A longa história d’As Mil e Uma Noites
Gênios, tapetes voadores e lâmpadas mágicas: boa parte do imaginário fantástico que associamos ao Oriente Médio vem d'As mil e uma noites. Entenda como esse livro de contos compilado por um francês moldou as ideias e preconceitos do Ocidente sobre o folclore árabe.
A versão mais antiga da história de Aladdin não foi escrita em árabe. O primeiro manuscrito conhecido sobre o jovem que encontra a lâmpada maravilhosa está em francês. Essa narrativa aparece pela primeira vez no nono volume do livro Les mille et une nuits (“As mil e uma noites”), compilado por um orientalista chamado Antoine Galland no início do século 18. As versões em árabe desse conto são traduções ou adaptações que surgiram após a publicação na Europa.
O mesmo vale para Ali Babá e os quarenta ladrões, que está no décimo volume do livro. Ambos foram considerados contos órfãos, já que não era possível determinar sua origem nem autoria. Por algum tempo, acreditou-se que o estudioso francês – que colhia e compilava narrativas folclóricas do Oriente Médio para o público europeu – havia inventado essas histórias do zero. Mas hoje temos certeza de que não é o caso.
Boa parte do imaginário do Ocidente sobre a cultura árabe vem d’As mil e uma noites. Isso vale mesmo que você nunca tenha lido uma única página do livro. Ele é uma colcha de retalhos costurada por uma história principal, chamada “narrativa moldura”. O modelo de contar histórias dentro de histórias não é inédito de Noites, e já existia principalmente na cultura indiana. Mas o livro árabe se tornou um dos maiores exemplos desse tipo de narrativa. Aqui vai um resumo:
Xariar, o rei da Pérsia, descobre que sua esposa o está traindo com um escravo. Depois de matar os dois, o rei se convence de que nenhuma mulher no mundo é confiável. Ele decide se casar e dormir com uma moça virgem a cada noite, só para matá-las na manhã seguinte. Desta forma, Xariar garante que nunca mais seria traído.
Após muitas noites, uma jovem chamada Sherazade se oferece como noiva do rei, dizendo que irá acabar com o massacre das mulheres. Na primeira noite, ela começa a contar uma história, mas não chega ao final dela. Xariar, querendo saber como a história termina, decide poupar a moça para ouvi-la na noite seguinte. Sherazade termina uma história e logo em seguida começa outra, salvando sua pele sucessivamente ao longo das noites.
As edições atuais não têm 1.001 contos, e nenhuma edição conhecida teve. É provável que essa seja apenas uma figura de linguagem. Na prática, há pouco menos de 300 deles – a quantidade exata depende da tradução. Além disso, a distribuição das narrativas não rende exatamente uma fábula por noite. Afinal, o segredo para salvar a vida da noiva é justamente interrompê-las (para os curiosos, ao final deste texto contaremos se Sherazade sobrevive ou não).
Agora, sem interrupções, vamos entender como As mil e uma noites chegaram até nós. Essa é uma epopeia por si só, que conta muito sobre os fetiches, preconceitos e fascínios dos leitores e acadêmicos europeus, revela a relação da fé islâmica com as crenças que existiam antes dela e mostra que criaturas como os gênios estão no seio da história cultural do Oriente Médio.
Quem escreveu As mil e uma noites?
O final do século 17 foi o auge da popularidade dos contos de fadas. Em 1697, um escritor chamado Charles Perrault publicou um livro com várias das histórias da tradição oral europeia, chamado Contos dos tempos passados. Lá estavam Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Gato de Botas e outros. Foi um best-seller entre as madames da aristocracia francesa.
Nessa época, Antoine Galland trabalhava como antiquário e numismata – especialista em moedas – do rei Luís XIV. Ele viajava ao Oriente Médio com o objetivo de coletar dinheiro, medalhas, manuscritos e velharias em geral para a coleção do excêntrico Rei Sol. Galland foi assistente do intérprete Barthélemy d’Herbelot, com quem montou uma coleção de textos e traduções de história e ciência árabe. No mesmo ano em que Perrault apresentou seus contos à França, Galland publicou uma obra chamada Biblioteca oriental, ou dicionário universal relativo a tudo que diz respeito ao conhecimento das pessoas do Oriente. Pouco pretensioso (rs).
