediterrâneo para a costa do Pacífico, ninguém estava preocupado se a espécie exótica poderia prejudicar outras vespas nativas.
Hoje, esses riscos devem ser avaliados com bastante rigor – mesmo no caso dessa associação tão específica e intricada entre figueira e a vespa-do-figo. Como um é tão dependente do outro, as B. psenes costumam viver apenas nas áreas de cultivo. Os riscos ecológicos envolvendo outras espécies animais e vegetais são bastante reduzidos.
Em teoria, as vespinhas não concorreriam com outros insetos, já que somente elas podem usufruir do jardim secreto do figo – e nenhuma outra planta lhe convém. Mas, na prática, a teoria é outra: só experimentos poderão dizer se a introdução dessa espécie causaria algum dano ao meio ambiente.
Este é o sétimo post do blog Bzzzzz, em que pesquisadores membros do comitê científico da Associação Brasileira de Estudos das Abelhas (ABELHA) e outros cientistas colaboradores vão comentar a vida, os hábitos e a importância econômica de diversos insetos – além de nos atualizar sobre as mais recentes descobertas no campo desses pequenos artrópodes. Até a próxima!