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O hambúrguer impossível

Um grupo de cientistas recebeu US$ 250 milhões para criar o Impossible Burger: um hambúrguer feito de plantas que seja realmente idêntico à carne. Nós experimentamos

Por Bruno Garattoni (com reportagem de Flavio Pessoa e Fernanda Didini)
Atualizado em 7 out 2019, 15h36 - Publicado em 20 abr 2018, 12h17

O cardápio não tem nada de anormal. A lanchonete, que se chama Bareburger e fica na rua 14, em Nova York, também não. O garçom logo aparece e, sem muita paciência, pergunta qual é o pedido. Escolhemos o penúltimo item do menu, escondido em meio às quase 20 opções de sanduíche oferecidas pela casa (tem até carne de bisão). É o “Impossible Burger: hambúrger, queijo, cebola caramelizada, alface, mostarda e ketchup no pão integral. US$ 13,95”. O garçom não pergunta se queremos o hambúrguer ao ponto ou malpassado, porque ele não tem ponto – nem carne. O Impossible poderia ser apenas mais uma das opções vegetarianas que têm proliferado nas lanchonetes; mas, como seu nome sugere, é diferente. O produto que vamos provar daqui a pouco é a combinação de nove anos de pesquisas, US$ 250 milhões (vindos de Bill Gates e do Google, entre outros investidores), engenharia genética e um ingrediente revolucionário e polêmico. Tudo para tentar criar uma carne “de mentira” idêntica à bovina. Quem conseguir fazer isso para valer, afinal, poupará animais, ficará bilionário e salvará o planeta – pois hoje existem 1,5 bilhão de bois e vacas, cuja criação emite tanto CO2 quanto todos os carros do mundo.

Impossible burguer_1
O ASPECTO: O Impossible veio no pão integral, com queijo vegano. (Fernanda Didini/Superinteressante)

Não dá muito tempo de refletir sobre isso e o Impossible logo chega à mesa, perfurado por um pequeno espeto. Ele é largo (tem o diâmetro dos sanduíches do Burger King), mas o hambúrguer em si é um pouco mais alto, como nas lanchonetes gourmet. A primeira mordida não deixa dúvidas: ele é gostoso. Bem gostoso. É tostado por fora, rosado por dentro, e realmente tem gosto de carne. Mas não exatamente carne de hambúrguer: ela lembra mais a carne moída das almôndegas e dos bolinhos, inclusive na textura. O Impossible é mais mole do que um hambúrguer real (até um pouco mole demais, quase pastoso), e também fica devendo o sabor defumado característico. Mas, ao contrário dos burgers vegetarianos comuns, feitos de grão de bico, feijão, soja ou lentilha, ele realmente parece carne bovina. Daria tranquilamente para se acostumar – e, quem sabe, passar a comer só esse tipo de “carne”.

Esse é o sonho do geneticista Pat Brown, professor da Universidade Stanford. Ele ficou famoso na década de 1990, quando inventou o microarray: uma ferramenta que facilita a análise do DNA e hoje é usada em grande parte dos estudos sobre genética. Em 2009, Brown tirou um ano sabático, e logo descobriu o que queria fazer: diminuir o consumo de carne no mundo (ele é vegetariano desde a década de 1970). Começou organizando um congresso acadêmico para tentar conscientizar a sociedade, mas ninguém deu a mínima. Então Brown percebeu que seria mais inteligente colocar a mão na massa – e inventar um novo tipo de carne artificial, que fosse idêntica à de boi e as pessoas quisessem comer. “É mais fácil mudar o comportamento do que a cabeça das pessoas”, declarou à revista Pacific Standard.

Ele levantou dinheiro, contratou 25 funcionários e começou a analisar todos os aspectos da carne bovina: as proteínas responsáveis pela textura, os 150 compostos voláteis que produzem seu cheiro e gosto, as transformações que a carne sofre quando é aquecida etc. Começou a tentar reproduzir tudo aquilo com uma mistura de trigo e massa de batata (os dois principais componentes do Impossible Burger), óleo de coco (que fornece os 13 g de gordura do produto, mesmo teor de um hambúrguer comum) e um pouco de goma xantana: uma massa grudenta, de milho fermentado, que está presente em muitos alimentos industrializados e serve para “dar liga”.

