Deliane Penha estuda a morte das árvores e a vida de cientistas amazônidas
A pesquisadora quer descobrir o que influencia a expectativa de vida das árvores da Amazônia. Em entrevista, ela fala sobre a carreira acadêmica, colonialismo científico e maternidade.
Deliane Penha é uma bióloga natural de Óbidos, cidade no interior do Pará. Ela estuda como as árvores morrem, o que determina o tempo de vida delas, e o que influencia a resiliência de cada espécie. Esse é o objeto de estudo do seu pós-doutorado na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), apoiado pelo Instituto Serrapilheira.
Para além da morte das árvores, Deliane faz pensar muito no nascer e viver dos humanos. Apesar de ter o sobrenome do marido, ela assina sua produção científica com o seu nome de solteira, Penha. No começo da carreira, ela tinha medo do “efeito tesoura” que o casamento e a maternidade têm para mulheres cientistas. Manter o sobrenome foi “uma estratégia para eu sempre lembrar que, antes de ser a esposa e mãe, eu era cientista.”
Quando foi pedida em casamento, a mãe de Deliane avisou ao genro que ele só poderia se casar com a filha se não a impedisse de estudar. O pretendente concordou, e se juntou na missão de apoio à cientista que viria a ser sua esposa. Esse é só o começo de uma história em que o trabalho científico e a família estão entrelaçados profundamente.
Ao terminar o ensino médio e técnico em zootecnia, Deliane suspendeu os sonhos infantis de ser veterinária e psicóloga, e foi trabalhar no comércio para se sustentar. Mesmo que estivesse batendo metas já nos seus primeiros meses, ela logo recebeu uma carta de preocupação da própria mãe.
Na carta, a mãe dizia que a filha devia voltar a estudar, e que ela daria o apoio que fosse necessário para isso. “E aí eu nem sabia muito o que eu queria, mas só de receber a carta dela falando que acreditava em mim, que eu tinha potencial… Aquilo me marcou tanto que eu falei: ‘nossa, eu vou voltar porque eu tenho potencial’”, conta.
Foi então que ela entrou na graduação em biologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), um curso que ela achou que seria o meio do caminho entre o sonho da veterinária e o da psicologia. O plano era ser professora da educação básica, como várias de suas tias, mas ela logo se envolveu em uma iniciação científica.
Deliane começou a se interessar por taxonomia botânica, a parte da biologia que divide e identifica as diferentes espécies de plantas. Esse é o assunto do seu trabalho de conclusão de curso, que foi finalizado em meio a sua primeira gravidez.
Depois de um ano, resolveu transformar a pesquisa em um mestrado na UFOPA. Seu orientador disse, entretanto, que ela tinha deficiências importantes nas bases teóricas e na habilidade de escrita, e que deveria tirar o primeiro ano do mestrado apenas para fazer revisões.
“Então ele falou tanto que eu não sabia fazer um monte de coisa, e eu realmente acreditei nisso. E não fiz nenhuma disciplina obrigatória no primeiro ano do meu mestrado. No final, eu qualifiquei [teve a aprovação parcial] e deu tudo certo”, conta.
“Mas aí eu engravidei do meu segundo filho, e aí ele falou assim numa reunião: ‘ó, Deliane, eu sou um empresário da ciência. E uma mulher grávida não dá lucro’. Então, ele declinou da minha orientação sem que eu tivesse feito nenhuma disciplina, e grávida.”
Em qualquer empresa, essa conduta seria enquadrada em assédio moral e discriminação. Mas os pesquisadores sem vínculo empregatício não têm direitos trabalhistas como licença maternidade, férias, décimo terceiro, contribuição previdenciária etc. – e nem proteção contra esse tipo de assédio.
Deliane ficou desamparada por um tempo e foi reintegrada em outra pesquisa do departamento, em um assunto completamente diferente: a fisiologia das plantas. Mais uma vez, onde tinha frustração, ela plantava as sementes de novas conquistas. A paraense retornou ao mestrado duas semanas após parir o seu segundo filho, e terminou as disciplinas obrigatórias com ele no bebê-conforto, ao seu lado na sala de aula.