A literatura árabe não era o principal interesse da Coroa, mas Galland viu uma oportunidade no contexto cultural da época. Ele considerava os contos do Oriente melhores do que aqueles que estavam circulando entre as dondocas na França, e havia boatos da existência de uma fonte inesgotável deles. “Galland ouve falar que os contos árabes isolados fazem parte de um conjunto maior de histórias, e começa a buscar esse conjunto com a ajuda de amigos na Síria”, diz Christiane Damien, que escreveu sua tese de doutorado sobre As mil e uma noites (1).
O primeiro conjunto de narrativas traduzido por Galland foram as lendas do marujo Simbad – que, depois, ganharam dezenas de adaptações cinematográficas e televisivas no Ocidente. A obra original consiste em sete contos que descrevem suas viagens fantásticas. Galland entrou em contato com esses manuscritos durante uma viagem à Turquia, e os traduziu para o francês na década de 1690 (2).
A história de Simbad ficou na gaveta por alguns anos, esperando o que seria o maior achado de Galland: um manuscrito intitulado Alf Laylah wa-Laylah – traduzido ao pé da letra, “As mil noites e uma noite”. Lá estavam a história-moldura de Sherazade e os contos que ela narrou para entreter o sultão. Essa relíquia está guardada até hoje na Biblioteca Nacional da França. Posteriormente, por causa da encadernação, o manuscrito foi dividido em três, que hoje estão etiquetados com os números 3609, 3610 e 3611.
Há um debate acadêmico em torno de quando esses documentos foram escritos. Curiosamente, considerando que Galland era um numismata, as hipóteses se baseiam nos tipos de moedas mencionadas nos contos, e como elas se relacionam com a época e região em que eles circularam. O mais aceito é que Alf laylah wa-laylah data dos séculos 14 ou 15, e é de origem síria.
Essa ainda não é a fonte original de Noites. O texto sírio descende de um outro conjunto de histórias chamado Hazār afsāna, que significa “Mil contos” no idioma persa. Ele reúne lendas da Índia, Grécia e da Pérsia (atual Irã). Os arqueólogos nunca encontraram um manuscrito desse livro, mas ele é mencionado em outros textos árabes desde o século 9. O que sabemos é que em algum momento ele foi traduzido e adaptado para o árabe.
“Esse livro se transformou completamente. A ponto de falarmos hoje que ele é um livro árabe”, diz Damien. “Mas temos fragmentos de manuscritos que indicam que o Hazār afsāna estava vivo e circulando no mundo árabe na Idade Média. Ele ainda não era As mil e uma noites, mas já continha algumas histórias presentes nele.”
As adaptações árabes desse clássico persa foram se combinando até dar origem ao manuscrito encontrado e traduzido por Galland. O primeiro volume do livro As mil e uma noites, contos árabes traduzidos em francês foi publicado em 1704. Foi um sucesso instantâneo. Galland enxertou os contos de Simbad no terceiro volume do livro, mesmo que essas histórias não fizessem parte do manuscrito original.
Havia uma demanda enorme por mais contos árabes, o que fez Galland ir atrás de outros manuscritos originais para abastecer o mercado. Ele encontrou, por exemplo, textos egípcios que contêm a narrativa moldura de Sherazade, mas com alguns contos diferentes. Isso é o que os historiadores chamam de “ramo egípcio” de Noites. No final das contas, o francês acabou publicando conteúdo autêntico de pelo menos seis manuscritos árabes, mais alguns manuscritos turcos.
Mesmo após centenas de histórias traduzidas, ainda havia demanda do público e da editora. Galland publicou o sétimo volume de Noites em 1706, já sem saber onde procurar mais manuscritos. Para preencher espaço, seu editor acabou incluindo dois contos de uma outra coleção turca – que nada tinha a ver com Noites – no oitavo volume do livro, em 1709. E essas histórias haviam sido resgatadas por um outro orientalista francês: um rival de Galland chamado Pétis de la Croix (3).
A concorrência era tão dura que, no ano seguinte, De la Croix publicou um um livro chamado Os mil e um dias, procurando surfar no sucesso estrondoso de Galland. Tratava-se de uma adaptação de uma coleção turca intitulada Ferec ba‘d eş-şidde – mas De la Croix mudou e cortou diversos trechos, buscando encaixar as histórias no contexto pop da época.
Tanto Galland como De la Croix só souberam dessa gambiarra depois que o oitavo volume estava publicado, e ambos romperam com a editora La Maison Barbin. Esse entrave acabou servindo para que Galland tivesse tempo de ir atrás de mais histórias. No nono volume do livro, já com outra editora, ele adiciona dois contos célebres que não estão em nenhum manuscrito que conhecemos hoje: Aladdin e Ali Babá.
