Esquerda X direita: as origens
Veja como surgiu a polarização, as vertentes filosóficas que deram base para os dois lados e por que esse antagonismo não é uma disputa entre o bem e o mal.
A história da política mundial se divide entre antes e depois da Revolução Francesa, no fim do século 18. Foi quando nasceu o conceito moderno de cidadania, de direitos iguais para todos. E foi quando, pela primeira vez, o planeta ouviu falar em posicionamentos políticos de direita e de esquerda – por um motivo mais circunstancial do que a importância do fato dá a entender.
Mas antes precisamos corrigir um engano comum do imaginário popular.
Qualquer consulta ao Google vai lhe dizer que essa revolução aconteceu em 1789. E o que logo vem à mente é Maria Antonieta dizendo que, se os miseráveis não tinham recursos nem para o pão de cada dia, que então comessem brioches (um “pão de luxo”, enriquecido com manteiga e ovos). A seguir, nessa visão apressada, vemos a guilhotina dos revolucionários cortando a cabeça dessa rainha e a de seu marido, o rei Luís 16.
Mas calma. Nada aconteceu da noite para o dia. A Revolução Francesa foi um processo que se estendeu por mais de uma década. E, em sua primeira fase, tanto a monarquia quanto a cabeça dos reis continuaram no lugar delas. Luís 16 permaneceu Sua Majestade por mais três anos a partir de 1789 – ainda que seu poder esfarelasse com o passar dos meses.
Um sinal de que o absolutismo minguava na França foi a criação de uma Assembleia Constituinte, com predominância de representantes da população. Entenda por população a “burguesia”, ou seja, os pequenos e grandes empresários da época. Mas só o fato de a nobreza e o clero serem minoria já era uma inovação. Então, em agosto de 1789, os participantes concluíram a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. Um documento baseado nos ideais iluministas, que já tinham tirado o poder absoluto dos soberanos britânicos, um século antes, e dado à luz a uma nova república nas Américas em 1776, os Estados Unidos.
Os 17 artigos da Declaração reverberam até hoje nas sociedades democráticas, já desde o primeiro e mais impactante deles: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”. Era um duro golpe na noção de que os nobres seriam superiores aos burgueses e camponeses, e que deveriam ser privilegiados (com isenção de impostos, por exemplo). Outros artigos também ressoam aos ouvidos de hoje, como “Todo acusado é inocente até ser declarado culpado”. E este: “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas”. Sim, há ecos desse conjunto de normas jurídicas até na Constituição Brasileira de 1988.
Mas voltemos ao rei da França. Antes que as ideias republicanas se espalhassem pelo país, os novos representantes do povo precisavam decidir o que fazer com Luís 16. Afinal, se ele ainda reinava, qual seria a extensão de sua autoridade com o novo status quo? Um dos debates foi a respeito do poder de veto do rei – ele poderia cancelar uma lei decidida pela Assembleia?
Não era tão simples assim. Uma perspectiva mais rasa pode levar a crer que bastaria seguir a fórmula britânica, na qual o soberano tem o título, mas não o poder. A Assembleia, porém, era formada por agrupamentos políticos de mentalidades bem diversas: havia os patriotas moderados – grupo mais numeroso ali, composto por burgueses que defendiam mudanças graduais e os interesses da classe média; os patriotas radicais – o nome já fala por si, pessoas da baixa burguesia que desejavam transformações mais extremas e imediatas; os aristocratas – gente da nobreza e do alto clero, que lutava pela manutenção de seus privilégios históricos; e o partido monarquiano – grupo também moderado, que balançava entre as ideias opostas e preferia uma monarquia constitucional, à la Inglaterra. E mesmo dentro desses conjuntos havia discordâncias.
Por uma questão de afinidades e força de grupo, como nas torcidas de futebol, os que defendiam a manutenção da autoridade de Luís 16 se juntaram em um dos lados desse Parlamento, à direita do presidente da Assembleia. Os que lutavam por transformações mais profundas e rápidas, esvaziando o poder real e os privilégios da nobreza, se agruparam à esquerda. Poderia ter sido ao contrário, mas foi assim. Nascia naquele momento o conceito de “esquerda e direita”.
Essa logística ficou tão marcante que permaneceu para outras questões – e ao longo da década seguinte. Logo os jornais franceses fariam referências à “esquerda progressista” e à “direita conservadora”. Mas rapidamente os franceses entenderam que as noções de “progressista” e “conservador” variam conforme o contexto, o tempo e o lugar.
Os revolucionários mais radicais, identificados com o lado esquerdo da Assembleia, foram ganhando espaço no processo da Revolução Francesa. Isso culminou com a execução do rei, a instauração da República e o extermínio de opositores. Mas a esquerda da Revolução também mostrou que, dependendo da questão, podia ser tão ou mais conservadora que a direita.
