Como as trincheiras mudaram a 1ª Guerra Mundial
Nas valas, os soldados escapavam das balas inimigas. Mas encaravam muita lama, infestações de piolhos e ratos que se alimentavam de cadáveres
Não foi um militar, mas um civil, quem primeiro adivinhou como seria a 1ª Guerra Mundial. Em 1897, o banqueiro polonês Ivan Bloch escreveu um livro chamado O Futuro da Guerra, no qual previu o impasse e a assustadora carnificina que caracterizariam o conflito. Ele percebeu que a formação de exércitos gigantescos e a letalidade dos novos armamentos criaria uma situação inusitada: em caso de confronto, a vantagem seria da defesa, e não do ataque. Para Bloch, a pá se transformaria numa ferramenta tão importante nas frentes de batalha quanto o fuzil, porque os soldados teriam de cavar trincheiras para fugir do fogo inimigo. O banqueiro morreu 4 anos antes do início da guerra. Uma pena: se tivesse vivido pelo menos até o final de 1914, teria descoberto que suas previsões estavam absolutamente corretas.
Em agosto daquele ano, os alemães colocaram em prática o Plano Schlieffen, elaborado quase uma década antes, em 1905. Ele previa que, em caso de uma guerra envolvendo toda a Europa, o primeiro país a ser derrotado – da maneira mais rápida possível – deveria ser a França. Assim, Rússia e Grã-Bretanha, suas principais aliadas, não conseguiriam permanecer na luta sozinhas. Foi desse jeito que a 1ª Guerra Mundial começou, e de uma forma muito parecida com a de conflitos anteriores: grandes contingentes levados de trem até os fronts, tropas se movimentando rapidamente e bombardeios maciços de artilharia.
Quase 90% do Exército alemão foi mobilizado para a ofensiva. A idéia era levar a cabo uma campanha relâmpago: em apenas 6 semanas, a tropas do imperador Guilherme 2o deveriam estar marchando sobre Paris. Mas nem tudo saiu como o planejado. Levar milhões de soldados ao campo de batalha era fácil. Difícil era fazê-los avançar debaixo de fogo intenso, promovido por uma variedade de armas modernas – como fuzis de repetição, metralhadoras e canhões de tiro rápido.
As tropas da Alemanha acabaram sendo barradas em duas grandes batalhas: a do Marne, entre os dias 5 e 12 de setembro de 1914, e a de Ypres, de outubro a novembro do mesmo ano. Para manter sob controle o território conquistado, os soldados alemães passaram à defensiva. Chegava ao fim a fase de movimentação e começava a guerra de trincheiras. Até o final do conflito, em 1918, os dois lados não sairiam de um impasse. A cada nova batalha, o sacrifício de milhares de combatentes renderia avanços quase sempre insignificantes, que raramente passariam de 15 ou 20 quilômetros.
Covas rasas
O entrincheiramento significava que só a artilharia poderia decidir a guerra – e os números comprovavam essa realidade. Segundo o historiador britânico John Keegan, especialista em conflitos militares, apenas 1% dos ferimentos foi provocado por baionetas nos 4 anos de combates. Balas de fuzis ou metralhadoras responderam por 30% das baixas, entre mortos e feridos. O restante padeceu por obra das granadas.
As trincheiras começavam a ser cavadas como uma simples vala, funda o suficiente para proteger um homem dos tiros inimigos, mas não tão larga a ponto de ser um alvo fácil. Elas tinham a forma de ziguezague para impedir que os adversários ou uma granada de obus que caísse dentro delas pudessem causar muito estrago numa direção reta. Quando a primeira proteção ficava pronta, imediatamente dava-se início à construção de abrigos subterrâneos, para proteger os soldados dos bombardeios. Nas áreas mais estabilizadas do front, esses abrigos podiam até ter certos luxos, como luz elétrica, tapetes e camas. Alguns ficavam a 10 metros de profundidade e resistiam aos mais pesados ataques de artilharia.