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A LANCHONETE: Parte de uma rede que serve burgers artesanais. (Fernanda Didini/Superinteressante)

Mas aquilo não parecia um hambúrguer de verdade. Faltava alguma coisa. E o segredo estava justamente no elemento mais simbólico da carne, que mais incomoda os vegetarianos e ilustra o sacrifício dos animais abatidos: o sangue.

Fungo transgênico

O sangue é vermelho por causa da hemoglobina, a proteína que serve para transportar oxigênio pelo corpo. E a hemoglobina tem esse nome, e essa cor, porque contém moléculas chamadas hemes. Eles são verdadeiros ônibus biológicos, que carregam mais de 100 átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e ferro. Sem os hemes, a vida como a conhecemos não existiria – além de transportar oxigênio no sangue dos animais, eles também ajudam as plantas a extrair o nitrogênio, um nutriente essencial, do solo. E, como Brown e seus colegas acabaram percebendo, os hemes – e, portanto, o sangue – são o que dá à carne seu sabor característico. Você já deve ter percebido isso, instintivamente, ao morder um pedaço de churrasco: é o sangue que deixa a carne rosada e macia. Para reproduzir a carne de verdade, os cientistas teriam de reproduzir o sangue também.

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Começaram tentando extrair o heme de uma planta: a soja, cujas raízes contêm pequena quantidade dessa molécula. Mas, para conseguir heme na quantidade necessária, eles teriam de criar enormes lavouras de soja, causando problemas ambientais. “Não seria economicamente viável, nem responsável”, diz o engenheiro Nick Halla, diretor da Impossible Foods, que é a empresa criada para produzir o burger (e recebeu os US$ 250 milhões de Gates e do Google).

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A MORDIDA: Nosso repórter, Flavio Pessoa, prova o sanduíche. (Fernanda Didini/Superinteressante)

Então os cientistas apelaram para a engenharia genética. Pegaram um fungo chamado Pichia pastoris e inseriram nele um gene tirado da soja: o mesmo que, na planta, regula a produção de heme. Deu certo. O fungo começou a crescer e produzir fartas quantidades dessa molécula, que é extraída e usada nos hambúrgueres. Em setembro do ano passado, a empresa inaugurou sua primeira fábrica, que fica na Califórnia e cultiva o fungo em tanques de fermentação. Ela já fornece seu produto para 800 lanchonetes dos EUA, e sua meta para 2018 é chegar a 5 milhões de hambúrgueres vendidos por mês (a empresa também está desenvolvendo versões vegetais de carne de porco, frango e peixe). Segundo os criadores do Impossible Burger, sua produção usa três vezes menos água e emite 80% menos CO2 do que a carne comum, ocupando uma área 20 vezes menor.

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A empresa diz que sua molécula de heme é idêntica à natural. Mas, como os alimentos transgênicos sempre encontram resistência entre os consumidores, ela pediu a aprovação da Food & Drug Administration (FDA), que regula os alimentos e medicamentos nos EUA. Foi um ato voluntário: por uma tecnicalidade da lei, o Impossible Burger não precisa de autorização da FDA. De início, a agência não quis endossar o produto, alegando que o consumo do heme transgênico não havia sido testado em animais. O caso levantou certa polêmica, e então a empresa fez um estudo com ratos de laboratório, que foram alimentados com doses altíssimas dessa molécula (o equivalente a um ser humano comer 5 kg de Impossible Burgers por dia) e não apresentaram qualquer anormalidade. A FDA aprovou o Impossible Burger – mas aí foi a vez da ONG internacional Peta (People for Ethical Treatment of Animals) começar uma campanha contra a empresa, a quem acusa de crueldade. Ela diz que, como o Impossible foi testado em animais, não pode ser considerado um produto vegano.

Seja como for, ele pode ser a chave para convencer a maioria da população, que não é vegana, a comer menos carne – de forma bem mais convincente do que qualquer apelo, protesto ou receita caseira.

O segredo é conquistar as pessoas pelo estômago. E, para fazer isso, o melhor ingrediente é o mesmo de todas as grandes invenções humanas: a ciência.

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