Feminista de vanguarda, a escritora Olympe de Gouges fez barulho chamando atenção para o fato de que a nova Constituição não incluía direitos iguais para as mulheres. Então os jacobinos, grupo que nasceu na esquerda e foi se tornando mais e mais radical e violento (em contraponto com os girondinos, mais moderados), mandaram-na para a guilhotina.
Já o jornalista Gracchus Babeuf, um socialista antes que existisse socialismo – e que hoje evidentemente seria associado à esquerda –, incomodou os dois lados da política com suas ideias de coletivização das terras, compartilhamento dos bens e ataques à iniciativa privada. Foi ainda um precursor do anarquismo ao defender com veemência que, se não podiam interferir na vida política, os pobres também não estariam obrigados a cumprir a lei. Resultado: guilhotina para ele também. Anos mais tarde, Babeuf seria uma inspiração para Karl Marx e seu Manifesto Comunista.
A ascensão de Napoleão Bonaparte, uma década após o início da Revolução Francesa, pôs para escanteio durante um tempo os termos direita e esquerda. Mas não morreu o legado de polarização entre progressismo e conservadorismo, que provocaria debates acalorados entre alguns dos mais importantes pensadores da história.
Conservadores e reacionários
Contemporâneo da Revolução – que considerava um marco de ignorância e brutalidade –, o político irlandês Edmund Burke fez o mais significativo ataque às transformações que estavam acontecendo na França, afirmando que demonizar tudo o que veio antes acabaria descambando para o terror puro (como de fato aconteceu quando os jacobinos ficaram com sangue nos olhos).
Burke foi reconhecido como pai do conservadorismo moderno. Rejeitava o culto ao progresso, característico do Iluminismo, e dizia que a Constituição de um país não podia nascer de ideias inéditas, como ocorrera entre os franceses; um conjunto de leis deveria se basear na tradição, na experiência acumulada ao longo dos séculos. Ou seja: na “conservação” dos melhores valores que a sociedade produziu. Era favorável à liberdade de comércio, à propriedade privada e aos direitos herdados.
E aqui vale um parêntese para explicar a diferença entre conservadores, como Burke, e os reacionários – que geraram uma linhagem radical, de que hoje se alimenta a extrema-direita no mundo. O filósofo Joseph de Maistre, nascido onde hoje fica a Itália, tinha uma interpretação autoritária do conservadorismo, baseada em “trono e altar”. Nada de Estado laico: para ele, os governos, monárquicos, deveriam ser conduzidos por uma Constituição cristã, uma teocracia, e o poder do papa deveria estar acima de tudo.
Sociedade criada do zero
E do outro lado? O opositor intelectual de Burke na época foi o político britânico Thomas Paine, um entusiasta da Revolução Francesa. “Paine acreditava que era possível começar o mundo do zero, uma crença muito compartilhada por iluministas e racionalistas do século 18”, explica Eduardo Wolf, mestre em filosofia pela UFRGS. “A ideia era a de que a razão humana seria capaz de permitir que os homens reformulassem a sua vida social a partir de um planejamento teórico, ideológico e político”.
Em 1797, com a Revolução Francesa ainda acontecendo, o inglês lançaria o panfleto Agrarian Justice (“Justiça Agrária”), em que discutia as origens da propriedade privada e introduzia o conceito de uma renda mínima para todos os cidadãos. Utopia? Parece de fato que muitas ideias de esquerda flertam com um mundo idílico, mas para muitos trata-se de um otimismo indispensável. “A utopia é provavelmente um dispositivo social necessário para gerar os esforços sobre-humanos sem os quais nenhuma grande revolução é alcançada”, afirmou Eric Hobsbawm, outro importante pensador de esquerda, já no século 20.
Seja como for, há algo no pensamento de Paine que não se encaixa no da esquerda progressista de hoje: ele era um defensor da posse de armas.
Ser de esquerda num país de esquerda
Essa divisão entre manter o conhecimento herdado do passado em oposição a um plano para reconstruir a sociedade permearia os conceitos de direita e esquerda que se espalhariam pelo mundo. Ainda que não tivessem o mesmo significado em todos os lugares.
A violenta revolução comunista que derrubou os czares na Rússia é herdeira direta da francesa, mas afastada do seu caráter burguês. Lenin, o líder dos bolcheviques que tomaram o poder, foi imediatamente associado aos jacobinos, a ala radical dos que se sentavam à esquerda na Assembleia Constituinte da França.