O francês teria inventado essas histórias? Por séculos, tudo levava a crer que sim. Mas isso mudou em 1881, quando o diário de Galland foi encontrado e publicado. Lá, ele explica que ouviu e leu as histórias de um jovem sírio chamado Hanna Diyab em 1709.
As suspeitas se dissiparam de vez quando um relato de viagem do próprio Hanna Diyab foi traduzido ao francês em 2015 e depois publicado em árabe em 2017. Diyab não só confirma que repassou algumas histórias a Galland como relata experiências pessoais semelhantes às aventuras do personagem Aladdin. Quando era jovem, Hanna participou de uma escavação subterrânea em que foram encontrados um anel e uma lâmpada – dois elementos centrais na narrativa.
É possível, portanto, que a história seja um misto de tradição oral com fundo autobiográfico. Não sabemos o quanto Galland mudou essas fábulas (como fez em outras histórias d’As mil e uma noites) para adaptá-las ao gosto do público, mas é fato que o resultado final é um trabalho conjunto entre os dois.
Em 2018, um professor do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais (Inalco), na França, disse ter encontrado o manuscrito original de Aladdin que Hanna Diyab teria entregue a Galland. A notícia gerou um alvoroço entre pesquisadores, mas até agora esse manuscrito não foi publicado. Talvez o texto seja ilegível, ou o professor esteja blefando. De toda forma, até onde sabemos, o documento permanece desaparecido.
O conto de Aladdin original, diga-se de passagem, é bem diferente da versão da Disney. Para começar, Aladdin é da China – embora o ambiente descrito na história seja idêntico ao Oriente Médio. O personagem é convocado por um feiticeiro do norte da África para resgatar tesouros em uma caverna, e então conquista a mão de uma princesa (chamada Badroulbadour) com fortunas, como um castelo incrustado de joias.
A principal mudança é que Aladdin não encontra um, mas dois gênios na história. Um deles está preso em um anel, e ajuda o personagem a sair da caverna. O outro é o gênio da lâmpada, que concede três desejos a Aladdin depois que ele já saiu do subterrâneo.
Mais do que realizadores de desejos, os gênios são figuras centrais do folclore árabe, tão antigos que não há como cravar quando ou onde eles surgiram. No Oriente, eles são mais conhecidos por seu nome original: jinn.
Seu desejo é uma ordem
Os estudiosos da literatura árabe criticam a tradução de jinn para “gênio” em português. Há uma similaridade fonética, mas não de sentido. O acadêmico Mamede Jarouche, que fez a primeira tradução d’As mil e uma noites do árabe direto para o português, explica que os jinn têm mais a ver com entidades da mitologia grega chamadas daemons.
Daemons eram divindades menores ou espíritos protetores que povoavam o panteão helênico; o mais famoso deles talvez seja Eros. Os jinn eram, grosso modo, um equivalente árabe pré-islâmico dos daemons – acreditava-se que os poetas árabes fossem inspirados por essas entidades. “Quando Maomé começa suas pregações [nos séculos 6 e 7 d.C.], muitos árabes que se opunham ao islã diziam que ele não era um profeta, que estava apenas possuído por jinn”, diz Jarouche.
Segundo o folclore árabe, os jinn foram criados a partir do fogo sem fumaça. Eles têm forma gasosa e vivem em uma espécie de plano intermediário, podendo se tornar visíveis aos humanos ou não. Existem jinn de ambos os sexos, eles podem ser bons ou maus, e em geral agem visando interesses próprios. Os jinn também podem se disfarçar de animais.
A mitologia em torno deles era tão forte na região que eles acabaram incorporados ao livro sagrado do islamismo. Os jinn seriam uma das três criações divinas, junto com os anjos, feitos a partir da luz, e os humanos, que vieram do barro. A septuagésima segunda surata (capítulo) do Alcorão é dedicada inteiramente a eles: o texto descreve o momento em que um jinni (jinni é o singular de jinn) ouve as pregações e se converte ao islã.
“Antes da chegada de Maomé, os jinn eram vistos como seres maiores, com status mais proeminente”, diz Damien. “Depois, o texto corânico diminui os poderes deles […] recomenda-se que os fiéis não mantenham contato com essas figuras.” Entre os jinn, também existem aqueles que são muçulmanos e os que não creem em Alá.
Dá para ir mais fundo na história. Segundo Al-Tabari, um dos principais historiadores e comentadores do Alcorão, os jinn foram criados e habitaram a Terra antes dos humanos. Mas eles acabaram expulsos após entrar em guerra com os anjos. Tempos depois, retornaram ao mundo se infiltrando nos lugares mais desprezíveis, como os desertos, esgotos e ruínas.