O que não faltava, porém, era desconforto. Tanta terra removida significava muita lama quando chovia. Ratos eram abundantes e muitas vezes se alimentavam de cadáveres insepultos. Infestações de piolhos também tornaram-se comuns, já que os soldados raramente trocavam de roupa e passavam semanas sem tomar banho. O escritor Robert Graves, que participou da 1ª Guerra como oficial do exército britânico, registrou em seu livro de memórias um episódio exemplar: “Certa vez, um novo oficial se juntou à companhia. Num gesto de boas-vindas, recebeu um abrigo contendo uma cama com molas. À noite, ele ouviu ruídos, apontou a lanterna, e descobriu dois ratos em cima de seu cobertor que brigavam pela posse de uma mão amputada. A história circulou como uma grande piada”.
As condições insalubres fizeram surgir novas doenças, como a febre-de-trincheira, causada por uma bactéria transmitida pelos piolhos, e o pé-de-trincheira, uma infecção provocada por fungos por causa da umidade ou do uso de botas apertadas. Quando não tratada a tempo, ela podia resultar na amputação dos pés.
Tiro na testa
Fora o ziguezague, não existia um formato-padrão para as trincheiras. Tudo dependia do setor em que elas eram construídas (numa frente de batalha mais ou menos “quente”, por exemplo) ou do tipo de terreno. O espaço entre as linhas de trincheiras inimigas, conhecido como “terra de ninguém”, também variava bastante. Em geral, era de 200 a 300 metros – uma distância tão pequena que inviabilizava qualquer tentativa de movimentação durante o dia. Atiradores de tocaia estavam sempre de prontidão, atentos ao menor sinal de movimento. O erro mais comum de um soldado novato era levantar a cabeça para dar uma espiada acima do parapeito. Morria na hora com um tiro na testa.
Cerca de 200 metros atrás da trincheira da linha de frente, quase sempre havia outra, de apoio. E, atrás dessa, mais uma, à mesma distância, geralmente ocupada pelas tropas de reserva. Todas eram ligadas pelas trincheiras de comunicação, para que os soldados pudessem circular à vontade sem se expor ao fogo inimigo. Por elas chegavam os reforços, os substitutos daqueles que morriam, a munição, medicamentos e a comida de todo dia.
Ninguém ficava o tempo todo entrincheirado. Afinal, um período longo demais no interior de um desses “buracos” poderia facilmente enlouquecer qualquer soldado. De tempos em tempos, os homens alocados na trincheira da linha de frente eram transferidos para a das tropas de reserva, bem mais segura. Eventualmente, eles recebiam licenças ou passavam alguns dias em aquartelamentos organizados na retaguarda.
Reparar os obstáculos de arame farpado, escavar novas trincheiras de apoio ou de comunicação e patrulhar a “terra de ninguém” eram atividades rotineiras durante os monótonos intervalos entre um e outro ataque. A monotonia, no entanto, dava lugar a descargas alucinantes de adrenalina e momentos de puro terror quando a artilharia adversária fazia o chão tremer. Ou quando chegava o momento de uma ofensiva. Nesta hora, os soldados eram obrigados a abandonar sua proteção, saltar por sobre o arame e correr na direção das metralhadoras inimigas. Quase sempre, aquela era uma investida suicida. A maioria ficava pelo caminho.
Corrida para o mar
No front ocidental, trincheiras formaram uma linha contínua de 300 quilômetros
Quando a primeira ofensiva alemã no front ocidental foi barrada por tropas aliadas na Batalha do Marne, em setembro de 1914, os dois lados ainda apostavam na guerra de movimento, acreditando que uma campanha bem conduzida encerraria o conflito até o fim daquele ano. Seguidas tentativas de furar as linhas inimigas foram ocorrendo cada vez mais ao norte, na região dos Flandres, em território francês. A cada investida, porém, novas trincheiras eram escavadas, tanto por tropas alemãs quanto pelos exércitos de França, Grã-Bretanha e Bélgica. Resultado: em novembro daquele ano, uma impressionante seqüência de fortificações já se estendia da fronteira suíça até a cidade belga de Nieuport, no mar do Norte. Nessa linha praticamente contínua, com mais de 300 quilômetros de extensão, a 1ª Guerra Mundial empacaria – até o seu final, em novembro de 1918.