Cinco mil quilos de vingança
Capturado e maltratado, ele levava uma vida horrível. Até que resolveu virar o jogo. Conheça a história de Tilikum - a verdadeira orca assassina
O ano é 1983. Um grupo de marinheiros navega pelas águas do Atlântico Norte, perto da Islândia, com uma intenção malévola: capturar orcas, as famosas “baleias assassinas”, para vendê-las a parques dos EUA. Depois de algum tempo, encontram uma família desses animais. O procedimento de captura é cruel. Primeiro, jogam bombas na água, para assustar e encurralar as orcas – que depois são presas com uma rede e puxadas com uma espécie de gancho. A ordem é pegar os filhotes, que são mais dóceis e mais fáceis de transportar. As orcas adultas são liberadas, mas não fogem. Ficam lá, emitindo um som que parece um ganido de desespero. É uma cena medonha, de embrulhar o estômago. Os baleeiros vão embora levando três orcas bebês. Uma delas é macho e tem cerca de 2 anos de idade. É batizado de Tilikum – palavra que significa “amigo” no dialeto dos índios chinook, que viviam no noroeste americano.
“Capturar aquela orca foi a pior coisa que fiz na vida. Foi como tirar uma criança dos braços da mãe, diz o mergulhador John Crowe no documentário Blackfish – Fúria Animal, que conta a história de Tilikum desde sua captura até o surto de revolta que terminou com três pessoas mortas em parques aquáticos nos EUA.
A caça às baleias (na verdade, é impróprio falar em baleias, pois as orcas pertencem à família Delphinidae, ou seja, tecnicamente são golfinhos) começou na década de 1960. Muitos animais foram capturados e vendidos a parques aquáticos em diversos países. Nos anos 70, os EUA proibiram a captura de mamíferos marinhos e os caçadores passaram a buscá-los em outras águas – como na Islândia, onde Tilikum foi pego. Depois de passar um ano em um zoológico marinho da Islândia, ele foi vendido para o Sealand, um parque aquático no Canadá, onde passou a dividir um tanque com duas orcas fêmeas. Não deu certo: elas atacavam o pobrezinho. Isso acontecia porque, naquela época, as orcas eram treinadas via estímulos negativos. Quando o novato Tilikum fazia algum truque errado, as três orcas eram punidas e não recebiam comida. E as fêmeas descontavam a raiva nele, que vivia com dentadas e arranhões pelo corpo.
Mesmo quando estava sozinho, Tilikum sofria. O local onde dormia era escuro e tinha apenas 6×9 metros. No começo, isso não era problema, mas Tili cresceu e atingiu 5 metros de comprimento – ou seja, mal conseguia se mexer no tanque, onde passava 14 horas por dia. “Vê-lo naquela caixa era horrível. Era errado”, diz, no filme, o ex-treinador Christopher Porter. Mesmo assim, ele não parou de crescer, e logo alcançou 5,5 toneladas – o dobro do peso das outras baleias do parque. Virou um gigante.
Um dia, em 1991, uma treinadora de 20 anos de idade, Keltie Byrne, caiu na piscina onde estavam as três orcas do Sealand – Nootka, Haida e Tilikum. Elas trataram a jovem como se fosse um brinquedo, jogando-a de um lado para outro e puxando-a para baixo d¿água até que a treinadora morreu afogada. Foi o primeiro caso de morte em um parque aquático. O Sealand não aguentou a repercussão e fechou as portas – e repassou as baleias para um parque bem maior, o SeaWorld, em Orlando.
A vida de Tilikum melhorou um pouco, pois o SeaWorld tinha uma estrutura muito melhor. Eram sete piscinas para orcas, com 27 milhões de litros de água salgada filtrada, mantida à confortável (para as orcas) temperatura de 12 ºC. A estrutura era melhor, mas o confinamento era o mesmo. Criticado por capturar orcas, o SeaWorld mudou de estratégia e começou a fazer reprodução em cativeiro, com técnicas de inseminação artificial. Mesmo sendo considerado agressivo, Tilikum era valioso, pois estava no auge de sua maturidade como reprodutor – e foi pai de vários filhotes.