Já na época de Stalin, um ditador assassino de opositores, os conceitos de esquerda e direita na União Soviética evoluíram para outro tipo de divisão. Afinal, como ser de esquerda num país que, aos olhos do mundo, é todo de esquerda? O que acontecia é: enquanto a esquerda era associada aos que abraçavam sem questionamentos a ideia de uma Ditadura do Proletariado, a direita era composta por aqueles que exaltavam valores patrióticos. Ambas, porém, eram igualmente comunistas – já que numa ditadura não existe liberdade de pensamento, claro.
Nos Estados Unidos de hoje, mesmo com liberdade plena de pensamento, é parecido – só que ao contrário. Os dois partidos que polarizam a política do país, tanto o Democrata, mais progressista, quanto o Republicano, de tendência conservadora, vestem a camisa do capitalismo. Aliás, defender o socialismo numa campanha eleitoral americana é suicídio político. E isso tem a ver com a ressaca da Segunda Guerra Mundial.
Os EUA seguiram as cartilhas de Adam Smith e John Locke, considerados pais do liberalismo econômico. A tal ponto que os termos esquerda e direita só começaram a surgir em livros americanos a partir dos anos 1920. Havia, então, socialistas “fora do armário” no país. Mas pareciam anacrônicos numa década de prosperidade, sob a vibrante economia de mercado que consolidou o american way of life.
Bem, isso até o crash da Bolsa de Valores em 1929, que quebrou os bancos e o país inteiro. Na década seguinte, a solução brotou de um plot-twist: a recuperação econômica veio por políticas que, hoje, qualquer um associaria à esquerda.
O New Deal, do presidente Franklin Roosevelt, ampliou a intervenção do Estado na economia, por meio da fiscalização das instituições financeiras (para evitar um novo crash) e da construção de grandes obras de infraestrutura para gerar emprego e renda (algo semelhante à política chinesa do século 21). Roosevelt ainda estimulou a criação de sindicatos para facilitar as negociações entre trabalhadores e patrões. E implementou a previdência social nos EUA. Ninguém na época mandou o presidente americano ir morar em Cuba por causa disso. (Até porque, à época, Fidel Castro ainda era uma criança, que chegou a mandar uma carta para Roosevelt pedindo uma nota de US$ 10.)
Mas aí veio a Segunda Guerra que, quando acabou, entre mortos e feridos, deixou a praga de uma disputa geopolítica furiosa entre americanos e soviéticos. Como num jogo de War, EUA e URSS tomavam ações para conquistar mais territórios e impor suas ideologias ao mundo – sempre com o intuito de criar blocos comerciais que garantissem uma abundância de recursos para cada um dos lados. A Guerra Fria, na América, gerou uma paranoia contra o comunismo, pois a sociedade temia que a URSS atacasse seu território a qualquer instante. Ser de esquerda passou a significar ser inimigo público do Estado, e uma das consequências nefastas dessa mentalidade foi o Macarthismo.
O movimento tem esse nome por ter sido encabeçado pelo senador Joseph McCarthy, que incentivava uma caça às bruxas anticomunista e acusações sistemáticas de subversão e traição à pátria, numa espécie de nova versão do terror jacobino. Muita gente identificada com o pensamento progressista foi perseguida (e presa) por esse exagero.
O importante, no fim das contas, é compreender que esquerda e direita não travam uma disputa entre o bem e o mal, como radicais de ambos os lados dão a entender.
Os regimes totalitários da União Soviética e da China de Mao Tsé-tung deixaram uma fama terrível ao pensamento de esquerda, mas são exemplos extremos, que nada têm a ver com indivíduos que defendem uma maior participação do Estado em políticas sociais e econômicas. Assim como a farra na bolsa da década de 1920, que deu origem à Grande Depressão e levou milhões à miséria, não tem relação com cidadãos que apoiam a privatização de estatais e consideram que mercado livre e impostos baixos são pilares fundamentais para a criação de riqueza.
A divisão, no fundo, é aquela da origem dos termos “progressista” e “conservador”. Um lado pede mudanças rápidas, a começar pela intervenção do Estado para a redução da desigualdade. O outro entende que certos valores fizeram a sociedade chegar até aqui, a começar pelo livre mercado, e que mexer com eles levaria a um retrocesso.
E tudo bem. Dá para entender os dois pontos de vista não como antagônicos, mas como complementares. É possível extrair o melhor de cada lado para o bem comum. Complicado mesmo é o momento em que estamos vivendo. Uma onda de obscurantismo na qual, dependendo da sua inclinação política, você pode ser tachado de comunista ou de amante do fascismo sem ser uma coisa nem outra. No final, o fato é: entre os “istas” e os “ismos”, o fundamental mesmo é o humanismo dentro de cada um.