E o gênio aprisionado na lâmpada? Essa ideia surge com a narrativa islâmica de que Salomão, rei dos israelitas, teria recebido um anel de Deus para controlar e encapsular os jinn revoltosos. Deus também oferece ao rei o poder de controlar os ventos – dessa forma, Salomão sobe em um tapete e voa para onde quiser. É possível que os contos com tapetes mágicos (que também aparecem em Noites) tenham derivado dessa história.
Vale lembrar: jinn e outros seres míticos existem desde o período pré-islâmico, mas os textos principais que deram origem ao livro d’As mil e uma noites foram adaptados para o árabe após o surgimento do islamismo, entre os séculos 6 e 7. O folclore do livro, então, acaba se misturando com as narrativas religiosas.
Os jinn aparecem em muitas histórias d’As mil e uma noites, soltos ou aprisionados, de forma que seria difícil listar todos os casos. Uma curiosidade é que, ao se tornarem visíveis, eles podem se reproduzir com humanos. Por exemplo: uma criatura chamada nasnas, presente em histórias árabes, é descrita como filha de um shiqq, um tipo de jinni inferior, com um humano. Nasnas têm metade do rosto e do corpo, e apenas um braço e uma perna.
O livro ainda menciona ifrits, criaturas maléficas que ora são descritas como um tipo de jinn, ora como demônios. E também ghouls: monstros que vivem em cemitérios e se alimentam de carne humana. Posteriormente, esses personagens foram incorporados em videogames, livros e séries de fantasia, como em Deuses americanos, de Neil Gaiman, e Tokyo ghoul, de Sui Ishida.
Os gênios são velhos conhecidos da cultura pop. Fizeram sucesso de forma estereotipada nos anos 1960 com as séries Jeannie é um gênio e Shazzan, e nos anos 1990 com Aladdin da Disney. Mais recentemente eles ganharam uma roupagem menos caricata, como em Jinn, primeira série original em árabe da Netflix, e Duna: parte 2, em que os jinn são mencionados como espíritos do deserto.
Mais do que inspirar personagens no Ocidente, As mil e uma noites contribuiu para a visão mística que se construiu daquela região. “Na França, a tradução do Galland foi lida como uma representação das coisas reais do Oriente”, diz Jarouche. “Elas inauguram um modo de ver o Oriente filtrado pela ficção.”
Histórias em transformação
O último volume d’As mil e uma noites de Galland foi publicado em 1717. Sem essa tradução, não existiriam As viagens de Gulliver ou Robinson Crusoé – pelo menos não como são hoje. Esses clássicos da literatura inglesa são narrativas de viagem em que os protagonistas conhecem mundos distantes, assim como nos contos de Simbad. Esse trio de histórias traz reflexões sobre moral, valores e a organização da sociedade a partir do contato com ilhas estranhas e remotas.
Simbad, por sua vez, é descendente de um livro chamado Relatos da China e da Índia, que reúne descrições factuais (ou, por vezes, fantásticas) de marinheiros muçulmanos que tiveram contato com essas duas regiões nos séculos 9 e 10. Diferentemente do Hazār afsāna (que conhecemos da mesma época), o Relatos sobreviveu ao tempo, e hoje é uma peça de pesquisa para historiadores e estudiosos de literatura.
Finalmente, sobre Sherazade: durante o período com o rei, ela deu à luz três filhos. Ao final das supostas mil e uma noites, a rainha diz que não tem mais histórias para contar, e pede para se despedir das crianças antes de ser executada. Xariar, no entanto, já estava apaixonado, e decide mantê-la como esposa. Esse final está nos manuscritos mais recentes d’As mil e uma noites.
Os tempos mudam, as histórias mudam junto. Você não precisa ter lido As mil e uma noites para conhecer alguns contos que estão ali – eles se transmutaram em outras histórias, mais próximas da nossa cultura do que imaginamos. E continuarão a atravessar fronteiras e épocas enquanto a humanidade tiver vontade de contar boas histórias.
Fontes: (1) artigo “O sobrenatural e o mágico nas mil e uma noites”; (2) artigo “Tales from the crypt: on some uncharted voyages of Sindbad the sailor introduction”; (3) artigo “The politics of translation: two stories from the turkish Ferec ba‘de Şidde in Les mille et une nuit, contes arabes”; Alcorão; “Livro das mil e uma noites”, traduzido do árabe por Mamede Mustafa Jarouche.