Em 1999, aconteceu uma coisa estranha. Daniel Dukes, um rapaz de 27 anos que tinha acabado de sair da cadeia, se escondeu no SeaWorld e esperou que ele fechasse. À noite, não se sabe por que, resolveu tomar um banho em um dos tanques. Foi encontrado morto, no dia seguinte, na boca de Tilikum. Além desse caso, vários outros incidentes ocorreram no SeaWorld, muitos deles registrados pelas câmeras do parque. Um dos mais assustadores mostra o treinador Ken Peters dentro de um tanque com a orca Kasatka, durante um show. Sem motivo aparente, a orca o agarrou pelo pé. Kasatka puxou o treinador para baixo, o deixou sem ar por mais de um minuto e subiu novamente com ele para que respirasse. Depois o largou e o agarrou pelo outro pé, puxando-o novamente para baixo, por mais tempo. Repetiu o processo uma terceira vez. Depois, a orca simplesmente o libertou. Quem assiste à gravação tem a noção de que Kasatka sabia o que estava fazendo: brincando de afogar uma pessoa. As orcas são consideradas animais muito inteligentes, que têm até um dialeto próprio para se comunicar. Os treinadores jogaram um objeto na piscina para distrair a orca. E Peters finalmente conseguiu sair da piscina, com ferimentos em ambos os pés.
Tilikum era considerado ainda mais perigoso, tanto que poucos treinadores eram autorizados a interagir com ele. Uma das pessoas era Dawn Branchaeu, de 40 anos, considerada muito experiente. No dia 24 de fevereiro de 2010, no meio de um show, Dawn se agachou na beira da piscina e aproximou o rosto de Tilikum. O cabelo, preso a um rabo-de-cavalo, encostou no nariz da orca. Tilikum não hesitou e puxou a treinadora, que acabou morrendo afogada e teve o corpo esmagado pela orca, que chegou a engolir o braço da moça.
O caso teve muita repercussão, e várias hipóteses foram levantadas. Houve negligência por parte da treinadora? Ou Tilikum a atacou gratuitamente? Se foi isso, por qual motivo? Pode ter sido apenas tédio, vontade de brincar de uma forma diferente, a gota d¿água de uma antiga frustração em relação ao confinamento, uma noite difícil no tanque com as outras orcas, o desconforto de uma úlcera ou apenas uma mudança hormonal. Ou uma decisão deliberada da orca, movida por um sentimento mais humano, como a vingança? Para especialistas, é impossível saber. “Se um humano enfrentasse condições semelhantes às das orcas, seu comportamento seria igualmente imprevisível”, avalia Mario Rollo, doutor em ecologia de mamíferos marinhos e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Vida de gado
Para seus defensores, a manutenção de animais em cativeiro estimula o carinho pelos bichos e aumenta o conhecimento sobre a espécie. Por exemplo, monitorando a gestação de orcas em cativeiro, descobriu-se que ela dura de 17 a 18 meses – e não 12 meses como se acreditava. Na década de 1990, por conta do filme Free Willy, houve uma intensa campanha para liberar na natureza a orca Keiko, um macho que foi capturado junto com Tilikum na Islândia, e que “interpretou” a baleia do filme. Depois de um longo treinamento para ensiná-lo a sobreviver no mar, Keiko foi solto, mas morreu logo depois, por conta de uma pneumonia. Esse episódio reforçou o argumento de quem defende que animais acostumados com o cativeiro não têm condições de enfrentar a vida selvagem.
Mas grande parte da comunidade científica, incluindo biólogos e veterinários, mantém uma posição muito crítica em relação à manutenção de orcas em cativeiro – especialmente para fins de entretenimento. “Não é só o Tilikum, todas as baleias em cativeiro são psicologicamente traumatizadas”, diz no documentário a neurocientista Lori Marino, doutora em comportamento animal.
