O Menino e a Garça: o folclore do pássaro do filme
Vencedor do Oscar de Melhor Animação, o filme do Studio Ghibli tem uma garça-real-europeia em papel de destaque. Saiba mais sobre a espécie e mitologias da ave no Japão
O Menino e a Garça, novo filme do Studio Ghibli, venceu o Oscar de Melhor Animação de 2024. A produção conta a história de Mahito, um jovem garoto que, após a morte de sua mãe, vai embora de Tóquio para uma propriedade no interior. Lá, ele tenta se ajustar à sua nova vida com seu pai, sua nova madrasta (a irmã mais nova de sua mãe) e várias senhoras idosas habitantes da casa. Enquanto tenta lidar com o trauma, ele encontra uma garça falante que o leva a uma torre abandonada, prometendo que encontrará sua mãe lá dentro. A partir daí a história ganha uma abordagem fantástica, com um mundo mágico cheio de criaturas místicas – algumas fofas, outras perigosas.
O filme é dirigido e roteirizado por Hayao Miyazaki, animador aclamado pela crítica e considerado um dos maiores nomes da animação japonesa. Atualmente com 82 anos de idade, o diretor disse que esse será seu último filme antes de sua aposentadoria. Porém, ele já disse que iria largar o lápis outras 3 vezes: em 1997, 2001, e 2013 – ele quebrou essa última para produzir O Menino e a Garça.
O Studio Ghibli – principalmente os trabalhos de Miyazaki – é conhecido por suas abordagens filosóficas, simbolismos mágicos e histórias emocionantes. O novo filme não podia ser diferente: quando Mahito entra na torre, a trama vira uma aventura fantástica de busca por crescimento espiritual, amadurecimento e propósito.
O enredo é semi-autobiográfico, com Miyazaki tirando inspirações de sua própria infância no Japão do final da Segunda Guerra e as mesclando com o enredo do livro de 1937 How Do You Live?, do escritor japonês Genzaburo Yoshino (ainda sem tradução para português).
A garça na natureza
Quem tem um papel de destaque no filme, dividindo o título com o protagonista, é a garça. Na versão em português, ela é chamada apenas de “garça-real” – uma ave nativa da América do Sul; contudo, a versão em inglês a chama de “grey heron”, como é conhecida a espécie Ardea cinerea. Por aqui, ela é chamada de “garça-real-europeia” e, apesar do nome, pode ser encontrada não só na Europa, mas também na África, Índia, Leste Asiático e Japão.
Ela possui um comprimento de cerca de um metro, uma envergadura de 185 cm e pesa entre 1,6 a 2 kg. As penas alongadas são, em grande parte, acinzentadas na parte inferior e mais claras no pescoço e cabeça, com um pouco de preto embaixo das asas e na cauda. Os pássaros adultos têm um amplo supercílio preto que termina em uma vistosa crista, além de listras preto-azuladas na parte frontal do pescoço. A garça tem um bico amarelo-rosado longo e reto e poderoso, olhos amarelos e longas pernas marrons.
A garça no folclore
Na cultura japonesa, encontrar uma garça é um evento misterioso, ligado a espíritos, deuses, morte e uma relação com outro mundo. Garças aparecem frequentemente perto da morte e as aves em geral estão associadas à morte e aos funerais, procissões e outros ritos fúnebres.
A primeira referência conhecida a uma garça na literatura japonesa pode estar no Kojiki. Trata-se da obra literária mais antiga do Japão, uma série de mitos de criação compilados em 712 que formam a base do folclore do país.
Em uma dessas histórias, um príncipe morre longe de casa e sua alma se transforma em um pássaro branco – apesar de não ser explicitamente referido como uma garça, estudiosos acreditam que seja o caso mais provável.
Garças brancas, conhecidas por sua aparência marcante, são frequentemente retratadas em histórias e xilogravuras agindo como mensageiras dos deuses ou simbolizando pureza e transição. Outras garças, como a garça azul, já são sinal de mau presságio. Em geral, japoneses costumam associar a garça-real-europeia que aparece no filme como uma presença assustadora ou melancólica. Teóricos estimam que, pelo animal se misturar com a escuridão da noite e reaparecer ao amanhecer, ele seja um símbolo do ciclo da vida, da morte e do retorno ao além.
Sendo assim, faz todo sentido que Miyazaki tenha escolhido uma garça-real-europeia para ser a “co-estrela” de seu possível último filme. Considerado sua produção mais intimista, O Menino e a Garça apresenta a dualidade do maravilhoso mundo fantástico e do conturbado mundo real, do luto e da aceitação, da morte e da vida que segue. À medida que Mahito é guiado pela estranha figura da garça em uma aventura mística cheia de simbolismos, ele aprende que a vida continua e que dá para fazer a diferença no mundo – mesmo que aos poucos.