Depois do mestrado, ela foi professora de ensino médio por um tempo, até ser convidada a retornar à instituição para um doutorado. Ela entrou, conseguiu uma parceria internacional para o seu departamento em tempos de contingenciamento dos orçamentos das federais, começou a desenvolver seu projeto sobre florestas de várzeas, e engravidou pela terceira vez.
Deliane sabia que a filha seria a última, e se dedicou completamente ao prazer e ao trabalho incessante de ser mãe. Ela cancelou o doutorado-sanduíche nos EUA e resolveu ficar no Brasil, onde contava com o apoio do Sistema Único de Saúde.
Recentemente, ela estava fazendo seu pós-doutorado quando viu o edital do Instituto Serrapilheira para cientistas negros e indígenas. No início, hesitou em se candidatar porque ficou na dúvida sobre a própria identificação étnico-racial.
Conforme conversava com colegas, amigos e familiares, começou a se entender como uma pessoa parda, e mais do que isso: como amazônida. “Eu nunca tinha prestado atenção, por exemplo, que mulheres que têm muita relevância na ciência, principalmente na ecologia, não são nativas da região ou nem são da região, não têm vínculo com as instituições da Amazônia”, conta.
Ela começou a perceber também que as colaborações entre instituições que pesquisam a Amazônia eram “meio estranhas”. Pesquisadores estrangeiros ou do Sudeste do Brasil eram sempre valorizados, enquanto os pesquisadores locais eram vistos como meros assistentes na coleta de dados de campo ou na resolução de burocracias. “E foi quando eu comecei a entender um pouco sobre os legados do colonialismo científico na nossa formação.”
Ela enxerga uma escala hierárquica entre os conhecimentos e a valorização dos profissionais que começa nos países do Norte Global em relação ao Brasil, mas que também se reproduz nas relações do Sul e do Sudeste do país com o Norte e o Nordeste. “Depois passa para quem tá na capital e vem para quem está na no interior. E nós, que estamos aqui, passamos pras comunidades.”
Deliane considera que o assunto é um campo minado dentro do meio científico, mas que não está reivindicando nenhuma exclusividade ou vantagem. “Só queremos um lugar à mesa.” Ela ressalta que todos poderiam se beneficiar de uma articulação melhor entre o conhecimento teórico e prático sobre a floresta, sem desprezar os conhecimentos empíricos dos amazônidas.
É por isso que hoje ela coordena o projeto Niaras do Tapajós, que dá visibilidade e capacitação para cientistas mulheres amazônidas. A ideia é ir, aos pouquinhos, desmontando o que ela chama de “síndrome do vira-lata potencializada” que os amazônidas vivem, sempre se sentindo indevidos ou insuficientes.
Ao ser contemplada com o financiamento do Instituto Serrapilheira, Deliane se surpreendeu ao descobrir que havia sido a única paraense a se candidatar. Para ela, isso reflete justamente a baixa autoestima dos pesquisadores da região.
“A gente tem a ideia de que [esse tipo de oportunidade] é para para quem é ‘melhor do que nós’, porque a gente nem se vê como bom.”
“Perceber isso foi muito importante porque eu não tô falando que eu sou a melhor, que eu sou excelente, não. Eu sei que eu sou extremamente vulnerável, que eu preciso aprender um monte de coisas, mas eu preciso ter coragem para superar essas vulnerabilidades da minha formação, principalmente das habilidades acadêmicas. Lutar, trabalhar arduamente.”
É nesse momento que Deliane se encontra: no início ela morria de medo de cair e deixar os filhos sem mãe, mas agora já domina a arte de escalar árvores de 25 a 30 metros no meio da floresta para poder coletar os dados para sua pesquisa. Lá de cima, sob o vento forte, a floresta parece “brócolis se movimentando”. E os trabalhos da mãe e da cientista continuam a todo vapor.