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O berço do café

O café chegou ao Brasil após longa história de seduções e contrabandos. Fomos à Etiópia investigar a origem da planta consumida por um em cada seis humanos

Por Caio Vilela, de Adis-Abeba
Atualizado em 12 dez 2016, 13h04 - Publicado em 30 jun 2000, 22h00

Enrolada numa natela, a túnica típica das etíopes, Trunej Kassa, uma simpática dona de casa de 40 anos, ajeita o ambiente para a cerimônia, em sua casa em Adis-Abeba, a capital da Etiópia. Acende o fogo numa pequena fornalha de metal no canto da sala e cobre o chão com capim fresco e flores, para enfeitar e perfumar o ambiente. Depois, queima um incenso na brasa e apanha uma porção de grãos, selecionados desde a manhã. Ela então ajeita uma chapa sobre o carvão em brasa e joga as sementes em cima. Um aroma delicioso invade o ambiente, encobrindo os cheiros do incenso, das flores, do capim. Poucos narizes no mundo deixariam de reconhecer o odor: é café.

Trunej repete o ritual que os etíopes praticam desde séculos antes que o primeiro pé de café crescesse no Brasil – a suposta “pátria do café”. Os grãos que ela agora mexe com um graveto, matéria-prima de uma bebida consumida por mais de 1 bilhão de homens e mulheres em todo o mundo, crescem há milênios dentro das frutinhas vermelhas dos arbustos selvagens das montanhas de Kaffa, região no sudoeste da Etiópia – o berço da planta.

Cabras pulando

Conta a lenda que um pastor viu suas cabras pulando alucinadamente em volta de uma árvore carregada de frutinhas vermelhas. Intrigado, comeu uma das frutas e ficou tão excitado quanto os animais. Um frade passou por lá e julgou que os frutos fossem coisa do diabo. Levou-os consigo e os atirou no fogo para exorcizá-los. Um aroma delicioso encheu o monastério. O clérigo teria interrompido a combustão e, como as frutas estavam quentes, derramado água sobre elas. Estava preparado o primeiro cafezinho. Logo o frade se convenceu de que algo tão delicioso só podia ser divino. Tomou uma dose e rezou a noite toda, sem sentir sono.

O berço do café: cabras pulando
(iStock | Mariemlulu)

Essa história, na verdade, é contada no Iêmen, país da Península Arábica separado da Etiópia pelo Mar Vermelho. “De fato, essa região foi onde os navegadores europeus tiveram o primeiro contato com o café”, conta Kebede Beyene, historiador e professor de História Natural da Universidade de Adis-Abeba. “Mas as evidências botânicas indicam que a Coffea arabica, como chamamos a espécie, é originária dos platôs da Etiópia. Ali, ainda hoje, ela pode ser observada em seu estado selvagem”, afirma.

Nos morros ermos da Etiópia começou uma aventura de séculos. Para ganhar o mundo, as sementinhas cruzaram continentes e oceanos enfurnadas em bolsos, porões de navios e até maços de flores. Veja as muitas voltas que a planta deu.

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Café brasileiro empobreceu país africano

Os cristãos etíopes invadiram a Península Arábica no ano 525. Nessa época, começaram a plantar café no Iêmen. Os árabes foram os primeiros a ter a idéia genial de torrar os grãos e fazer uma bebida com eles, mas isso só aconteceu no século XI. Até então os etíopes apenas comiam o fruto.

Durante anos, os árabes só exportaram o grão torrado. Assim, evitava-se que outras nações pudessem plantá-lo. Mas, no século XVI, um contrabandista conseguiu carregar sementes até a Índia. De lá, os grãos foram para a Europa. No século XVII e XVIII Holanda e França já tinham estabelecido plantações em suas colônias e escondiam as sementes como se fossem pedras preciosas.

O berço do café: país africano
(iStock | lukbar)

Em 1727, aqueles dois países se confrontaram numa disputa diplomática de fronteira entre suas colônias nas Guianas. O Brasil foi escolhido para mediar o conflito e enviou o sargento-mor português Francisco de Melo Palheta a Caiena. Palheta teria se tornado amigo – ou amante, na versão romântica – da esposa do governador da Guiana Francesa, Claude d’Orvilliers. Na despedida do sargento-mor, madame d’Orvilliers lhe teria dado um buquê de flores entre as quais, escondidas, havia preciosas sementes de café. No Brasil, a planta prosperou tanto que, em 1906, 97 em cada 100 cafezinhos do mundo provinham de sementes brasileiras, descendentes daquelas contrabandeadas por Palheta.