Para o veterinário Milton Marcondes, diretor de pesquisa do Instituto Baleia Jubarte, o que se ganha em conhecimento sobre as orcas não justifica o sofrimento que elas passam sendo mantidas em cativeiro. Ele explica que a falta de espaço tem consequências físicas e psicológicas para as orcas. Por exemplo, na vida selvagem, apenas 1% dos machos tem a barbatana dorsal caída, sinal de estresse. Já nos parques, praticamente todos os machos têm esse sintoma. O tempo de vida das orcas em cativeiro, no máximo 30 anos, é muito menor que sua média na natureza: 60 a 80 anos. E o convívio forçado entre elas é uma fonte constante de brigas. “Na natureza, se surge algum conflito, as orcas podem simplesmente nadar para lados opostos. No aquário, elas são obrigadas a conviver”, explica Marcondes.
No Brasil, não é proibido manter orcas em cativeiro. Mas as regras são tão rígidas que inviabilizam shows em parques aquáticos. Só é permitido manter um bicho em cativeiro se os avós e os pais dele também forem de cativeiro. “É por isso que não temos animais em aquários no Brasil”, explica Rollo. Além dos EUA, há orcas em parques no Japão, na França, na Espanha, na Rússia, no Canadá e na Argentina.
O SeaWorld se defende dizendo que há 35 anos não captura orcas na natureza e, a não ser em casos extremos, não separa as mães de seus filhotes. A empresa também argumenta que mantém 1,5 mil especialistas para cuidar do bem-estar dos animais e investiu US$ 70 milhões nos últimos três anos para melhorar os habitats de suas 28 orcas. O SeaWorld nega que as orcas sofram, como mostrado no documentário. “O filme é impreciso e enganoso. Apresenta depoimentos de ex-treinadores com pouca experiência em orcas. A maioria deles sequer teve contato com Tilikum”, diz Fred Jacobs, vice-presidente do SeaWorld. Apesar disso, o assunto parece estar afastando os visitantes: o número de ingressos vendidos caiu 9,5% no último verão, o que forçou o parque a cortar seus preços quase pela metade. E um deputado estadual americano apresentou um projeto de lei que proíbe manter orcas em cativeiro para fins de entretenimento. Se aprovada, a lei significaria o fim do SeaWorld.
Tilikum voltou a fazer shows, mas sem interagir diretamente com os treinadores – que ficam fora do tanque, protegidos por grades, e usam mangueiras de água para brincar com a orca. Ninguém chega perto.
30 anos é o tempo de vida das orcas em cativeiro. Na natureza, elas vivem de 60 a 80 anos.
100% das orcas em cativeiro têm a barbatana dorsal caída, um sinal de estresse. Na natureza, apenas 1%.
Caça aos golfinhos
O filme Blackfish segue o caminho traçado por outro documentário: The Cove, que ganhou o Oscar em 2010. Ele mostra como é feita a caça de golfinhos na região de Taiji, no Japão, onde a carne desse animal é apreciada. Estima-se que 23 mil golfinhos sejam mortos por ano no país. A captura segue um ritual cruel. Os caçadores saem em grupos de 10 a 12 barcos. Quando avistam os golfinhos, fazem um cerco aos animais, conduzindo-os até uma enseada (cove, em inglês). A enseada é um beco sem saída para os golfinhos, que acabam encalhados. Nesse momento, os pescadores descem dos barcos e matam os golfinhos a facadas. A água da enseada fica completamente vermelha de sangue. O governo japonês alega que a pesca de golfinhos e baleias é permitida porque faz parte da cultura do país há mais de 400 anos, ajuda economicamente as comunidades de pescadores, e as espécies mortas não estão em extinção.
46 orcas vivem em cativeiro
As orcas e os parques pelo mundo
10 orcas – SeaWorld San Diego (EUA)
6 orcas – SeaWorld San Antonio (EUA)
7 orcas – SeaWorld Orlando (EUA)
1 orca – MarineLand (Canadá)
1 orca – Miami Seaquarium (EUA)
1 orca – Mundo Marino (Argentina)
6 orcas – Loro Parque (Espanha)
5 orcas – Marineland Antibes (França)
1 orca – Seaside Dolphinarium Nakhodka (Rússia)
4 orcas – Port of Nagoya Aquarium (Japão)
4 orcas – Kamogawa SeaWorld (Japão)
Imagem: Gettyimages.com