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Apesar de tantas viagens, o pé de café permaneceu igual àquele que cresce há milênios em Kaffa, exceto pelo tamanho, que é menor nas plantações. “As diferenças no sabor devem-se à qualidade de solo, à umidade e ao clima onde a árvore se desenvolve”, contou à SUPER o agrônomo iemenita Abdullah Saleh, exportador de café na Etiópia.

A produção brasileira no começo do século XX desferiu um golpe mortal na cambaleante economia etíope, cujas lavouras não eram páreo para as plantações paulistas. Embora o café continue a principal riqueza do país – 230.000 toneladas por ano, em comparação com 1,3 milhão de toneladas produzidas no Brasil –, sua renda está longe do suficiente para sustentar a população. Cafeteiras elétricas, máquinas de expresso e cappuccinos são luxos fora do alcance da maioria dos etíopes. Mas de uma coisa eles não abrem mão: do cafezinho cheiroso preparado em um ritual idêntico ao de séculos atrás.

Algo mais: o papa Clemente VII cogitou excomungar o café em 1600, pois a bebida era a preferida dos infiéis turcos. Antes, porém, experimentou um gole. Achou tão bom que, em vez de condená-la, abençoou-a.

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Como antigamente

Os etíopes torram e moem seus próprios grãos antes de saborear um cafezinho.

• As sementes são torradas em uma chapa na brasa. Usa-se um graveto para mexê-las. Já aí, o aroma invade o ambiente.
• Num pilão, os grãos torrados viram pó. “Quanto mais a gente moer, melhor sai o café”, explica a dona de casa Trunej Kassa.
• Derrama-se a água fervendo direto sobre o pó, sem coar. Serve-se a bebida em pequenas cuias.

O berço do café: como antigamente
(iStock | JPWALLET)

Café com sal

Tribos da Etiópia bebem o café de modos que os ocidentais nem imaginam.
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• O povo hamer, que habita o sul do país, tira a casca vermelha do fruto e joga o resto no chão. A bebida preferida deles é um chá de café preparado apenas com a casca.
• Já os guji trituram os grãos e misturam com gordura de hipopótamo. Eles são bons caçadores desses bichos.
• Para os nômades afar, do deserto, açúcar é um artigo raro – e caro. Eles tomam o cafezinho misturado com sal mineral, mais acessível. Adoram café salgado.

O berço do café: sal
(iStock | Sebalos/iStock)

O grão que rodou o mundo

O café passou pelo planeta inteiro depois que saiu da Etiópia. E acabou voltando para a África.
1. A planta nasceu em Kaffa, no sudoeste da Etiópia, onde os pés selvagens crescem até hoje. Há apenas uma espécie no país: a Coffea arabica.
2. No ano 525, carregado por invasores etíopes, o café cruzou o Mar Vermelho e aportou no Iêmen, onde foi pela primeira vez cultivado em plantações.
3. No século XVI, um peregrino indiano em Meca, chamado Baba Budan, se aproveitou de uma visita à Arábia e surrupiou sete grãos. O café foi plantado na Índia.
4. Em 1616, os holandeses roubaram um pé da Índia e começaram a plantar em suas colônias no Pacífico: Timor, Sumatra e Java, que abasteceram toda a Europa.
5. Em 1714, os holandeses presentearam o rei da França, Luís XIV, com sementes. Arrependeram-se amargamente. As colônias francesas viraram seu maior concorrente.
6. Em 1727, o grão chegou ao Pará. No século XIX, uma praga destruiu os cafezais de Java e revoltas escravas acabaram com a produção do Haiti. O Brasil virou o maior produtor.
7. Em 1893, ironicamente, o grão foi levado do Brasil para o Quênia e a Tanzânia, vizinhos da Etiópia, onde se adaptaram, abalando ainda mais a economia etíope.

O berço do café: o grão
(iStock | Stramyk)
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